:: ‘Universo Paralelo’
UNIVERSO PARALELO
O RECORRENTE MACHISMO DA LINGUAGEM

Num grande supermercado de Itabuna, encontro a mocinha em cuja blusa se estampa, em letras garrafais, a pergunta: “Posso ajudá-lo?” Não creio que possa, enquanto eu não souber qual é, de verdade, meu problema – mas tal questão de ordem metafísica pode ficar para mais tarde. Por enquanto, o que me desperta o interesse é a recorrente tendência machista da linguagem brasileira, lamentavelmente incentivada até por quem deveria combatê-la a ferro e fogo. “Ajudá-lo” supõe que a clientela seja masculina, quando esta, nos locais de compras em geral, constitui (segundo observo), minoria. “Posso ajudar?” é a fórmula correta que um banco utiliza há muitos anos, sem discriminar ou prestigiar gêneros.
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Discriminação apoiada pelas mulheres
O modelo de que se valeu o supermercado foi bolado por alguém sem sensibilidade ou conhecimento da língua portuguesa. Ou os dois. Não deve ser cômodo a nenhuma mulher dirigir-se a pessoa que pretende “ajudá-lo”, como se macho ela fosse. Mas parece que é moda a que as mulheres não reagem (mesmo que a presidenta Dilma tenha trabalhado em sentido contrário, feminizando os cargos femininos). Até no meio universitário, mais conservador do que se imagina, é comum dizer-se que a professora Fulana é “mestre” em tal disciplina. Um horror: mulher é mestra, reitora, vereadora, presidenta, generala, bacharela, coronela – o diabo (aliás, a diaba!). O resto é discriminação, ainda que apoiada pela ala feminina.
O BANCO RASO NUNCA FOI SÃO CAETANO
Dizem, mesmo sem pesquisa científica, tese ou dissertação acadêmica a tal respeito, que o Banco Raso possui o maior número de botequins por metro quadrado do território itabunense. Adiante-se que às vezes ele é confundido com o São Caetano, mas São Caetano não é, pois o Banco Raso nunca foi santo. E voltemos, rapidamente, ao que interessa, os botequins, na intimidade ditos “botecos”. Minha surpresa é ver num almanaque (o que seria desta coluna, se não fossem os almanaques?) que o termo vem do italiano botteghino, uma espécie de mercearia e que entre nós ganhou outro significado, bem distante daquele original.
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Filosofia, futebol e sexo dos anjos
Aqui, botequim vende, especialmente, álcool, nos seus diversos perfis. É lugar de encontrar pessoas, trocar ideias, jogar conversa fora, consertar o Brasil. Com mesas às vezes mal-ajambradas, costuma ser o ambiente ideal para curtir dores de cotovelo, começar novas amizades, avaliar a cultura nacional, discutir filosofia, futebol e o sexo dos anjos. “Refúgio barato dos fracassados do amor” (conforme a canção de gosto, este sim, barato), o boteco tem atraído as atenções da literatura: Jaguar fez Confesso que bebi , 2001, e Moacyr Luz, em 2005, publicou Manual de sobrevivência nos botequins mais vagabundos.
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Vinícius: tempos ruins, uísque barato
No Villarino, Rio, 1956, copo de cerveja à mão, Tom Jobim foi apresentado a Vinícius de Morais, pelo jornalista Lúcio Rangel; o Anjo azul, em Salvador, abrigou a primeira exposição do argentino Carybé no Brasil (gostou tanto que ficou baiano!); em São Paulo, o Nick Bar, espécie de extensão do TBC (Teatro Brasileiro de Comédia) virou samba-canção, cantado por Dick Farney; Rubem Braga (foto), Heitor dos Prazeres, João Cabral de Melo Neto e Vinícius, em tempos difíceis, consumiam uísque barato no Vermelhinho, Rio; Paulo Leminski chegava ao Stuart, em Curitiba, às 10 horas, e começava a beber vodca e escrever, tendo ali criado famosa frase: “O Rio é o mar; Curitiba, o bar”. Histórias de botecos.
ORESTES E SEU QUASE MARTELO AGALOPADO
Letras de MPB: do simples ao barroco
Muitos outros autores da MPB atingem o mesmo grau de excelência de Orestes Barbosa: Noel, Tom, Vinícius, Belchior, Caetano, Antônio Maria, Gil, Paulo César Pinheiro, Dolores Duran, Cândido das Neves, Aldir Blanc, Chico Buarque – não há como esgotar a relação, pois riquíssima é a letra de nossa canção. Da simplicidade de Caymmi (“Marina, você já é bonita com o que Deus lhe deu”) ao barroco do misterioso Otávio de Sousa (com aquele coração “pregado e crucificado sobre a rosa e a cruz do arfante peito teu”), cada um pode fazer sua escolha, em meio a diferentes estilos e idades. Para mim, isso é poesia, pois tem o impacto estético da poesia.
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Versos que assustaram Sílvio Caldas
A letra de Chão de estrelas, apresentada a Sílvio Caldas em 1941, assustou o músico. Ele achou que era impossível o público aprovar versos tão sofisticados, decassilábicos, acadêmicos, coisa mais pra ser lida em livro do que ser cantada em serenata de balcão, janela e sacada. Mas foi convencido por Orestes a musicar tais versos e gravá-los. Fê-lo com tal competência que Chão de estrelas entrou para a história da MPB como o “Hino nacional dos seresteiros”, com mais de 40 regravações de artistas de variada estirpe, de Elizeth Cardoso a Roberto Carlos, de Nelson Gonçalves a Baden Powell, Carlos Alberto, Maurici Moura (acabou o espaço, voltaremos ao tema)… No vídeo, Maysa, pondo a alma em cada sílaba, como sempre.
O.C.
UNIVERSO PARALELO
1.400 ALEXANDRINOS PARA JORGE AMADO
Em meio às muitas e justas comemorações do centenário de Jorge Amado uma obra de alto fôlego literário passou quase despercebida. Digo e provo que o itabunense Piligra, poeta que joga no time principal, sem firulas, confetes ou lantejoulas, produziu, com o seu A odisseia de Jorge Amado (Editus/UESC), obra duradoura. O livro, com belas ilustrações de Jane Hilda Badaró e George Pellegrini, reúne 100 sonetos (1.400 versos alexandrinos!), com um saboroso gosto de poesia popular – aquela a que chamam literatura de cordel (algum dia, armado de mais paciência, explico por que não gosto da denominação “cordel”). Piligra é do ramo: já sustentou uma curiosa “peleja virtual” com Gustavo Felicíssimo, publicada em livro.
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Herança de Castilho e Machado de Assis
Há mais de um tipo de alexandrino, verso muito trabalhoso e que teve entre seus cultores pioneiros Antônio Feliciano de Castilho (em Portugal) e Machado de Assis (no Brasil). Na escola, aprendemos que o nome “Olavo Braz Martins dos Guimarães Bilac” é um alexandrino “perfeito”, com acento na 4ª, 6ª e 12ª sílaba. Piligra, cujo nome (Lourival Pereira Júnior) forma uma redondilha maior, escolheu o modelo dito moderno de alexandrino (acento na 4ª, 8ª e 12ª sílaba poética), como neste feliz exemplo (soneto 57), narrando as andanças de Jorge Amado: “Paris tem cheiro de mulher bela e dengosa”, ou no fecho do soneto 83, sobre Teresa Batista: “Morre cansada a prostituta da beleza”.
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Nu, Tonico corre pelo sertão afora…
Ao acaso, escolhi num dos sonetos, para mostrar a quanto chega o estro do autor de A odisseia de Jorge Amado:
“O coronel Ramiro Bastos não morreu,
É lenda viva na cabeça da Nação;
Malvina chora pelo amor que não foi seu,
Corre Tonico ainda nu pelo sertão…
Glória se entrega a Josué no seu colchão,
Rômulo foge como um louco fariseu,
Mundinho ganha o seu poder numa eleição,
Só Gabriela o seu Nacib não perdeu…
Ilhéus agora recupera o Bataclan,
As fantasias, seus alegres cabarés;
Ilhéus não sabe que a pobreza é uma vilã,
Mão que suspira ao receber falsos anéis…
Dona Maria Machadão, toda manhã,
Arruma a mesa para os novos coronéis!”
CONSIDEROU “ATO DE JUSTIÇA” O ANÚNCIO
Foi chamado pelo INSS a comprovar a existência, pois o governo, com frequência, é levado a pagar benefícios previdenciários a indivíduos mortos, ausentes, inexistentes ou desaparecidos. Achou muito oportuna a declaração de vida, não porque estivesse preocupado com o governo, mas porque se preocupava consigo. Totalmente incapaz de fazer marketing pessoal, tão em moda, viu nessa exigência uma oportunidade de promover-se, ao menos junto ao banco que lhe repassa os magérrimos proventos mensais de aposentado por tempo de serviço. “Eu estou aqui, ainda não morri, por incrível que pareça!” – imaginou-se a dizer, classificando o anúncio como ato de justiça.
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A propaganda ainda é a alma do negócio
Afinal, se as cervejas, os carros, os smartphones, os cartões de crédito, as novelas de tevê e os refrigerantes se anunciam – a rigor, são anunciados, mas o efeito é o mesmo – (“Estamos vivos e disponíveis!”, diriam, se tivessem o dom da fala), por que ele, após 35 longos anos como balconista de loja, não se anunciaria? Decidiu: não só atenderia a essa curiosidade do governo como iria, dali pra frente, fazendo disso hábito, anunciar-se o mais possível: perfil no Facebook, espalhar fotos, dar detalhes de sua vida. Por exemplo, ao espirrar, postar “Espirrei!”. Deu certo. Já foi até chamado para quebrar coisas no Black Bloc (BB), fora os convites impublicáveis. A propaganda ainda é do negócio a alma. No caso, do BB, a arma.
A CABEÇA DO “REI” SÓ DÓI QUANDO ELE PENSA

Briga de feira, foice e feras feridas
Aliás, esse movimento contra os biógrafos já não vale choro, vela ou o discurso de Roberto Carlos, de famosa alienação: tentou explicar o inexplicável, meteu seu advogado pelo meio, este brigou com Paula Lavigne, Caetano deu declarações contra Roberto, Roberto respondeu emburrado, afastando-se do embrulho, Paula calou-se, enfim, o grupo “Procure Saber” é agora um barraco, uma briga de feira e de feras feridas. Ou de foice. E, parece, foi-se (ai!) a amizade do baiano e do capixaba, de longos anos e muitas trocas de canções – mesmo com juras de amor eterno enquanto dure: “Continuarei amando quem fez Esse cara sou eu”, disse Caetano. Epitáfio bobo e de gosto duvidoso.
CANTORA DEU VOZ, VEZ E FAMA AOS NOVOS
Nunca houve cantora tão corajosa quanto Elis Regina. Criou, inovou, não se cingiu aos temas consagrados, apostou em compositores sem nome na praça e deu-lhes fama. Sou levado a pensar que Gonzaguinha, Belchior, Milton Nascimento, João Bosco-Aldir Blanc e outros não teriam chegado aonde chegaram (o estrelato) se ela não lhes tivesse dado voz e vez. Elis morreu em 1982, lá se vão 31 anos, mas vive nas canções que imortalizou – e, recentemente, num musical dirigido por Denis Carvalho, interpretada pela atriz Laila Garin (foto). Aqui, ela canta um de seus “protegidos”, Belchior. E me permitam dizer que “na parede da memória esta é a lembrança que dói mais”.
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DÂMOCLES, UM PUXA-SACO “DAS ANTIGAS”
Importante jornal de Itabuna, analisando as complicações no governo de Ilhéus, afirma que a Lei de Responsabilidade Fiscal “aponta, como espada de Dâmocles, para o pescoço do prefeito”. Se aponta, é problema do alcaide, não desta coluna, mas a expressão é notável como presença dos mitos greco-romanos na língua portuguesa. O caso teria ocorrido lá pelo séc. IV a. C. e é contado por Cícero (de quem falamos mal um dia desses): em Siracusa, onde reinava o tirano Dionísio II, Dâmocles, um puxa-saco (eles são tão velhos quanto o mundo!), costumava acariciar o ego do velho Dió, insistindo em que este era sortudo, pois vivia em palácio, cercado de luxo e riqueza. O rei resolveu dar uma lição ao bajulador.
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À falta de espada, pedra grande serve
Dâmocles foi desafiado a reinar por uma noite, para ver como as coisas funcionavam em Siracusa. E ficou lá, de boa, sentado em trono aveludado, cercado de criados que lhe serviam a melhor comida e o vinho mais fino, se achando (segundo Cícero, nem Renan Calheiros tinha igual mordomia). Porém, ao olhar para cima, viu que, apontando para sua cabeça, havia uma espada pendurada, segura apenas por um fio de cabelo, e que ele poderia a qualquer instante ter o crânio rachado ao meio. Dionísio II queria dizer que com o poder e o luxo vem o perigo constante. Pena é que sobre nossas cadeiras do judiciário, executivo e legislativo não pendam espadas afiadas. Ou robustos blocos de pedra.
ENTRE PARÊNTESES, OU
O Maracanã para a utilização adequada
“Nos tempos em que administrava o Maracanã, Abelard França recebeu carta de um torcedor, reclamando que todos os domingos ia ao estádio e nunca encontrava papel higiênico nos sanitários. Abelard França, que nunca deixava carta de torcedor sem resposta, escreveu ao reclamante: ´Mandei providenciar. Mas gostaria que o amigo compreendesse que o Maracanã não foi necessariamente feito para o uso que o senhor vem fazendo dele´” (Sandro Moreyra, Histórias de futebol – Coleção O Dia Livros).
O MAIOR SATÍRICO DA LÍNGUA PORTUGUESA
Cidade sem verdade, honra e vergonha
Pena molhada em veneno, Gregório de Matos foi severo crítico dos costumes na cidade do Salvador, e fez da Igreja Católica seu principal alvo (do que se disse, no fim da vida, arrependido). Um exemplo do primeiro caso é este epigrama: “Que falta nesta cidade? – Verdade/ Que mais por sua desonra? – Honra/ Falta mais que se lhe ponha – Vergonha./ O demo a viver se exponha,/ Por mais que a fama a exalta,/ numa cidade, onde falta/ Verdade, Honra e Vergonha”. Outra tirada do mestre, que conheço dos velhos tempos de escola, bate vigorosamente na religião: “A nossa Sé da Bahia,/ com ser um mapa de festas,/ é um presepe de bestas,/ se não for estrebaria”.
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Justiça de olhos vendados ou vendidos
Na região, Gregório de Matos teve alguns “herdeiros”, sendo Alberto Hoisel o mais notório deles. O satírico perdeu uma questão no fórum de Ilhéus, passando de vítima a réu: foi condenado a pagar custas processuais e honorários advocatícios. Irritado, respondeu ao sistema com duas quadrinhas, a primeira, contra o advogado Francolino Neto, é profundamente racista, impublicável, portanto; a segunda atingia diretamente o Judiciário: “A Justiça em seus julgados/ Anda sempre em dois sentidos:/ Ora de olhos vendados,/ Ora de olhos vendidos” (Antônio Lopes, Solo de Trombone: ditos & feitos de Alberto Hoisel – Editus/Uesc, 2001).
CRISTINA BRAGA, MÃOS TOCANDO O BRASIL
“A harpa tem a forma do mapa brasileiro, é como ter o Brasil nas mãos, tocar o Brasil”, palavra de Cristina Braga, 1ª harpista da Orquestra Sinfônica do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Em sua persistência na divulgação desse instrumento, ela mostra que a harpa, quem diria, tem alma brasileira, fazendo bonito não só nos concertos de música clássica, mas também quando se trata de choro, samba, valsa e bossa-nova. Professora de harpa na Universidade Federal do Rio de Janeiro, ela não carrega aquele ranço “erudito” que habitualmente contamina os que militam no meio acadêmico: nada de nariz arrebitado para a vertente musical brasileira chamada “popular”. Se pedir com jeito, ela toca até maracatu e baião.
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Noel, Cartola, Gal Costa, Pixinguinha
Harpista e cantora, Cristina tem perto de 20 discos gravados, com lançamento e consumo também na Europa, Estados Unidos e Japão. Sem os comuns preconceitos “culturais”, ela passeia com igual desenvoltura entre a sala de aula, o ambiente de concerto “clássico” e as apresentações “populares”. Tanto assim que sua estreia neste último campo se deu com um show de MPB em que ela tocava na harpa temas de Noel Rosa e Cartola. No currículo, trabalhos com estrelas da grandeza de Peri Ribeiro, Nara Leão, Gal Costa, Chico Buarque, Zeca Baleiro, Titãs, Lenine, Marisa Monte e outras. Aqui, com ajuda de Ricardo Medeiros (baixo), ela sola Rosa, de Pixinguinha (que teve letra do misterioso Otávio de Sousa).
UNIVERSO PARALELO
CANÇÃO QUE TROUXE FAMA E DISSABORES
Antônio Maria (1921-1964), locutor esportivo, cronista literário e compositor popular, é autor de um dos maiores clássicos da chamada dor-de-cotovelo: Ninguém me ama. A canção lhe trouxe fama (não creio que fortuna, pois os ecads da vida não brincam em serviço) e alguns dissabores. Certa vez, numa entrevista com a candidata a deputada “direitona” Sandra Cavalcanti, ele insinuou que ela era “mal-amada”. A resposta, rasante, pôs Antônio Maria no chão: “Posso até ser, mas não fui eu quem escreveu aqueles versos ´ninguém me ama, ninguém me quer…´” Outro momento ruim foi com Ari Barroso, contado por Sérgio Cabral (o jornalista, pai, não o governador, filho).
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“Mulato inzoneiro” é coisa antiquada
Maria fez um comentário sobre Aquarela do Brasil: desancou o “coqueiro que dá coco”(coqueiro não pode dar goiaba, brincou) e o “mulato inzoneiro” (coisa muito devagar, antiquada, de difícil entendimento). Ari Barroso, cheio de vaidade, feriu-se e prometeu revidar. Ao encontrar o “detrator” no Vogue, com amigos, dirigiu-se à mesa e, sem mais delongas, “intimou” o cronista: “Cante Aquarela do Brasil”. Maria não entendeu, ele insistiu, insistiu, até ouvir: Brasil, meu Brasil brasileiro/Meu mulato inzoneiro… “Chega”, diz Ari. “Agora me peça para cantar Ninguém me ama”. Insistiu, até que Maria pede: “Cante Ninguém de ama”. Resposta de Ari, aos berros: Não sei! Não sei!
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Antônio Maria: mais vivo do que nunca
Em Chega de saudade, Ruy Castro (jornalista da melhor qualidade e biógrafo de primeiro time) trata Antônio Maria sem nenhum respeito, quase a pontapés. Muitos gostam de bossa-nova (eu, então!) mas Castro exagera: é um fundamentalista, para quem não é MPB o que não seja rio, sol, bar, violão, banquinho e barquinho. A BN é de alta qualidade, mas há MPB de alta qualidade antes e depois dela. Mesmo que Ninguém me ama tenha (a ouvidos de hoje) algum quê de mau gosto, Antônio Maria está mais vivo do que nunca em, dentre outras canções, Valsa de uma cidade, O amor e a rosa (que leva jeito de bossa-nova!), Canção da volta, Samba do Orfeu e, sobretudo, Manhã de Carnaval.
SEREIA: MULHER, PEIXE E SENSUALIDADE
Canção com arranjos para harpa e vozes
Ele tapou com cera os ouvidos dos marinheiros e, já com a turma ensurdecida, se fez amarrar ao mastro do navio, impedindo-se de ouvir (e seguir) as vozes. Funcionou: as sereias capricharam no canto (provavelmente com um arranjo novo para harpa e vozes), depois foram atacadas pelo nervosismo, se esgoelaram a mais não poder, rebolaram, desafinaram, espernearam, xingaram… e Ulisses nem tchum! Na verdade, o herói bem que tentou convencer seus marinheiros (suponho que por gestos, pois eles estavam de oiças tamponadas!) de soltá-lo para ele ir “às meninas”, mas os homens, seguindo a instrução que receberam dele antes, recusaram as ordens (o que me parece fácil, se estavam surdos!).
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Quando veneno letal parece coisa boa
O herói só foi solto quando estavam a distância segura. As sereias, ofendidas com o “desprezo”, atiraram-se ao mar e se afogaram. Mas a expressão canto de sereia ficou – significando algo que nos é oferecido como ambrosia, mas que é veneno letal. Quantos de nós não já fomos, de alguma forma, submetidos ao teste do canto de sereia? Os jovens são confrontados com a “música” das drogas, políticos cantam desafinado para cooptar jornalistas, candidatos solfejam, em imitação de bichos marinhos, no ouvido do eleitor. Sem cordas nem cera, só resta ao homem moderno, para resistir ao canto dos monstros, os princípios de educação, ética, moral e cidadania.
PIANISTA QUE TEVE O JAZZ COM ESCOLHA

Apenas uma gravação a cada dez anos
Em mais de 60 anos de atividade, deixou apenas seis discos, com a média incrivelmente baixa de uma gravação a cada dez anos. Além disso, o último registro que fez, Jeito brasileiro, de 1996, teve distribuição restrita. É um grande e belo disco, com 17 faixas e alguns clássicos da MPB que embalaram gerações (Molambo, Não me diga adeus, Ai que saudades da Amélia, Nem eu, Cabelos brancos, Agora é cinza, Da cor do pecado, Tarde em Itapuã, Se acaso você chegasse, Na baixa do sapateiro, A voz do morro…). Para exemplificar a técnica do pianista fluminense, escolhemos Triste, de Tom Jobim, do LP Um piano dentro da noite/1979.
O.C.
UNIVERSO PARALELO
CÍCERO, O SENADOR QUASE SANTIFICADO
Voltemos, promessa é dívida, à Roma de César, Pompeu, Brutus, Catilina, Marco Antônio e, sobretudo, de Cícero, que é nosso compromisso. Os que bebem na história “oficial” sabem que Marco Túlio Cícero, além de orador extraordinário, é cidadão romano “compassivo e culto”, “honrado e desprendido”, “dotado de princípios de dever, bondade e espírito público”, “refinado e amável”, “um dos filhos mais diletos de Roma”, “uma das mais preciosas joias do Império”, “que se recusou a viver numa tirania”, pondo-o a poucos passos da santificação. Já os revisionistas (que opõem Cícero a Júlio César) discordam desse festival de louvações.
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O patife mais desprezível da história
Entre americanos e britânicos “os ciceronianos são 95% e os cesarianos são um punhado”, diz o historiador Arthur Khan, integrante do punhado. Esses estudiosos não alinhados atribuem a Cícero uma atividade de caça às bruxas (pessoas que “ameaçavam” a aristocracia). Era “pena alugada”, como se diria mais tarde. Encontro entre os cesarianos o alemão Friedrich Engels (alma gêmea de Marx), que chamou Cícero de “o patife mais desprezível da história”. Vindo de baixo, sem a dita nobreza de origem, o orador pôs sua eloquência a serviço dos poderosos e enriqueceu no combate a qualquer ideia de democracia, pois “só os ricos devem governar”.
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Capitalizando o medo da aristocracia
Combateu o voto secreto, por impedir aos ricos saber o que a plebe pensava. Para ele, diz o cientista político Michael Parenti, o povo era “rasteiro e imprestável”, “manada pronta para a revolução”, “bando de criminosos e degenerados”, que “participa de manifestações de massa e suga o tesouro”. Reacionário e oportunista, disputou o consulado com Catilina (lembram das Catilinárias?) e usou este para capitalizar o medo dos ricos, método político ainda vigente hoje entre nós. Cônsul, mandou executar “conspiradores” ligados a Catilina, sem julgamento. Anos depois, foi executado, também sem julgamento, a mando de Marco Antônio.
NÃO HEI DE METER A COLHER EM TAL ANGU
General modelo histórico de crueldade
O trecho “Ah, se ao te conhecer/ dei pra sonhar, /fiz tantos desvarios/ rompi com o mundo,/ queimei meus navios…” me serve de gancho para retomar aquela presença da mitologia em nossa linguagem: queimar os navios, significando uma decisão sem volta, remonta ao século IV a. C., quando um certo general Agátocles (que nome!), tido como modelo histórico de crueldade, mau, feito um pica-pau (mandou degolar os próprios filhos), levou seu exército de navio até Cartago (na foto, ruínas), e lá fez uma fogueira com as embarcações. Sem poder voltar, os soldados sabiam que o preço do fracasso era a morte. Se venceram ou morreram, não sei.
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Conquistadores não perdoavam: matavam
Próximo a nós (México, século XVI), houve um episódio parecido, quando o espanhol Fernão Cortez queimou os navios. Embora haja versões afirmando que o espanhol foi outro, Pizarro, pesquisadores confiáveis as desmentem. E tampouco Cortez queimou as embarcações, a não ser figuradamente: ele as destruiu, ao sentir que seus soldados tinham medo de embrenhar-se em território estranho. O resultado é o mesmo: sem transporte para casa, eles partiram para a jugular dos nativos. No México, no Peru e em Ilhéus (Francisco Romero), os espanhóis não brincaram de matar nativos, mataram. E a gentil leitora, se mal pergunto, já queimou os navios por alguém?
ARMSTRONG, OU COMO CANTAR SEM LETRA

Para alguns, o scat é “indispensável”
Nem todo os intérpretes utilizam esse recurso, que certo público identifica como “indispensável”. É bom lembrar a “opinião” de duas cantoras do topo da tabela do jazz: Sarah Vaughan muito pouco se valeu do scat; Billie Holiday, simplesmente, não o usava. Ella Fizgerald (a outra das três grandes cantoras negras) e a branquela Anita O´Day foram cultoras fiéis do dá-bá-dá-bá-dá. Por mera curiosidade (tenho dúvidas se não seria preferível o canto, sem firulas, valorizando a letra), mostramos aqui a soberba Ella (Festival de Montreux, 1977), num longo scat singing de Samba de uma nota só – clara e merecida homenagem a Tom Jobim e Newton Mendonça.
O.C.
UNIVERSO PARALELO
PESADELO: OS BÁRBAROS ESTÃO CHEGANDO?
Tive um sonho (melhor: pesadelo) em que os Estados Unidos se preparavam para invadir o Brasil. Um amigo, a quem consultei sobre a estranha premonição, analisou o quadro e me diagnosticou com uma só palavra, pronunciada entre dentes e com olhar de pena: “Paranoia”. Sem me dar por vencido, argumento que eles consideram os três últimos governos brasileiros (Lula-Lula-Dilma) como “anti-americanos”; digo que aqueles gringos se acham os xerifes do mundo, com direito a invadir qualquer espaço, em nome da “democracia” ou mesmo em nome de coisa nenhuma. Lembram da fábula “O lobo e o cordeiro”, de La Fontaine? O lobo buscava razões para comer o cordeiro…
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Sob as justificativas de fome e força
Não encontrou motivos, mas o borrego foi almoçado assim mesmo, sob as suficientes justificativas de fome e força. Os americanos queriam invadir o Iraque, criaram o manto (ou o mito) das armas químicas e lá foram. Não encontraram tais armas, mas quem estava interessado nisso? Meu amigo me aconselha a abandonar a ficção e cair na real: “Tá certo que os americanos não são flores que se cheire, mas eles têm maiores preocupações do que o Brasil, pois vão invadir o Irã”. Não desisto. Eles já invadiram Cuba (bem menos importante do que o Brasil) e aqui, em 1964, derrubaram um presidente eleito e treinaram torturadores para o regime militar. E depois do Irã?
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Ele queria dobrar Lula e não conseguiu
Noto que, com essas lembranças, ele se mostra de semblante ensombrado. Aproveito o ferro quente, e malho, com esta pergunta: Qual foi o primeiro país latino-americano que Obama visitou? E ele responde, orgulhosão: “Brasil!” Pois é, digo, à moda de Ataulpho Alves. Ele queria dobrar Lula e não conseguiu; depois, quis dobrar Dilma (quem é ele, tão fraquinho, pra enfrentar Dilmona!), não conseguiu… Quis dar uma de araponga, se ferrou, pois a velha Dilma descobriu a safadeza e até cancelou a visita… “Nada disso tem peso diplomático…”, disse ele, pouco convicto. Aí, fui-lhe à garganta: E o petróleo do pré-sal? Ele pôs as mãos na cabeça: “Meu Deus!”
ENTRE PARÊNTESES, OU
“O MUNDO EVOLUIU. É UMA PENA DANADA”

Sem bom texto, não existe bom cinema
A publicitária carioca Mariza Gualano, fã de cinema, selecionou cerca de 840 frases de mais de 600 filmes, para o livro Ouvir estrelas. Aqui, aproveitando o tema, algumas frases sobre guerra: “Acusar um homem de assassinato por aqui é como multar alguém por excesso de velocidade na Formula Indy” (Martin Sheen, em Apocalipse); “Eu não sirvo para a guerra, pois dormi com a luz acesa até os 30 anos” (Wood Allen, em A última noite de Boris Grushenko); “Sobreviver é a única glória da guerra” (David Carradine, em Agonia e glória); “Eu gosto do cheiro de napalm de manhã. Cheiro de… vitória” (Robert Duvall, em Apocalipse).
A BOA MÚSICA BRASILEIRA “IMPORTADA”

Presença de duas feras internacionais
A expressão desrespeitosa foi empregada por um repórter, que ouviu o que não queria. Rosa Passos é Rosa Passos, cantora e compositora de recursos próprios – e diz do seu ídolo aquilo que muitos colegas seus sentem, mas nem sempre expressam claramente: “João Gilberto amigo/ eu só queria/ lhe agradecer pela lição”, canta a artista, em “Essa é pro João”, faixa nove do CD “importado” Amorosa. Prova do prestígio de Rosa Passos “lá fora” é a presença nesse disco de duas feras internacionais: o clarinetista cubano Paquito D´Rivera e um grande nome do jazz na França (falecido em 2008, aos 90 anos), Henri Salvador.
O.C.
UNIVERSO PARALELO
MONTEIRO LOBATO E O “PATRULHAMENTO”

Creio que ninguém de minha geração sentiu prazer na polêmica que envolveu o escritor Monteiro Lobato (1882-1848), acusado de racismo. De Caçadas de Pedrinho (de 1933) foram pinçadas referências racistas, em relação a Tia Nastácia, negra. Numa delas, o autor a compara a uma “macaca de carvão”. É racismo “leve”, dissimulado, que o Ministério da Educação, alertado, não levou a sério – e em que vários escritores, Ziraldo à frente, pregaram uma velha etiqueta: patrulhamento ideológico. Tudo ia bem até que chegamos às cartas do autor do Sítio do pica-pau amarelo – e vimos que o racismo em Monteiro Lobato é de estarrecer seus velhos admiradores.
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De tempo em que o racismo era “moda”
O escritor manteve vasta correspondência com o paulista Renato Kehl (1889-1974) e o baiano Arthur Neiva (1880-1943), revelando-se adepto de uma ideia esdrúxula chamada eugenia (que defendia a superioridade da raça “branca” sobre as demais), definida como “o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer qualidades raciais das futuras gerações”. O racismo estava em “moda” no começo dos anos vinte: lembremo-nos de que Euclides da Cunha também era apegado a isso, e que, tendo Renato Kehl como líder, criou-se, em 1918, uma certa Sociedade Eugênica de São Paulo. Kehl não queria que o Brasil aceitasse imigrantes, a não ser “brancos”.
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Povo da Bahia comparado a… esterco
A Bahia, com Neiva, foi o outro centro de difusão do racismo. Lobato aqui esteve e ficou chocado com o povo, que chamou de “feio material humano”, “um resíduo”, “um detrito biológico”, mas reconheceu: “a elite que brota como flor desse esterco tem todas as finuras cortesãs das raças bem amadurecidas”. O racismo americano entusiasmou o autor de Urupês, em particular os matadores de negros. “Um dia se fará justiça à Ku-Klux-Klan”, diz ele em carta dos Estados Unidos, pregando que o Brasil tenha uma coisa “dessa ordem”. As cartas de Monteiro Lobato, escritor de alta qualidade, são de arrepiar. Mais uma prova de que caráter nada tem a ver com talento.
UM MONSTRO QUE MORREU POR SER QUENTE
Cícero: tempo, imaginação e verdade
O herói Belorofonte, espertíssimo, encontrou um jeito de atacar a fera, sem virar carvão: montou em Pégaso, o cavalo alado, veio pelo alto, pairou acima da malvada (em feitio de Dario Beija-Flor, lembram-se?) e atirou-lhe na bocarra aberta uma grande bola de chumbo. Aquecido por aquele hálito de 480 graus Celsius, o chumbo se liquefez e escorreu goela abaixo do monstro mal-intencionado e, claro, o matou de faringite. No século I a. C. Cícero indagava: “Quem hoje acredita em quimeras? O tempo destrói as invenções da imaginação, mas confirma os julgamentos da natureza e da verdade”. Quimera já estava se tornando símbolo de coisa situada além dos limites do possível. Está tudo em Ferdie Addis (A caixa de Pandora – Editora Casa da Palavra/2012).
UM PIANISTA BIZARRO E REVOLUCIONÁRIO
Para escândalo das escolas de música
Foi pianista único, que nunca deu atenção ao trabalho alheio, nem ouviu cuidadosamente os mestres. Quando, numa turnê pela Europa, lhe perguntaram quem exercera maior influência em sua música deu uma resposta ao seu estilo: “Eu, naturalmente”. É justo. Desde o começo (tentou o trompete, depois passou para piano e órgão), seu trabalho é pessoal, com acordes dissonantes e técnica fora dos padrões: martelava o teclado, mantendo os cotovelos abertos (tipo asas de borboleta), num estilo capaz de escandalizar qualquer aluno de conservatório. Mesmo assim, aos 14 anos já era profissional, tocando em festas e igrejas, ao tempo em que se familiarizava com o jazz do Harlem.
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As crises de mutismo incluíam Nellie
Compositor festejado, tem entre suas produções mais conhecidas Round midnight, que deu até nome de filme (Por volta da meia-noite, de Bertrand Tavernier), Monk´s dream, Something in blue e Crepuscule with Nellie (dedicado a Nellie, sua mulher, por quem era apaixonado – mas com quem passava dias sem falar). Num festival de jazz, em Copenhague, Monk apresenta seu tema mais popular, Round midnight. Interpretação magistral, com o apoio de um grupo de feras conhecidas, catalogadas e reverenciadas poucas vezes reunido: Dizzy Gillespie (trompete), Sonny Stitt (sax alto), Al McKibbon (baixo) e Art Blakey (bateria).
O.C.
UNIVERSO PARALELO
A RIXA QUE SE CONSERVA EM BANHO-MARIA
Cearenses e pernambucanos não se bicam. Mas, inimigos cordiais, mantêm sua rixa em banho-maria, coisa parecida com o fogo de monturo que arde entre Ilhéus e Itabuna. Sendo o Recife cortado pelos rios Capibaribe e Beberibe, com muitas pontes, os orgulhosos pernambucanos chamaram a cidade de Veneza brasileira. Várias músicas abordam o tema, a exemplo de Recife, cidade Veneza (de cuja autoria não lembro) e, sobretudo, Veneza americana (Nelson Ferreira-Ziul Matos). Esta, em 1969, com lei sancionada pelo prefeito Augusto Lucena, foi oficializada como “Canção do Recife”. Veneza brasileira ganhou de cearenses mais despeitados uma paródia indigna: Venérea brasileira.
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Versos que vão do simples ao simplório
A letra de Veneza americana, por certo, não ganharia o Nobel de Literatura. São versos que ultrapassam a condição de simples e atingem a de simplórios. Talvez por isso o povo, nas ruas do Recife, não tome conhecimento deles: “É Veneza americana/ do mais lindo céu de anil,/ minha terra hospitaleira,/ namorada do Brasil./ Seus coqueiros junto ao mar/ no mais doce farfalhar/ a trazer tranquilidade,/ crescem, crescendo a beleza/ desta cidade Veneza,/ ninho de felicidade./ E o Capibaribe a rir é,/ no seu curso a seguir/ da cidade a própria vida,/ a poesia imorredoura,/ a mensagem sedutora/ da Veneza tão querida”. Recife merece coisa melhor.
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Lembranças de Vênus são pouco nobres
Resta lembrar que a expressão doença venérea (antigamente, “doença da rua”, hoje DST) tem origem nobre: nasce de Vênus, a deusa romana do amor e do sexo (equivalendo, mais tarde, à Afrodite dos gregos). Muito popular, Vênus era a figura maior de uma festa anual, de que participavam com igual entusiasmo “senhoras da família romana” e prostitutas. Júlio César se dizia descendente da deusa. Aquele poderoso romano não gostaria de saber que sua deusa, dois mil anos depois, seria lembrada pelo nome de um grupo de “doenças da rua”. Ou por uma camisa que, não se apressem, não é, a rigor, peça de vestuário: camisa de Vênus, aquela.
O LUGAR-COMUM PARECE A HIDRA DE LERNA
Se você sabe quem é Loki, não me diga
A mais notável cabeça dessa hidra, nos últimos tempos, refere-se a… recheio!
Mentes preguiçosas e repetidoras de “novidades” aposentaram o verbo encher, trocado por rechear. Nada mais está cheio, repleto ou ocupado por: está recheado de. Uma consulta rápida a veículos que me cercam fornece o abono necessário: “Setembro está recheado de shows dos ex-participantes do The Voice”, diz um blog; um colunista de filmes dispensáveis alardeia: “Thor – o Mundo Sombrio está recheado de cenas com Loki” (por favor, me deixem morrer na ignorância, não me digam quem é Loki); importante jornal do interior paulista me vem com esta: “Último dia do Viva Bauru está recheado de atrações”.
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Na culinária rechear “pega” muito bem
Encerremos a pequena lista para não afugentarmos quem lê este espaço: noutro blog, um leitor diz que ele (o blog, não o leitor!) “é muito bem feito e sempre está recheado com as melhores dicas de livros” (provavelmente o sujeito precisa ler um, de Estilística). E para não dizerem que ando de mau humor, afirmo-lhes que encontrei também uma prática receita de pimentão recheado com carne moída – e isto me leva a afirmar que o verbo rechear, no espaço da cozinha, está com emprego corretíssimo. A propósito, a gentil leitora sabe fazer maxixe de gringo recheado? Não sei fazer, mas a ideia de comê-lo bem temperado (os colunistas sociais diriam… “degustá-lo” – argh!) me deixa com a boca recheada de água!
COMOVENTE ENCONTRO DE PRES E LADY DAY

A música como remédio para desavenças
Lady Day está ao lado de Ted Wilson (piano), Buck Clayton (trompete), Jo Jones (bateria), Gerry Mulligan (sax barítono), Vic Dickenson (trombone) e Milt Hinton (contrabaixo). Só falta mesmo o velho Pres, de amizade estremecida. Quando ela surge em cena e canta a primeira frase de “Billie´s blue” (Lord, I love my man), um dos temas preferidos da antiga dupla, o tenorista não resiste: pega seu já maltratado sax (diz o folclore que o instrumento era emendado com esparadrapo), sobe ao palco sem ser chamado e retoma seu lugar ao lado de Billie. A versão aqui mostrada, entretanto (talvez de 1944), tem Roy Eldridge (trompete, uma abertura à Armstrong), Jack Teagarden (trombone), Coleman Hawkins (sax tenor), Art Tatum (piano) e outros stars.
O.C.
UNIVERSO PARALELO
AFIRMAÇÃO QUE PRECISA SER CONTESTADA

Não usemos termos como estarrecedor, consternador ou algo desse nível dramático. Talvez surpreendente. É isto: surpreendente e injusto é um comentário do professor Arnaldo Niskier, a respeito de Marcos Santarrita, no livro 100 anos de Jorge Amado – história, literatura e cultura (Editus-UESC/2013): “Apesar de ter rejeitado a obra de Jorge Amado na adolescência, devido a seu passado comunista, o escritor Marcos Santarrita o considera o maior autor brasileiro…”, diz o ex-presidente da Academia Brasileira de Letras, à pág. 24. Preocupa-me que, devido ao peso intelectual de quem assina esta afirmação, ela passe por verdadeira.
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Frase que não foi dita, e nunca seria
Não é. É ofensa à memória do escritor de Itajuípe. Quem conhece um pouco do romancista e sua obra sabe que isto nunca foi dito, e nunca seria. A frase, que condena o passado comunista de Jorge Amado, prega no autor de A solidão dos homens uma injusta pecha de reacionário, além de uma apreciação negativa da escrita amadiana igualmente infundada. Ao contrário: MS afirmou que se descobriu escritor ao ler Jorge Amado e perceber que com pessoas “comuns” era possível fazer literatura. Antes de Jorge, o romance era de capa e espada, nos salões burgueses, algo muito “francês” para o gosto do adolescente rebelde, leitor de gibis.
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Lamarca inspirou Danação dos justos
O educador Arnaldo Niskier (que não será molestado, pois não é leitor desta coluna) ouviu mal. Na adolescência, Marcos Santarrita (foto) cooperava com o jornal O Paladino, do único comunista de Itajuípe, Clodoaldo (o jornalzinho que queria mudar o mundo foi chamado de O Paradigma, no romance Danação dos justos/1977). Sem militância ostensiva, o escritor simpatizava com a esquerda, era entusiasta de Fidel Castro, da Revolução Cubana e da União Soviética – apesar de amigos que consideravam “romântica” sua posição. Sem valer-se do panfleto (ou do “romance proletário”), sua literatura é engajada: condena as injustiças sociais e a ditadura de 1964 – e se alguém duvida, saiba que Danação… foi inspirado em Carlos Lamarca.
O PNEU VELHO E O RETORNO DA INFLAÇÃO
Pneu novo só banqueiros podem queimar
Com tanto pneu queimado, o estoque se reduz, as borracharias esgotam as reservas, o pneu velho ficará pela hora da morte. Seremos todos vítimas da inflação de demanda (mais consumo, maior preço), sacrificados à lei da oferta e da procura. “Supondo que” (como dizem os economistas) isto aconteça, que plano B têm os manifestantes? Queimaremos pneus novos? Certamente não, pois o preço é proibitivo (a não ser para protesto de banqueiros pelo aumento das taxas do cartão de crédito). Faremos protestos a frio? Não tem graça, pois manifestação que não exala fumaça e labareda ninguém leva a sério. Urge encontrar opções.
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Protestos espantam mosquito da dengue
E assim, o pneu velho, pelo qual não se dava um real furado, deixa o anonimato do lixo e das borracharias (de que era canhestro símbolo) para se transformar em artigo de primeira necessidade. Suponho (ops!) que já exista por aí, à espera de ser regulamentada pelo Ministério do Trabalho, a profissão de “Caçador de Pneu Velho” (ou CPV, nestes tempos de amor às siglas, acrônimos e abreviaturas), uma prova da mudança que tanto se reivindica. Mas já temos um ganho, ainda não devidamente avaliado pelas autoridades: as manifestações de rua, com a queima de pneus, fizeram muito Aedes aegypti ir zumbir em outra freguesia.
O PRIMEIRO A GRAVAR ROCK EM PORTUGUÊS

Cauby! Cauby! Cauby!… e o MPB-4
Quando se junta um cantor extraordinário e um grupo vocal igualmente invulgar cria-se, com desculpas pelo lugar-comum, o chamado “momento único”. Deve ser o que ocorreu no dia em que se encontraram o cantor Cauby Peixoto e os quatro rapazes do MPB-4. Conceição (Dunga-Jair Amorim), já interpretada por Cauby não se sabe quantas vezes, foi rearmonizada e ficou como se tivesse sido composta ontem, num exercício vocal impossível a amadores. Estes, mesmo ensaiando por muito tempo, dificilmente não chegariam a um resultado desastroso. Cauby, diante da “invenção” do MPB-4, parece sentir-se como se houvesse cantado com eles a vida inteira. Quem sabe, sabe.
O.C.
UNIVERSO PARALELO
GONÇALVES DIAS E SEUS ÍNDIOS HEROICOS

Adianto à gentil leitora e ao atento leitor que venho de tempos em que falar bem de índio não me fazia candidato a Judas de Sábado de Aleluia. Por isso decorei vastos trechos de I-Juca Pirama, o longo poema de Gonçalves Dias (1823-1864), com aqueles indígenas heroicos, grandiosos, valentes, que tanto me emocionaram – e, acabo de ver, ainda me emocionam. Pois é que voltei àquela fonte da infância, de onde tirei estas expressões: “caiu prisioneiro nas mãos dos Timbiras”; “as almas dos vencidos Tapuias, ainda choram”; “vaguei pelas terras dos vis Aimorés”; “quero provar-te que um filho dos Tupis vive com honra” – creio ser suficiente.
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Academia de vestido longo e salto alto
A universidade brasileira, ainda elitista, arrogante, de vestido longo e salto alto (ou de fraque e bengala), costuma valer-se de linguagem própria, altissonante e, muitas vezes, vazia e ociosa. É o jargão que a identifica e isola, pois, deliberadamente, não atinge os mortais comuns. É bem o caso desse “índios Tupinambá” que a academia emana em flagrante agressão à lógica da linguagem. Gonçalves Dias há de ser copidescado: “nas mãos dos Timbira”, “vencidos Tapuia”, “terras dos vis Aimoré”, “filho dos Tupi” – e por aí vai esse festival de esnobismo. E a mídia, com seu pendor para a repetição, copia e engole tais sandices sem mastigar.
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Forma clássica, sem rasuras ou emendas
“Meninos, eu vi!”: agora mesmo, à luz do fogaréu em que Buerarema ardeu, grupos de estudiosos da questão indígena em Porto Seguro se pronunciaram, denunciando a reincidência de ações violentas na região. É ótimo que se manifestem, mas dispensável é esse festival de “apoio aos Tupinambá” e “conflitos entre índios Tupinambá e fazendeiros”. Penso que com “índios Tupinambá” se queira dizer “índios (da etnia) Tupinambá, obviamente uma complicação (elipse?) desnecessária. É como escolher a linha curva para ir de um ponto a outro. “Índios Tupinambás” é a forma clássica, nos bons autores, que dispensa qualquer tipo de rasura ou emenda.
UM OFFICE BOY COM O DOM DA UBIQUIDADE
Desatenção com a gramática e a lógica
A prática, não raras vezes, consegue mudar a teoria (aliás, nada digo de novo, pois é no dia a dia do escrever e, mais ainda, do falar, que a língua se forma e se transforma). Neste caso, o princípio teórico, a lei, fala em citar pessoa em lugar incerto, não sabido ou indeterminado – atendendo à verdade de que o réu não é onipresente, não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Operadores que não leram a regra com atenção vulgarizaram o “incerto e não sabido”, em detrimento da gramática e da lógica: incerto é “indeterminado”; não sabido, “ignorado”. Diga-se, então, “incerto ou não sabido”, sem traumas à norma.
LETRA DE MÚSICA PARA TESE DE MESTRADO
Dos sertões de Guimarães a Jobim-açu
É notável a “louvação” que o poeta faz de grandes nomes das artes brasileiras, muitas vezes fundindo palavras. Lá estão “sertões, Guimarães” (lembrança de Guimarães Rosa e seu ambiente romanesco), “Caandrades” (sobre os Andrade: Drummond, Mário e Oswald), “Marionaíma” (fusão de Mário de Andrade e Macunaíma), “Bachianas” (referência direta às Bachianas Brasileiras de Villa-Lobos), “Tinhorão” (homenagem ao crítico musical José Ramos Tinhorão). Porém, o mais louvado de todos é Tom Jobim, com acréscimos que sugerem “grandeza”: “Jobim-açu” (açu é “grande”, em tupi), Jobim akarore (akarores são índios gigantes) e Ujobim (alguma coisa como Jobim pai).É o Brasil que o Brazil não conhece, de que fala o refrão.
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O Brasil que pode socorrer o Brasil
É curiosa a oposição Brasil/Brazil (com grafia e pronúncia distintas), como a confrontar “brasis” diversos: “o Brazil não conhece o Brasil/ o Brasil nunca foi ao Brazil”. Esta dicotomia vai confluir para uma espécie de sub-refrão em que desaparece o Brazil, e o Brasil ressurge a pedir socorro… ao Brasil. O autor parece querer dizer que as soluções dependem de nós mesmos. (Parte da “erudição” mostrada neste texto foi apreendida de um estudo publicado por Jussara DalleLucca, que explica o significado dos estranhos termos empregados por Aldir Blanc). E quase não tive espaço para dizer que Elis Regina, como sempre, está à altura desta forte mensagem política, de 1979, do autor de O bêbado e o equilibrista (1978).
O.C.
UNIVERSO PARALELO
UM NARRADOR QUE JÁ NASCEU ADULTO
Tenho dito que meu tempo é pouco para ler tudo que me aparece em prosa e poesia. Daí, sempre com leituras atrasadas (é certo que morrerei antes de ler todos os livros que pretendo ler), não tenho como me dedicar aos autores novos – algo que soa discriminatório e cruel, bem sei. Há dias, como exceção a esta regra, li Ponte estreita em curva sinuosa (Editora Universidade Federal do Recôncavo Baiano), do ilheense Aquilino Paiva, e me felicitei pela descoberta. Na coleção de 15 contos (com prefácio de Reheniglei Rehem) penso assistir a um fenômeno: o nascimento de um contista adulto, da melhor qualidade, na trilha dos grandes que este sul-baiano produziu.
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Em todos os contos, a boa literatura
Em Ponte estreita… não há liame claro entre os textos, e o locus da narrativa nem sempre é identificado. Às vezes, tal percepção soa irônica, como em “Cemitério”, que se passa em Cruz das Almas, ou em “O pacto”, quando um sujeito que tem acordo com o Capeta vai dar com os costados em Senhor do Bonfim. Há crítica social em “O caso do outdoor” e “Lôro d´água”, laivos de thriller policial em “O eletricista” e “Punhal de prata”, sugestões de humor negro em “O quinto suicídio de Sabrina Miranda” e “Joana e Avelino”. Na maioria dos contos, uma pitada de suspense e em todos a boa invenção literária, feita por mão madura, sem as pegadas deixadas pelos amadores.
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Trecho: a morte como meio de vida
“A morte, pra mim, era meio de vida. Coisa que sabia fazer muito bem, por que não trabalhar com isso? Se Deus existe, acho que estou perdoado, pois não matei ninguém com raiva, nem por vingança, nem pra roubar. Nunca foi pessoal. Eu só ficava sabendo o nome do escolhido que era para poder encontrar e realizar o contrato. Se mereceu, nem quero saber. É tão somente um serviço. Só aperto o gatilho, ou encravo a faca, é morte que eu não decido, só faço aquilo que nem todo mundo sabe fazer, por fé, por covardia, ou falta de jeito, três coisas que eu não tenho” (de Punhal de prata, com epígrafe de Alceu Valença – pág. 60).
ENTRE PARÊNTESES, ou
Esperei, esperei, ninguém comentou, comento eu, tantos dias depois. O papa Francisco, que encantou os brasileiros, saudou dona Dilma como “presidenta”. Não fosse a simpatia do chefe da Igreja Romana, teria recebido pedradas de certos setores – cuja ignorância os leva a identificar este feminino de presidente como “coisa do PT”. Os que enxergam um pouco adiante do espaço nasal sabiam que não seria diferente: todas as línguas da família (português, francês, italiano, espanhol) usam, neste caso, “presidenta”. O papa, com formação vocabular na Argentina e da Itália, jamais chamaria uma mulher de “presidente”. O que, de resto, é rematada grosseria.
POEMA DE DRUMMOND E ETERNA ARROGÂNCIA

Conversa de novato com grande estrela
Um ótimo diálogo de Meia-Noite em Paris (aqui comentado há dias, com a aprovação dos leitores que conhecem o filme) está no primeiro encontro dos personagens Gil Pender (Owen Wilson) e Ernest Hemingway (vivido por Corey Stoll). Pender é um escritor iniciante, e Hemingway é… Hemingway! Diante da hesitação do novato, o autor de Por quem os sinos dobram? joga duro: “Nenhum tema é ruim se a história é verdadeira e se a prova é limpa e honesta”. E o melhor é quando Pender, timidamente, pede para Hemingway ler os originais do livro em preparo. “Eu só queria uma opinião”, diz. “Minha opinião é que detesto”, ouve.
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Abundância de egos grandes e pesados
Diante da frase grosseira, Pender argumenta: “Você nem leu…”, ao que faz Hemingway voltar à carga: “Detesto textos ruins. E se for bom, terei inveja e detestarei mais. Não queira a opinião de outro escritor. Escritores são competitivos”. Pender contemporiza: “Não vou competir com você…” e Hemingway volta a agredir: “Você é modesto demais, não é muito masculino. Se você é escritor diga que é o melhor escritor (dá um murro na mesa). Mas não será enquanto eu viver, ou quer decidir isso no braço?” O personagem mostra um tipo comum no meio intelectual, onde abundam egos grandes e pesados (na foto, Corey Stoll, agressivo, de dedo em riste).
O PIANISTA PREFERIDO DE MILES DAVIS
UNIVERSO PARALELO
CÉSAR E UMA CONFUSÃO DE DOIS SÉCULOS
Júlio César, aquele mesmo, morreu em 44 a.C., por falta de informação. Sem o Ibope, a Gasparetto Pesquisas ou o Vox Populi, não percebeu que, a exemplo de alguns prefeitos regionais, tinha a popularidade no chão. Enquanto o ditador estava “se achando”, um grupo de senadores tecia seu assassinato, com a ideia geral de que cada um dos ilustres parlamentares desse uma facada no homem, de modo que todos dividissem a culpa pela execução. À frente do complô estavam Marcus Brutus e Decimus Brutus, respectivamente filho (para alguns historiadores, apenas amigo) e companheiro de armas do general romano. E aqui começa uma confusão que já dura mais de dois séculos.
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Uma frase inventada por Shakespeare
Já furado feito um queijo suíço, César vê Brutus (qual deles?) vindo em sua direção, de adaga em riste, e, surpreso, teria decidido deixar uma frase para a história. Pronunciou um Et tu, Brute? (Até tu, Brutus?), segurou na mão de Deus e foi-se. Há controvérsias. Diz-se que a frase foi dita em grego, Kai su, teknon? (Até tu, filho?), enquanto a latina teria sido inventada por Shakespeare, em Júlio César (Ato III, cena 1). Para o cientista político Michael Parenti (O assassinato de Júlio César – Record/2005), é tudo mentira, pois César nunca pensou em Marcus Brutus como filho: se o general ficou mesmo consternado teria sido com o traiçoeiro Decimus Brutus, companheiro de guerras.
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Líder popular hostil aos privilégios
Segundo Parenti (na contramão da história oficial), César foi o último de uma linhagem de reformistas assassinados por conservadores, por abraçar a causa do povo, tido em Roma como uma turba interessada apenas em pão e circo. Por que um seleto grupo de senadores assassinou Júlio César, aristocrata como eles? – inquire o autor. E responde: mataram César porque viam nele um líder popular hostil a seus privilégios de classe. O assassinato teria sido mais um dos atos violentos que marcaram grande parte do século, “manifestação dramática da velha disputa entre conservadores ricos e reformistas apoiados pelo povo”. A morte de César é, vista assim, algo bem contemporâneo.
ENTRE PARÊNTESES, ou
AS PIORES VOZES JÁ GRAVADAS EM DISCO
Deus perdoa aos bêbados e aos loucos
Observem que não falo de amadores, sambistas de mesa de bar, cantores de caraoquê (eu os detesto, mas Deus perdoa aos bêbados e aos loucos!) ou vocalistas de banheiro. Falo de profissionais, de gente que grava música, põe no mercado e ainda encontra colher de chá na mídia. Xuxa é, todos sabem, grande vendedora de discos, com o apoio da Globo/Som Livre; Pelé, em 1969, no auge da fama, teve o desplante de gravar com Elis Regina duas canções da autoria dele. Felizmente, ficou nessas duas, salvo uma ou outra investida pela publicidade. Se a gentil leitora nunca ouviu o disco da dupla Pelé-Elis, aceite meu parabéns.
COMPROMISSO RENOVADO COM A (BOA) MPB

Sem medo de Belchior nem Elis Regina
Cultor das baladas românticas, o artista norte-rio-grandense-quase-baiano conserva a influência daqueles que se dizem menos cantores do que “cantadores”. Vem da linhagem de Geraldo Azevedo, Xangai, Almir Sater e Elomar, mas com sintaxe própria. De Xangai ele gravou o engraçadíssimo ABC do preguiçoso (que me parece velho tema do folclore, adaptado). De Belchior, no vídeo, uma composição cheia de brasilidade, misturando passado e futuro, clima interiorano, incertezas da juventude e velhas canções da riquíssima pauta nacional. Poucos cantores gravam Belchior – talvez intimidados pelas interpretações de Elis Regina. Canindé tocou em frente, com Tudo outra vez.
UNIVERSO PARALELO
DE LIVROS E GENERALIZAÇÕES MENTIROSAS
Muita gente dá o mesmo conselho: “leia, leia, leia”, mas não dizem a suas vítimas o que elas devem ler. A leitura, como toda nova experiência, tem potencial de nos realizar ou frustrar. Creio, sem ser especialista no tema, que há textos adequados à idade, ao nível de saber e à sensibilidade de cada um de nós. Com livros, assim como com crianças, precisamos nos munir de isenção e coragem. “Adoro crianças!” – ouço com frequência esta generalização, mentirosa como todas as generalizações. Eu também gosto muito de crianças, mas reconheço que algumas delas são profundamente irritantes. Livros também são adoráveis, mas haveremos de admitir que muitos deles são intransponíveis.
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Umberto eco e a erudição que machuca
Alguns livros de difícil leitura para não iniciados: Os sertões (Euclides da Cunha), A divina comédia (Dante Alighieri), Os lusíadas (Camões), A montanha mágica (Thomas Mann), O pêndulo de Foucault (Umberto Eco). Não digo que são livros “ruins”, mas que não se destinam a leitores inexperientes. João Ubaldo Ribeiro diz que Os sertões é de fácil leitura, mas eu considero a primeira parte, A terra, “desestimulante”, para quem não é engenheiro, geólogo, ou coisa do gênero. Há quem liste Machado de Assis entre os “difíceis”, eu não. Já O pêndulo de Foucault, confesso, sob o peso da erudição de Umberto Eco, abandonei em meio à leitura, há muitos anos, e nunca mais o retomei.
ENTRE PARÊNTESES, ou

Dia desses, José Serra errou, numa entrevista de tevê, o nome do País. “O Brasil chama-se Estados Unidos do Brasil”, disse o eterno candidato. A gafe seria desculpável, não fosse o status de quem a cometeu, pois é regra não escrita chamarmos nossa pátria mãe gentil pelo apelido, o que nos leva ao esquecimento do nome completo (o Brasil já foi “Estados Unidos”, hoje é “República Federativa”). A lembrança me veio ao ler afirmação do professor Arléo Barbosa, dando conta de que Ilhéus é também uma simplificação. O título São Jorge dos Ilhéus, que vem dos tempos coloniais, nunca foi mudado – e eu não sabia. Creio que estamos todos condenados à Lei do Menor Esforço.
O MITO GRECO-LATINO EM NOSSA LINGUAGEM
Pequena e triste estória de uma aranha
A primeira aranha do mundo era uma mocinha chamada Aracne, não garanto que bonita, mas prendada, pois era famosa pela qualidade dos tecidos que fazia. Um tanto metidinha, ela se gabou de que tecia melhor do que Atena (deusa da guerra, da sabedoria e dos ofícios), que se irritou ao ser comparada com uma mortal. Aracne achou pouco e ainda desafiou a deusa para um concurso, a medir quem era melhor tecelã. Aracne, que não se emenda, produziu uma obra que zombava dos deuses, mostrando que eles também erravam, mas um trabalho “tecnicamente” impecável. Vencida em seu próprio campo, Atena ficou tiririca – e decidiu se vingar da mocinha audaciosa.
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Uma deusa muito irritada com o marido
Suspense para lembrar que a grega Atena é conhecida na mitologia latina por Minerva. Ela é filha de Júpiter (Zeus, entre os gregos), espécie de rei dos deuses, associado com o céu e o trovão (entidade próxima ao Xangô do candomblé, segundo Verger, que vocês conhecem). A mãe de Atena/Minerva é Hera/Juno, rainha dos deuses, deusa das mulheres e do casamento, esposa de Zeus/Júpiter, uma mulher muito irritada com o marido, que é dado a pular a cerca. Já se vê que pedigree não falta à deusa Atena. Ah, sim: para se vingar da desfeita de Aracne, ela transformou a mocinha em aranha, condenada a tecer até o fim dos tempos.
BILL EVANS E A VOLTA DO FUNDO DO POÇO
Influenciado pelos grandes do piano
Com Israels, Evans sai da crise, passando a tocar também com feras como Freddie Hubbard, Stan Getz, Tony Bennett e Claus Ogerman (este, uma das admirações de Tom Jobim). Para o crítico Joachim Berendt, “o fraseado elegante e as harmonias sofisticadas de Bill Evans atestam influências de Debussy, Ravel e, voltando no tempo, Chopin”. Sua carreira, igual à de tantos no jazz, foi encurtada devido às drogas, que minaram sua saúde: morreu (aos 51 anos) de insuficiência hepática e hemorragia interna provocadas pelo uso de heroína e cocaína. Este Summertime (1965) é uma mostra dos vários temas gravados pelo “novo” trio: Evans (piano), Israels (contrabaixo) e Paul Motian (bateria).
UNIVERSO PARALELO
PROTESTAR É NOVO, RESIGNAR-SE É VELHO
Se o Brasil todo protesta, também quero protestar, com bandeira, muita festa, muito pneu pra queimar: protesto contra a pobreza do falar e do escrever, protesto contra o não ler, protesto contra o viver como gado na invernada, protesto contra a cambada que não sabe protestar, protesto contra Galvão, aquele do “bem amigos”, protesto contra novela (não de livros, mas de tela), protesto contra os perigos que me espreitam em cada esquina, protesto contra a menina que não quer vestir timão, protesto contra o contralto, porque prefiro o tenor, protesto contra o gestor, daqui, dali, dacolá…
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Contra desvio, “malfeito” e sinecura
Protesto contra quem cala, quando devia falar, protesto contra quem fala, quando devia calar, protesto contra quem quer a volta da linha dura, protesto contra o protesto que não sabe o que procura, protesto contra o desvio, o roubo e a sinecura, protesto contra a loucura que acomete o governante, tornando este nosso inferno bem pior do que o de Dante, protesto contra essa gente que de protesto não gosta, protesto contra a proposta de se fazer referendo (essas coisas do Congresso eu só acredito… vendo!), meu pensamento explicito, eu prefiro plebiscito, povo dizendo o que presta, dinheiro fácil, água fresca, pagode, cachaça e festa…
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O tomate, o resgate e o “malfeito”
Protesto contra o tomate, que andou subindo de preço, protesto contra o resgate do que não tem meu apreço, protesto contra o “malfeito”, protesto contra o prefeito, por não se dar ao respeito com nossa população, protesto contra os serviços, saúde e educação (e estando com rima em “ão”, elevo este meu protesto contra a volta da inflação), protesto contra a ausência de vergonha em tanto rosto, o que só me traz desgosto a cada nova eleição, protesto contra o som alto, com música ruim a esmo, e em dia de mau humor, protesto… contra mim mesmo!
DEUS PARECE AJUDAR MAIS A QUEM ESTUDA
Jesus “desaparecido” durante milagre
Mais: 3) “Assunto da catequese de hoje: Jesus caminha sobre as águas; Assunto da catequese de amanhã: Em busca de Jesus”; 4) “Prezadas senhoras, não esqueçam a próxima venda para beneficência, uma boa ocasião para se livrar das coisas inúteis que há na sua casa. Tragam os seus maridos”; 5) “O coro dos maiores de sessenta anos vai ser suspenso durante o verão, com o agradecimento de toda a paróquia”; 6) “O torneio de basquete das paróquias vai continuar com o jogo da próxima quarta-feira. Venham nos aplaudir; vamos tentar derrotar o Cristo Rei”. Cristo Rei é marca de colégio recorrente no Brasil, daí a suspeita de que o (mau) texto seja verde-amarelo…
COM FAULKNER, HEMINGWAY E COLE PORTER
Allen também é “refugiado” na Europa
Nessa fuga, o roteirista encontra toda essa gente, acompanha seus dramas e contradições e, para completar, ainda se envolve numa paixão nova e sob medida, uma linda mulher, que “compreende” a literatura dele. É uma fantasia e uma homenagem à Paris da paixão de Allen (e da minha), um “refúgio” contra a mesmice do mundo em que vivemos. O filme tem forte relação de parentesco com A rosa púrpura do Cairo, de 1985, pelo mesmo viés de realismo fantástico. Há de se perceber ainda, além da homenagem, um quê de autobiográfico: Allen, qual seu personagem, foi recentemente “refugiado” na Europa, onde obteve financiamento para seus filmes, o que não conseguia nos States.
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Torre Eiffel com som de jazz antigo
Meia-Noite em Paris é uma delícia. Classificado como comédia romântica, o filme não me fez mais sorrir do que pensar. A história do roteirista americano de férias em Paris com a noiva e os sogros, quer morar lá e escrever um romance é motivo para mostrar a cidade e citar grandes mestres (em literatura, pintura, cinema e música) que ali foram abrigados. Paris é uma festa, de Ernest Hemingway, nos salta aos olhos. Meia-Noite… é essa celebração, abrindo com um clipe, som de jazz das antigas – Si tu vois ma mère, de Sidney Bechet (1897-1959), num city tour, em que quem conhece a cidade mais bela do mundo identifica locais famosos, a partir da Torre Eiffel.
(O.C.)
UNIVERSO PARALELO
“JUDIAR” JÁ TEVE DIAS DE INTRANSITIVO
O verbo “judiar”, que o leitor Jorge sugeriu para ser analisado, tem significado discutido. Aceito o mais corriqueiro, encontrado no Aurélio, que remete a um povo: “tratar como antigamente eram tratados os judeus”: massacrar, atanazar, magoar, atormentar, amargurar, angustiar, infernizar, aperrear, flagelar, mortificar, torturar, importunar – para ficarmos apenas em uma dúzia de sinônimos. Admira-me que a definição no Priberam sequer mencione aquele povo. Recuando a tempos pré-Aurélio, encontra-se que “judiar”, então verbo intransitivo, significava “maltratar judeus”.
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Palavra que sugere ofensa a um povo
Hoje, possui sentido gramaticalmente mais amplo, tendo virado transitivo indireto (“judiar de”). Setores mais preconceituosos empregam este verbo com o sentido de “agir como judeu”, pejorativamente, é claro. “Judiar” (tanto quanto seus derivados) é palavra evitada em alguns meios, pelo seu potencial de ofensa aos judeus, havendo até campanhas para que ela seja banida da língua portuguesa. Para o rabino Henry Sobel, o termo não tem carga pejorativa e precisa ser mantido para que nos lembremos dos preconceitos que o religioso diz “do passado” (mas eu tenho dúvidas).
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Nordeste: “por que tamanha judiação?”
A ideia dele é de que essa lembrança nos livre do cruel preconceito que descambou no holocausto da Segunda Guerra. “Não fomos nós que maltratamos. Nós, os judeus, fomos maltratados”, diz Sobel. Discussões à parte, o termo, desvestido de preconceito, foi lembrado por Humberto Teixeira (Asa Branca): “Quando olhei a terra ardendo/ qual fogueira de São João/ eu perguntei a Deus do céu, ai/ por que tamanha judiação” e Lupicínio Rodrigues (“Mas acontece que eu não esqueci/ a sua covardia,/ a sua ingratidão/ a judiaria/ que você um dia fez/ pro coitadinho do meu coração”, enquanto Zeca Pagodinho, numa boa, canta “Judia de mim, judia…”
ENTRE PARÊNTESES, OU
A intimidade que os manuais condenam
E O CACAU BAIANO QUASE CHEGOU À CHINA

De que forma se narra o inenarrável?
Dr. Adélcio não apenas foi à China, como voltou inteiro e mais lépido e fagueiro do que antes. Devido a esse ato de destemor-quase-heroísmo (pago pelos produtores, obviamente), ele se fez habitué dos voos para a terra do velho Mao, na tentativa de levar os chinas a consumir chocolate produzido com cacau sul-baiano. Se vendemos alguma amêndoa nessa aventura, desconheço. Mas conheço uma entrevista de rádio (“meninos, eu ouvi!”), quando Dr. Adélcio voltou da primeira viagem. O repórter (teria sido o bom Waldeny Andrade?): “Dr. Adélcio, que tal a experiência de conhecer a China?” O entrevistado, dado ao falar empolado: “Inenarrável”. Desce o pano.
A FEIRA DE GARANHUNS PARA O MUNDO

Tudo começou com uma “pé de bode”
Quando Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira criaram Asa branca, em 1947, Dominguinhos estava com seis anos – e já tinha uma sanfona “pé de bode” que ganhara de presente. A dupla não sabia que estava criando o hino do sertão, o canto de uma raça, grito contra a seca, a miséria, a dor, a tristeza, o sofrimento. Ao gravar Asa branca, colegas de Luiz Gonzaga correram o pires no estúdio, dizendo que aquilo era musica de cego, para pedir esmola (pobres almas!). Dominguinhos, por sua vez, não imaginava a que altura seria levado por aqueles acordes ainda tatibitates, cruzando, anos depois, com o mais famoso sanfoneiro do Brasil. No vídeo, um pouco dos quatro: Dominguinhos, Luiz Gonzaga, Humberto Teixeira e Asa branca. Os artistas se vão, a (boa) obra permanece.
(O.C.)
UNIVERSO PARALELO
COMO DEUS AMOU A JACÓ E ODIOU A ESAÚ?
A forma preposicionada do verbo amar, aqui referida há dias, possui uma exceção muito nobre, que não foi citada. É que o Livro Sagrado dos católicos (no qual se esperava o respeito à regra de amar a Deus) abriga, em Romanos 9:13, esta joia de tradução: “Amei a Jacó, e odiei a Esaú”, palavra de Deus. A expressão, incompatível com um ser de infinita bondade, incapaz de abrigar o ódio (segundo os que Nele creem e O explicam), suscitou variadas interpretações. Destaca-se entre elas a do respeitado teólogo John Murray, no livro Romanos, resumida a seguir.
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“Sem malícia, perversidade ou vingança”
Para o exegeta (nascido na Escócia, em 1898), não se pode dar a esse ódio divino as mesmas características do ódio exercido pelo homem mau. “No ódio de Deus não existe qualquer malícia, perversidade, vingança, rancor ou amargura profanos”, diz o estudioso. Ele acrescenta que “o tipo de ódio assim caracterizado é condenado nas Escrituras, e seria uma blasfêmia atribuí-lo ao próprio de Deus.” E assim vão os crentes tentando explicar as profundas contradições do seu livro-texto, nem sempre com êxito. Voltemos, então, ao verbo, sem intenção de trocadilho.
Noel: “Jurei nunca mais amar ninguém”
Se Cartola escreveu “Não quero mais amar a ninguém”, ferindo a regra, e Pixinguinha foi pelo mesmo caminho, com “Amar a uma só mulher/ deixando as outras todas”, há exemplos do emprego “certo” do verbo: Noel Rosa (na charge de Pedro Thiago) grafou “Jurei nunca mais amar ninguém” e Dora Lopes (na voz de Noite Ilustrada) quase repete o Poeta da Vila, com “Jurei não amar ninguém”. Na poesia, abramos ala para a lusitana Florbela Espanca, que cultua a forma “clássica”: “Eu quero amar, amar perdidamente!/ Amar só por amar: aqui… além…/ Mais este e aquele, o outro e toda a gente…/Amar! Amar! E não amar ninguém!”
ESPUMA RAIVOSA CAINDO SOBRE A GRAVATA

ENTRE PARÊNTESES, OU…
ÂNGELA E A LUZ DIFUSA DO ABAJUR LILÁS

(O.C.)