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Ricardo Ribeiro | ricardo.ribeiro10@gmail.com

Em “Gabriela”, tudo é negativo; as mulheres vivem como em um campo de concentração e só podem falar de liberdade aos cochichos. 

Sem querer estragar a festa de ninguém, já que o momento é de comemoração e, vale adiantar: Jorge Amado merece cada confete que lhe cai sobre a memória e sua obra única. A intenção aqui não é tirar o mérito, mas abordar o formidável escritor sob outro ângulo, o de sua relação com Ilhéus e as terras do cacau como um todo.

Indo direto ao assunto, há uma nítida diferença entre a abordagem que a obra amadiana faz de Salvador e da região cacaueira, sendo que esta é claramente apresentada como o lugar dominado pelo patriarcalismo, o atraso, a violência das tocaias e um solo que, como é descrito em Terras do Sem Fim, foi “adubado com sangue”.

A história de Gabriela, Cravo e Canela, ora em reprise em forma de novela na Rede Globo, mostra os fazendeiros de cacau como coronéis truculentos, que tratavam as mulheres como bicho, as usavam e, se bobeassem, matavam-nas. Prazer mesmo, só com as teúdas e manteúdas ou as “quengas” do Bataclan. A hipocrisia ditava o ritmo em Ilhéus, uma cidade onde – da forma que é descrita em Gabriela, poucos gostariam de viver. Pelo contrário, o que a narrativa desperta é uma incontida pena de quem tinha a desventura de morar naquele lugar de tanta gente desprezível.

Ainda que justifiquem tratar-se de uma Ilhéus de outro tempo, o cotidiano descrito é perverso e de tintas carregadas em tudo que é deplorável. Por outro lado, Jorge não descreve as belezas de Ilhéus. Em sua obra não aparecem os belos mirantes da cidade, suas praias de areia branca e fina, seus coqueirais, o mar, os rios, as matas. Estas, quando entram na trama, é como esconderijo de jagunços, cenário de batalhas intermináveis e sangrentas pela posse de uma terra onde vicejava, ao mesmo tempo e paradoxalmente, a riqueza do cacau e a miséria de uma região que se teimava em ser primária: na monocultura e nos costumes.

Salvador já aparece bem diferente nos livros de Jorge. Apesar de também descrever a pobreza que já havia na capital, o escritor demonstra que esta era a cidade de seu coração. Da multiplicidade cultural, do ecumenismo religioso, dos pescadores e saveiros, de um mar hipnótico. Não é à toa que seus livros atraíram para Salvador figuras como o francês Pierre Verger e o argentino Caribé, curiosos por tanta beleza que transpirava das páginas de Jorge. Vieram e ficaram.

Ser a cidade quase natal (para lá o escritor, nascido em Itabuna, foi aos quatro anos de idade) é sem dúvida alguma um privilégio para Ilhéus. Foi nela que o autor idealizou suas primeiras obras, está nela a inspiração para tantas histórias e tantos personagens. Mas ser conhecida como “A terra da Gabriela”, com tudo a que a história da morena cor de cravo e canela remete, talvez não seja o melhor marketing para Ilhéus.

A impressão que se tem é de que o sul da Bahia ficou para o escritor como o lugar do passado, do qual ele comemorava a libertação. Em “Gabriela”, tudo é negativo; as mulheres vivem como em um campo de concentração e só podem falar de liberdade aos cochichos. O contraponto positivo está nos personagens que negam Ilhéus e tudo que ela representa na obra. Malvina, com sua coragem e nobreza que destoam de tudo que a cerca; Mundinho Falcão com sua visão liberal e cosmopolita; e Gabriela, que confronta aquele mundo arcaico com um sorriso infantil e a convicção da liberdade, a antítese perfeita da podridão que a cerca.

Loas a Jorge, mas Ilhéus definitivamente tem muito mais a oferecer do que carregar esse ranço de ser a eterna “Terra da Gabriela”.

Ricardo Ribeiro é advogado e editor do Cenabahiana.com.br

20 respostas

  1. Direto ao cerne Ricardo, parabéns pelo texto. No entanto não devemos esquecer que esta representação amadiana da sociedade ilheense dos tempos de outrora não era realidade apenas desse nosso rincão; mas de quase toda a sociedade brasileira daquele tempo. Em Jorge, se não há como celebrar o modo como “marketeia” Ilhéus, há, sem dúvida, o mérito de fazer uma representação realista daquela sociedade machista,oligárquica e permeada pela falsa moral que deixou ranços.Ilhéus ainda é uma cidade presa ao passado. Por exemplo,sabe porque não passa ônibus na Avenida Soares Lopes? Porque a “elite” que ali mora, não permite. Alegam que fariam muito barulho, o que tornaria aquela “bela Avenida” muito popular.Não levam em conta a mobilidade das pessoas e em outros aspectos o próprio desenvolvimento da cidade. Ou seja, a dita “elite ilheense” insiste em preservar um passado que vc descreveu bem “é perverso e carregado de tudo que é deplorável.”

  2. Excelente reflexão!
    Muitíssimo melhor seria focar Ilhéus como a terra do cacau e chocolate. E, isto nada tem a ver com Jorge Amado ou Gabriela.
    Afinal, em sua obra Jorge abordou a conquista desta região inóspita (a cabruca da mata atlântica), onde aliás morreu muito menos gente que no oeste americano! E, tudo ocorreu depois da abolição da escravatura (nossa região não teve escravos). Chocolate e cacau? Nadica de nada.
    Parabéns ao articulista pelo belo texto.

  3. Sabe que você tem razão, Ricardo Ribeiro, ele apenas errou o nome da cidade e o ano que que foi publicado esse romance!!

    Não é “estória” ou ficção: A história contada é a realidade sobre ITABUNA atual, mas aqui não matam suas esposas ou amantes. Os assassinatos acontecem no Hospital de Base e na violência que tomou conta do município!

    Os coronéis do romance, são os prefeitos de HOJE. As prostitutas ou “quengas” são o POVO, que abrem as pernas e recebem: o atraso, o subdesenvolvimento, a marginalização, enfim, o INFERNO!!!

    Pelo tempo que foi escrito o romance, Jorge Amado, fez sua previsão da realidade atual na região do cacau!!

    Talvez isso explique porque o povo grapiúna, itabunense, despreza o escritor, filho daqui!!!

  4. Observando-se a realidade daquela época, a hipocrisia da elite dominante e a opressão das mulheres pelos homens, considerados “muito machos”, existiu, ou não, tal comportamento, …?!?!?!

    Algumas coisas, é claro, ficaram por conta do vasto imaginário do Jorge Amado, …, aliás, que imaginário, …!!!

    Se atualmente algumas coisas – alguns costumes – são considerados coisas negativas, o tempo cuidou de modificar as regras, os costumes, as convenções sociais, …!!!

    As maiores mudanças ocorreram por dois motivos, a saber:

    1 – A ida de muitos jovens estudar fora;

    2 – A chegada de muita gente de fora, para trabalhar por aqui;

    Com isso, houve um verdadeiro intercâmbio de pensamentos, de costumes, de convenções sociais, e por aí vai, …!!!

    Só para se ter uma idéia, até hoje ainda há quem mate por causa de traição, de não aceitar o final do relacionamento, e por aí vai, e não apenas aqui, mas em muitos outros lugares também, tais como São Paulo, e no Sul do País, …!!!

  5. À luz da crítica, o texto do novel analista literário e de costumes está quase perfeita. Talvez tenha faltado sintonia entre a memorável ficção do escritor grapiúna e sua ideologia socialista vicejante na época de elaboração de Gabriela.

    Na obra, Amado espinafra os coronéis do cacau que representariam a burguesia enquanto ele, socialista, deles se vinga ao expô-los ao ridículo da sem-luta de classes.

    (Aliás, Caio Prado Junior retrata em sua obra “Revolução Brasileira” que o foco da luta de classes visando a introdução do socialismo no Brasil deveria ter nascido no Sul da Bahia e na região canavieira pernambucana).

    Ao retratar a sociedade em que viviam os donos da terra com maus, o escritor não poderia lhe dar ares de cultura parisiense. Ricos e soberbos, os coronéis nem migalhas deixam da mesa cair ao proletariado – trabalhadores, prostitutas, analfabetos, etc.

    A riqueza de Gabriela está exatamente no universo multifacetado que a obra traz consigo. Quem seria Malvina senão uma combativa socialista pequeno-burguesa a lutar pela igualdade entre as gentes e o desprezo aos burgueses, inclusive seu avô? Não seria Mundinho Falcão um agente de mudança, importado como a matiz socialista stalinista de Jorge?

    Ao querer transportar o universo ficcional para a realdade, o crítico pode redundar em perturbadoras malquerenças. Imaginar e ver coisas, sob sua ótica, em vez daquela visão estereotipada da ficção amadiana.

    Isto pode fazê-lo voar com asas de barro. Calma, entre a ficção e a realidade factual há um abismo que pode nos tragar a todos às profundas idiossincrasias.

    No mais, o assunto é desafiador. Nada como discuti-lo com todos os efes e erres, pontos nos i, vírgulas e ponto e vírgulas sob o adorno de um chopinho, gelado de preferência.

    Quem sabe, à medida, que o teor alcoólico suba, mais revelações sobre a obra amadiana caiam sobre mesa, sem reservas e meias palavras dos conviventes. Que poderão, então, se imortalcoolizar na Alambique, do também novel escritor Daniel Thame.

  6. Me desculpe, o ponto de vista do autor! mas não se vê muito empenho da cidade, ou região para mostrar um cenário diferente do descrito na obra de Jorge. O atraso ainda reina na região, a paisagem natural( concordo que poderia ser melhor descrita), mas também temos que reconchecer que a falta de zêlo, faz com que nos envergonhemos frente aos turistas. A relação de trabalho na região salvo raras excessões é de tamanha subserviência, mesmo em empresas tidas como referência regional. Salvador como capital têm suas limitações mas não se compara em nada com o ranço coronelesco da região do cacau. Eu ainda comungo da mesma opnião de Jorge.

  7. Ricardo, Jorge retratou uma época. Se você olhar a história e o comportamento das pessoas na década de 20, Ilhéus – e outras cidades – eram assim mesmo. E olhe que até a década de 80, no Brasil, matar em nome da honra era válido. Vá pesquisar e olhe que o que Jorge escreveu era muito mais real do que você pensa.

  8. Caro Ricardo Ribeiro, você é jovem e, com certeza, não deve ter ouvido relatos acerca das barbaridades aqui cometidas pelos coronéis. Já passei dos 50 anos, e me lembro muito bem de meus avós contarem as atrocidades cometidas contra as mulheres e contra os mais pobres. A minha família foi vítima de um caxixe armado no cartório da cidade, em que meu avô perdeu a rocinha que tinha para um coronel a quem obviamente não poderia enfrentar para não correr o risco de perder a vida. Quanto à forma como as mulheres eram tratadas, não há nenhuma novidade. Eu mesma conheci uma jovem que o pai não deixou aprender a ler para “não escrever cartas para namorado”.
    Não é à toa que algumas pessoas espiritualizadas creem que estamos pagando o preço de tanto sangue derramado…

  9. Em suma, meu caro Ricardo, Ilhéus, como de resto todo o país, de louvável só o povo e suas belezas naturais.

    O resto, ou seja , as classes dominantes, formam a escória, gente da pior estirpe. Não vejo tanta diferença hoje não!!!

  10. Cabra bom da pêga rapaz. valeu ricardinho pelo chamamento. Jornalismo e literatura se casam, quando existe a perspicácia. E voce decididamente tem procurado valorizar seus textos, apimentando, colocando sal,tudo nas suas devidas medidas. Vá em frente amigo. Sucesso,um abraço em Pedrinho.

  11. Zelão diz: – “É Mentira Terta?”

    Embora sendo obra literária intitulada como de “ficção,” a obra escrita por Jorge Amado, baseou-se na realidade cultural e econômica da época. Diria até que a realidade superou a ficção, que permite ao autor o cometimento dos exageros.

    Minha avó contava “causos” daquela época, que foram relatados pelo meu avô materno, “Sêo Cazuza” que trabalhou por quarenta anos nos antigos Correios e Telégrafos, na função de “guarda-fio,” na qual percorria; no lombo de animal ou a pé, o trecho da fiação do “telégrafo” que ligava Ilhéus à Vitória da Conquista. Nas longas viagens que fazia, tinha que “arranchar” nas fazendas por onde passava a linha. Contava meu avô as “barbáries” que presenciou e sobre as quais tinha que se calar – a pedido ou pela própria sobrevivência: – Falava das roças dos muitos “burareiros” que eram tomadas a “ferro e fogo,” pelos jagunços dos coronéis e a mando deles. Das muitas mulheres assassinadas; que tiveram os seios arrancados ou foram “desencabaçadas” e depois expulsas de casa pela própria família, buscando abrigo nos “puteiros,” como última forma de sobrevivência.; dos “caxixes” armados pelos coronéis que levavam o “tabaréu” a perder até o último “tostão” que possuíam, em pagamento de dívidas que nunca contraíram.

    Se Jorge Amado quis ou pensou fazer “marketing” sobre Ilhéus e a nossa região – conceito à época desconhecido na sua forma atual – não teve a intenção de fazê-lo na forma depreciativa ou o “anti marketing.” Parece que os leitores da obra “amadiana” pelo mundo afora, não entenderam como “forma pejorativa” a imagem “pintada com tintas fortes” da Ilhéus daquela época e quando buscam conhecer “in loco,” Ilhéus e as “Terras do Sem Fim,” buscam o que restou da história; o que muito pouco encontram, pelo desleixo e ignorância dos filhos, netos e bisnetos dos coronéis.

  12. Pior de tudo é gastar dinheiro público em reconstruir um quengueiro e mostrá-lo aos turistas como patrimônio histórico e cultural mor de Ilhéus. Nada contra as profissionais. Cada quem cuide da sua vida.

  13. Agradeço a todos pela leitura e as observações, e esclareço que não pretendi fazer crítica literária, muito menos postular que o escritor fizesse de sua obra uma peça de marketing e menos ainda negar a realidade da época. Meu porém é um só: que Ilhéus queira se valer exclusivamente de uma obra que a retrata tão mal para promover o turismo. Não defendo o desprezo à obra de Jorge, mas que a cidade se reinvente, se organize e “venda” melhor o potencial que tem. Um amigo me disse ontem algo que resume esse ponto de vista: as pessoas, em sua maioria, não vão a Londres por causa da obra de Shakespeare, nem a Paris pela de Alexandre Dumas. Mas Ilhéus quer que a visitem pela obra de Jorge Amado e esquece de valorizar e enfatizar outros aspectos.

  14. Meu caro Ricardo, creio que você está ligeiramente equivocado, quanto ao papel do romance Gabriela para a literatura ou para a região do cacau, além de ter feito leituras errôneas (ou nenhuma) dos romances “soteropolitanos” (sic) do autor como Jubiabá, Capitães da Areia, Tenda dos Milagres… Tem certeza que a aristocracia de Salvador recebeu um olhar, digamos, “mais doce” do escritor? E nós, sulbaianos, realmente saímos do julgo coronelista? No mais, os comentários acima, dos leitores Sérgio Oliveira, LC, Carlos Athaide, Maria Meneses, Ricardo Seixas e Zelão, (não os conheço, mas os saúdo pela percepção crítica) já disseram o que deveria ser dito.

  15. Nunca dei bola pra Jorge Amado.Suas obras que narram sobre Itabuna e Ilhéus parece mais uma “vingança”.Concordo com o texto acima.

  16. Gostaria de parabenizar Ricardo Ribeiro pelo instigante artigo,eu o acompanho sempre,pois creio que ele é detentor de qualidade.Jorge Amado é um dos autores de maior sucesso do mundo o que nos deixa encantados,observações como as do presente artigo servem para uma reflexão devidamente separada entre o real e a mera coincidência.Que surjam novos baianos campeões das livrarias.
    “É preciso ser velho,é preciso ter vivido bastante,é preciso ter viajado a metade do mundo,de Nova York a Luanda,de São Paulo a Paris,para saber que nada vale mais ou tanto quanto o nossso pedaço de chão.” ADONIAS FILHO,mestre escritor,um dos grandes amigos de Jorge Amado,em sua Fazenda Aliança,na bucólica Inema.

  17. Ricardinho, você é o cara mesmo, perfeito seu texto! Dias atrás “fulo” da vida com a exposição exacerbada em torno de um “cara” que ao meu ver tava pouco se lixando para a nossa região, (gostava mesmo era de posar de comunista mas passou grande parte da vida tomando champagne francês na Europa,deixo claro que não discuto seus méritos literários). Mas postei o seguinte no Face, é meio polêmico mas é minha visão:
    Não sei o porque de tanta celeuma acerca dos 100 anos de Jorge Amado. Méritos literários ele tem sim, não se pode negar (apesar de ter fomentado uma imagem meio dúbia e um tanto quanto deturpada da nossa combalida região), porém como comunista que dizia ser, e o comunista na sua essência tem por obrigação lutar por uma sociedade sem classes, onde todos tenham os mesmos direitos, este deixou a dese
    jar. Nenhum trabalho social, nunca usou sua imagem e fama internacionais em benefício da Bahia, e o pior, sempre foi aliado e de certa forma conivente com o que de pior existiu na história política em nosso estado, o carlismo. Mais de vinte anos de atraso e truculência, comandados por um “ditadorzinho de m….” que dizia que: “controlava nosso estado com um chicote na mão e o dinheiro na outra”. Sinceramente, mesmo sabendo que estou polemizando, não tiro o chapéu para Jorge Amado, respeitando as outras opiniões e as proporções devidas, prefiro tecer loas a Irmã Dulce.

  18. GOSTEI MUITO DO SEU TEXTO, ELE TRADUZ EXATAMENTE O QUE PENSO SOBRE A TERRA DE GABRIELA…O TEMPO PASSOU E AS CENAS PARECEM QUE SAO DE HOJE…

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