Tempo de leitura: 4 minutosMarcos Bandeira | marcos.bandeira@hotmail.com
A ausência de barracas dará lugar a praias desertas e sem qualquer aparato de segurança. Indaga-se: quem se aventurará a frequentar as praias nessas condições? O que se colocará em seu lugar? Há algum projeto? Com certeza, nada. É sombrio e desanimador o cenário.
“Quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga, ignorando o Direito”.
George Ripert
Mais uma vez, vem à tona a possibilidade de a União destruir as barracas de praia de Ilhéus. Trata-se de uma decisão da Justiça Federal que tem prazo para ser executada. Não quero aqui discutir o aspecto da legalidade, da questão da imprescritibilidade e da impossibilidade de se usucapir as terras públicas. Gostaria apenas de refletir e reafirmar que o Direito não se restringe à aplicação fria e cega da lei. O tempo também se encarrega de edificar uma realidade que não pode ser ignorada pelos aplicadores da lei.
Os operadores de Direito, de uma forma geral, foram forjados no âmbito da cultura coimbrã, que sacralizava a devoção às leis. O juiz foi preparado para ser mero aplicador acrítico da lei.
Destarte, nesse cenário, segundo Dalmo Dallari, as Faculdades de Direito passaram a ser a única fonte de produção do juiz “escravo da lei” e serviçal passivo dos fabricantes da lei. O axioma a ser seguido era “fora da lei não há possibilidade de decisão”.
O juiz, extremamente legalista e formalista, ignorava por completo eventuais valores éticos, postulados de justiça, exigências sociais e tudo que pudesse conduzir para um resultado justo e equitativo do processo. O que importava era a obediência cega à lei estabelecida.
Nesse sentido, o professor Antonio Henrique em sua obra “ Argumentação e Discurso Jurídico”, citando o tricolor Nelson Rodrigues explicita: Nelson Rodrigues disse que, no futebol, o pior cego é o que só vê a bola. Poder-se-ia acrescentar que, no Direito, o pior cego é o que só vê a lei. Sim, a lei há de ser vista, como também há de ser visto o contexto social, as circunstâncias que envolvem a lei, para preservar a dignidade humana.
As leis não possuem as respostas para todos os fenômenos jurídicos, porque o “legislador” não é onisciente e nem onipotente, como se os fatos passados, presentes e futuros, na sua integralidade, não pudessem lhe escapar ao controle, pelo menos em alguma particularidade. O juiz não mais pode ser um defensor intransigente da “regra”, agindo como se fosse um mero autômato e técnico do positivismo jurídico, aplicando o princípio da subsunção de forma acrítica, descontextualizada, sem que possa analisar criticamente o conteúdo da norma e exercer suas preferências axiológicas, no sentido de que possa atingir a justiça em cada caso que lhe é submetido.
A presente decisão de destruir as barracas de Ilhéus parece se amoldar a essa exegese dogmática-positivista – sed lex dura lex – “ a lei é dura, mas é lei” , como assim dizer, inexorável. Todavia, já superamos filosoficamente o positivismo jurídico e caminhamos sob a égide do pós-positivismo, que se caracteriza pela centralidade dos princípios constitucionais, pela reaproximação da ética com o direito, edificada sob o princípio da dignidade da pessoa humana.
O Direito deve ser entendido como forma de transformação do meio social, devendo o juiz construir a decisão em cada caso concreto, numa perspectiva principiológica e de hermenêutica constitucional, não mais como um cego aplicador da lei, mas um intérprete, capaz de escolher a decisão mais correta ou justa em cada caso concreto.
É inaceitável, sob todos os aspectos, que uma decisão judicial seja prolatada sem levar em conta os imperativos de justiça social, o contexto e as consequências para os direitos fundamentais de centenas de pessoas. Vivenciamos uma crise sem precedentes no Brasil, com o aumento do desemprego, fechamento de empresas, aumento da inflação, aumento da criminalidade.
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