Catussadas foi aclamado herói de duas guerras. Nunca foi condecorado nem homenageado. Morreria esquecido e sem glórias seis anos depois, atacado por tuberculose.
O galo de Manoel Ascanio cocoricou três vezes. Era o Arauto do Sol, o título mais imponente na hierarquia do mundo dos galos, era dele a primazia de inaugurar o dia, status conseguido ao longo de muitos anos, madrugada após madrugada, até ter o peito forte e a garganta afinada para impor seu cacarejar, e ser respeitado pela galaiada da Vila.
O galo da viúva Maria Dolores, alguns quintais depois, era sempre o segundo. Fazia a contrarresposta ao primeiro e chamava o seguinte. Assim, galo após galo e cada vez mais distante, todos cumpriam seu papel de tecer o amanhã.
O arauto reinava de cima do galho mais alto do pé de araçá, no quintal de Manoel Ascanio, atento ouvia orgulhoso tempos depois a resposta do galo mais distante, lá pelos quintais da Ilha dos Sapos. Aí, então, começava tudo novamente.
Pronto, estava decretado o fim do silêncio da alta madrugada. Agora já era boca do amanhecer, quando nossas vistas ainda veem tudo escuro, mas os galos, com olhos de galos, já enxergam os primeiros raios do sol em um horizonte que ainda nem existe.
Contrariado, Manoel Ascanio levantou da tarimba meio cambaleante, arrastou os pés no chão frio de terra batida, caminhou com dificuldade no escuro em direção à porta do fundo que não passava nem pano velho, seguiu em meio do mato manso do quintal até debaixo do pé de araçá. Deu bom dia pro galo, baixou as calças e começou a mijar.
Lembrou do tenebroso sonho que teve há pouco. A morte lhe chegava sem avisar na forma de fogo e ferro, partia seu corpo em milhares de pedaços e sua alma atordoada não sabia para onde ir, tudo tão rápido como piscar dos olhos, teve medo e frio, com esforço afastou o pensamento ruim da cabeça e lembrou dos tempos de criança, nos anos da invasão dos sapos, quando mijava ali mesmo debaixo do pé de araçá, derrubando um por um com seu mijo de rapaz sadio, te tanto praticar desenvolveu uma técnica de lançar jatos intermitentes e fortes como uma bala de canhão, sorrio em silêncio quando comparou com seu mijo fraco e gotejando do homem velho que se tornou, estava absorto nestes pensamentos urinários quando ouviu um barulho tão forte como o fim do mundo.
Quando o galo de Manoel anunciou o dia, já na segunda chamada, o português Felisberto Homem Del Rei estava fornicando com a índia Maíra da Lua, assim faziam toda manhã, entre a primeira e segunda chamada do galo de Manoel.
De forma mecânica e rápida, Felisberto levantou-se do leito de palha seca improvisado de ninho de amor, caminhou para o quintal e observou as estrelas matinais ainda brilhando no céu escuro. Sentia calor, estava nu e se pôs a mijar. Admirava a força que a urina saía e lembrou do sonho que teve antes de Maíra acordá-lo em ardências sexuais. No sonho, viu um monstro de ferro cuspindo fogo que saiu do fundo do mar e voava sobre a Vila dos Ilhéus e destruindo tudo em uma velocidade de piscar de olhos, via também sua bela e jovem índia Maíra da Lua ser devorada pelo monstro, se assustou com o barulho tenebroso que ouviu, um barulho dos fins do mundo.
O padre Domingos foi o primeiro capuchinho a chegar por aqui depois dos tempos que os jesuítas ocuparam-se sozinhos de doutrinar o povo pecador dos Ilhéus, diferente dos outros, Domingos tinha duas mulheres e cinco filhos, quase um herege, moravam todos na antiga casa dos padres construída ainda no tempo dos Jesuítas e abandonada desde que o padre Manoel de Andrade enlouqueceu com a invasão dos sapos, já fazia quarenta anos, e foi queimado na Santa Fogueira da Inquisição.
Domingos nunca se acostumou a acordar aos primeiros cocoricados do galo de Manoel, jurava todos os dias que ainda colocava aquele galo na panela, chegou a oferecer um farnel de farinha boa em troca do galo, subiu para dois e até três, propostas que ofendeu Manoel já que o galo era da família, a raiva foi tanta que Manoel resolveu promover uma pequena vingança levando o galo com ele para a missa dominical, sem falar nas missas anuais de São Francisco para ser benzido e na noite de Natal na missa do galo, é claro.
Levantou com dificuldade da cama de tábuas, forrada por um colchão de taboa onde dormia com as duas esposas, arrastou penosamente seu corpo volumoso até o quintal onde há tempos mandou fazer um buraco dentro de um cercado, ali abaixou as calças para mijar quando lembrou que não tinha feito a reza matinal agradecendo a Deus por estar vivo mais um dia, sem cerimônias rezou ali mesmo segurando o pinto mole e imaginando como fazer para por o galo arauto de Manoel na panela. Lembrou que uma das mulheres o acordou no meio da noite assustada com um sonho em que um monstro de ferro cuspindo fogo devorava ela, os filhos, Domingos e a outra esposa, tudo em um piscar de olhos, ele riu da mulher e disse que ela sonhou com monstro porque dormiu ser rezar, nessa hora ouviu sem saber de onde um barulho que parecia o fim do mundo.
Como descreveu tempos depois o traficante de escravos Deocleciano Campos Oliveira Sá, o acontecimento daquela manhã, ao dizer que o monstro de ferro cuspidor de fogo foi o próprio diabo que apareceu em pessoa, montado em um raio dos infernos acompanhado por uma comitiva de capetas vindo das trevas cavalgando em cães de fogo, o chão todo tremeu e um vento de tão quente fez o sangue ferver.Leia Mais