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JÁ MUITO ALÉM DO CABO DA BOA ESPERANÇA

Ousarme Citoaian
Foi com Emílio de Menezes que aprendi a beber uísque com água de coco. “Como?” – gritariam horrorizados puristas, para os quais uísque não se mistura – e, no seu espanto, me levantariam a bola para um mau trocadilho: eu não como, bebo. Mais: se o poeta morreu em 1918, este humilde e hebdomático colunista, para gabar-se de com ele ter bebericado, precisaria carregar no costado, pelo menos, 100 anos – e ter começado a beber ainda usando fraldas. Convenhamos que já estou meio para a idade provecta, mais pra lá do que pra cá, dobrado o Cabo da Boa Esperança e ofensas semelhantes, mas não tanto que ultrapasse uma centena de verões ardentes.  Meu convívio com o poeta não se deu em boteco, mas em livro.

EMÍLIO, QUEM DIRIA, NÃO É MAIS AQUELE


Trata-se de Emílio de Menezes, o último boêmio, de Raimundo de Menezes, bebido (ops!) na adolescência, e que agora recuperei num sebo. Réu, confesso: precoce, lia, bebia uísque e fumava (de fumar, logo me cansei, pois odeio vícios pequenos). Pois saibam todos que o velho e bom Emílio (a voz poética mais destrutiva que já se ouviu neste País) está também num livro psicografado por Chico Xavier (Parnaso de além túmulo) e, crenças à parte, não gostei de vê-lo “recuperado”, como ali se mostra em dois sonetos. Num deles, confessa: “Sou o Emílio, distante da garrafa,/ mas que não se entristece nem se abafa,/ longe das anedotas indecentes”. Não é Emílio, é anti-Emílio. 

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OPINIÃO DE LINGUISTA “PESA” EM DECISÃO

A variedade de entendimentos é um dos muitos encantos do Direito e, por extensão, da democracia e da vida. Um juiz de Niterói (poderia ser qualquer outro cidadão) recorreu à Justiça, exigindo ser tratado por “senhor”, pois se sentira ofendido ao ser chamado de “vocêpelo síndico do edifício onde mora. Pleiteava que também suas visitas recebessem do mesmo síndico o tratamento de “senhor”, “senhora”, “doutor”, “doutora” e por aí vai – e ainda pedia que, em caso contrário, fosse o “infrator” levado a pagar multa não inferior a 100 salários mínimos, por danos morais. No tribunal, o julgador negou-lhe a pretensão, com base em parecer da linguista Eliana Pitombo Teixeira.

DOUTOR É TÍTULO, NÃO FORMA TRATAMENTO

Segundo a professora, “você” é tratamento formal – por ser variante (contração) da alocução respeitosa “Vossa Mercê”. Para o magistrado sentenciante, “´Doutor´ não é forma de tratamento, e sim título acadêmico utilizado apenas quando se apresenta tese a uma banca e esta a julga merecedora de um doutoramento”. Estou perfeitamente de acordo quanto à segunda justificativa. Da primeira, data vênia, discordo frontalmente: “você”, embora vindo de uma expressão formal, é, na linguagem de todos os quadrantes do Brasil (exceto, talvez, alguns locais da região Sul), tratamento íntimo. Nenhuma pessoa medianamente educada usa “você” com pessoa idosa, autoridade ou desconhecido.

COMO REGRA, “VOCÊ” É TRATAMENTO ÍNTIMO

Não opino se há direito ou apenas pose na “exigência” do cidadão em não querer ser tratado por “você”. Apenas digo que “você”, em não sendo, por si só, forma ofensiva de abordagem, não é formal, como diz a ilustre professora, opinando a distância do falar brasileiro. Mas ela tem seguidores, obviamente: o ótimo apresentador Jô Soares costuma tratar todos seus convidados por “você” – e há quem ache isto normal (ele, por exemplo, acha). Assustou-me ver, por exemplo, Fernando Henrique Cardoso e D. Evaristo Arns (para citar apenas duas figuras que devem receber trato formal) serem chamados de “você”. No meu entender, cometeu-se, nestes dois casos, uma descortesia. Ou mais.

“JUSTIÇA, PARA SER BOA, COMEÇA EM CASA”

Não resisto a esticar o assunto e fazer um comentário em torno da palavra “doutor”, de sentido hoje já desvirtuado (para não dizer desmoralizado) entre nós. Aqui, a tese aprovada por banca especializada não está entre as formas mais comuns de chegar ao título: mais fácil é obter uma licenciatura qualquer ou, na falta desta, vestir-se de branco. Bem fez famoso bacharel em Direito, de Itabuna, que, tão logo recebeu o diploma, reuniu a família e fez seu primeiro grande discurso: “A justiça, para ser boa, começa em casa; portanto, a partir de hoje, quero ser chamado de doutor”. Assim foi feito e assim é até hoje, “doutor pra lá, doutor pra cá”, com (quase) todos felizes.

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NOEL, UMA IMENSA PRODUÇÃO EM OITO ANOS

Vinícius de Morais, que praticamente abandonou a carreira de poeta “sério” para se dedicar a um gênero então considerado menor, a MPB, foi letrista dos mais profícuos. Penso que, em termos de produtividade, ele só tem rival em Noel Rosa, que fez mais de 200 composições – sem contar muitas que vendeu e foram assinadas por outros compositores. Vinícius ultrapassou a marca de 300. Não faltará fã de Noel a fazer as contas e concluir que o Poeta da Vila, que viveu 27 anos (1910-1937) realizou toda sua carreira musical em curtíssimo período (de 1929 a 1937). Já Vinícius (1913-1980) produziu durante 22 anos, a partir de 1958.

VINÍCIUS FOI BARROCO, NOEL FOI CAIPIRA

Visto assim, Noel foi mais produtivo. Porém a ideia não é comparar os dois autores e levantar polêmica, mas mostrar alguns pontos curiosos. Além desse da alta produção, os dois começaram com gêneros que logo abandonaram: Noel estreou com a embolada Minha viola, cuja letra hoje parece fora do padrão noelino: “Minha viola tá chorando com razão,/com saudade da marvada que roubou meu coração”. Vinícius começou em tom barroco, com Serenata do adeus. Refere-se à mulher como “estrela a refulgir” e cria estes versos: “Crava as garras em peito em dor/ e esvai em sangue todo o amor,/ toda desilusão”. Cândido das Neves assinaria.

EM VINÍCIUS, ATÉ CÂNCER ERA INSPIRAÇÃO

Noel subiu o nível dos seus versos, assumindo-se como poeta urbano “culto”, Vinícius abandonou a escola antiga, integrou-se à Bossa Nova, popularizou-se, sem fazer concessões à vulgaridade. Como costuma acontecer, o espaço se finda, e tanto ainda resta a dizer. Há tempo para citar Chico Buarque (foto), para quem Vinícius fazia letra de música com “qualquer coisa”. Certa noite, numa clínica para se tratar do excesso de uísque, o Poetinha ouviu que no quarto vizinho um homem com câncer estava em estado terminal – e alguém, logicamente, chorava seu desenlace iminente: Vinícius fez e mandou pra Baden pôr a melodia em Pra que chorar (aqui, com Zeca Pagodinho).
 

 O.C.

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0 resposta

  1. Se o caso é de honra, o Noel sim foi doutor. Honoris causa. E não faltou bancada, banco e mesa de bar para conferir-lhe o título.
    A legitimação foi popular.
    Por aqui estas bandas basta ter um terno ou um carro. Pronto já é doutor.
    Para o juiz de Niterói recomendo a leitura da carta do Lamarca aos filhos: “…. Não chamem ninguém de senhor porque ninguém é senhor de ninguém. …”

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