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SAUDOSISMO E MÁ-FÉ: A MISTURA PERIGOSA

Ousarme Citoaian

Recebo frequentemente (quem não as recebe, atire a primeira pedra) gracinhas recolhidas em exames públicos, nunca sei se reais ou inventadas. É que o Brasil costuma acalentar o pensamento saudosista (às vezes em mistura perigosa com a má-fé) de que “antigamente tudo era melhor, sobretudo a escola”. Besteira. Energúmenos jovens e adultos sempre os tivemos à mancheia, e até guardo o sentimento de que essa raça – se acaso não estiver em extinção – estranhamente viceja muito mais entre adultos do que entre adolescentes. Os meninos e meninas de hoje, penso, são bem mais preparados do que seus ancestrais. E menos conservadores.

FANTÁSTICOS BEÓCIOS DO TERCEIRO GRAU

A escola, antiga ou contemporânea, sempre abrigou extraordinários mentecaptos, formidáveis beócios e fantásticos basbaques, sem prejuízo de uma chusma de grandes atoleimados, labruscos, paspalhões, estultos e estúpidos em geral. Não se trata de ofensa, mas de realidade constatada. Lamentável é que o preconceito em voga reserve essas gentis qualificações para os alunos, quando elas abundam entre professores – sobretudo no terceiro grau – e quem disso discordar é porque não tem lido algumas opiniões exaradas em artigos de jornais da região: essas sumidades tratam os leitores como se fôssemos tutelados ou rematados imbecis.

QUALQUER ESTULTICE PODE SER SUPERADA

Um desses profetas do caos defende a estranha tese de que quem vota em certo grupo político é cego, surdo e analfabeto – a mostrar que o respeito pelo leitor/eleitor é artigo em falta nas colunas, enquanto outro se refere aos programas federais como “medidas de caridade”. Também “denunciam” ameaças nazistas, conspirações contra a democracia e que o stalinismo será implantado no País, se certa candidata for eleita. É a recorrência ao pensamento carcomido de uma malta de fascistas, tendo à frente Olavo de Carvalho, Demétrio Magnoli et caterva do Instituto Millenium. A turma do Enem, pelo menos, é original, com erros de lavra própria.

PÉRICLES FOI O DITADOR DA DEMOCRACIA

Diferente do ranço reacionário que emana de tais escritos, as “pérolas” do Enem remetem a alguma poesia. Vejamos as nove melhores: 1) O nervo ótico transmite idéias luminosas para o cérebro; 2) O vento é uma imensa quantidade de ar; 3) As múmias tinham um profundo conhecimento de anatomia; 4) Péricles foi o principal ditador da democracia grega; 5) O problema fundamental do terceiro mundo é a superabundância de necessidades; 6) O Chile é um país muito alto e magro; 7) As aves têm na boca um dente só, chamado bico; 8)  Antes de ser criada a Justiça, todo mundo era injusto; 9) A insônia consiste em dormir ao contrário.

O BARZINHO E A SUBVERSÃO DA LINGUAGEM

A mídia regional tratou um concurso musical realizado em Itabuna recentemente como “Fase dos Barzinhos”. E tinha que ser assim, pois a escolha do nome foi dos promotores, não dos divulgadores: “Barzinhos” é uma estranha forma de fazer o plural de substantivos terminados em “zinho”, não reconhecida pela gramática portuguesa, que manda seguir outro processo em tais casos: 1) ignora-se o “zinho”, 2) coloca-se o substantivo no plural, 3) retira-se o “s”, 4) recoloca-se  o “zinho” em seu lugar original e 5) acrescenta-se o “s”. Pãozinho, por exemplo: 1) pão; 2) pães; 3) pãe, 4) pãezinho, 5) Pãezinhos.

A REGRA QUE OS BRASILEIROS REFORMARAM

Vamos multiplicar Mulherzinha? 1) mulher; 2) mulheres; 3) mulhere; 4) mulherezinha, 5) Mulherezinhas. Que tal este, em moda? Eleitorzinho: 1) eleitor; 2) eleitores; 3) eleitore; 4) eleitorezinho, 5) Eleitorezinhos. Como compor o plural de Barzinho? Fácil: 1) bar; 2) bares; 3) bare; 4) barezinho, 5) Barezinhos. É claro que todo falante da língua desta terra achada por Cabral consideraria “Fase dos Barezinhos” (em lugar da eleita “Fase dos Barzinhos”) uma verdadeira afronta: se cantor, recusar-se-ia (ops!) a cantar; se público, negar-se-ia a pagar o ingresso. “Barzinhos”, por assim dizer,  fechou os “Barezinhos”.

“É BRASILEIRO, JÁ PASSOU DE PORTUGUÊS”

Tenho, sem consulta ao professor Odilon Pinto (provavelmente pouco interessado neste tema menor), uma teoria sobre esta formação esdrúxula. Barzinho, na acepção referida, não é apenas o diminutivo de bar, mas um bar “especial”, onde músicos se apresentam, geralmente à noite. Naquilo que chamaríamos (arbitrariamente, é claro) língua brasileira, a palavra perdeu seu sentido de “bar pequeno” e passou a ter outra identidade. Visto assim, o barzinho pode até ser um grande espaço, desde que mantenha a característica de bar com música. Barzinhos, como diria o insuperável Noel Rosa, “é brasileiro, já passou de português”.

INVEJA TIROU NOBEL DE CARLOS CHAGAS

O Brasil já esteve na bica para ganhar o Nobel de Medicina, com Carlos Chagas (foto), e o de Física (César Lattes). Chagas (indicado pelas suas pesquisas em tripanossomíase) foi derrotado em seu próprio quintal: colegas brasileiros consultados sobre a descoberta da doença de Chagas, num misto de ignorância e inveja, desaconselharam a premiação em 1921 (ninguém foi escolhido naquele ano). Já Lattes pediu ajuda a um certo Ceci Powell, da Universidade de Bristol, para redigir o artigo científico em que  anunciava sua descoberta, o méson Pi. Powell assinou com ele e terminou recebendo o Nobel. A equipe de Lattes sequer foi mencionada.

DITADURA TIROU NOBEL DE DOM HÉLDER

O terceiro brasileiro seriamente cotado para o Nobel foi o cardeal-arcebispo Dom Hélder Câmara (foto). Apelidado “Bispo Vermelho”, pela ditadura militar que assaltou o poder em1964, foi autor de um dos maiores programas sociais do Nordeste, o Operação Esperança. Em 1970, reuniu mais de 20 mil pessoas em Paris para denunciar torturas no Brasil. Por suas obras, foi indicado ao Nobel da Paz de 1970 a 1973, tido como favorito absoluto nas quatro vezes. Mas nunca foi escolhido, devido a pressões do governo brasileiro. Na época, por ordem dos militares, nossa mídia sequer “conhecia” D. Hélder: não falava dele bem nem mal.

NO NOBEL, ARGENTINA NOS DÁ GOLEADA

O Prêmio Nobel de Literatura teve alguns países supercampeões: França (ganhou 14 vezes), Reino Unido (10), Estados Unidos (9), Itália e Suécia (6), Espanha (5), Irlanda e Polônia (4). Noruega e União Soviética (3 vezes). Em outras categorias, com um prêmio só, ainda estão Timor Leste, Gana, Paquistão, Tibet e a pequena ilha caribenha de Santa Lúcia (Literatura, 1992). Aliás, até a Autoridade Palestina, que nem país é, já ganhou o Nobel.  A poesia do pequeno Chile levou o prêmio duas vezes, com Gabriela Mistral (foto) e Pablo Neruda. A Argentina ganhou cinco vezes, mas não o de Literatura – por isso reclama da “injustiça” com o escritor Jorge Luis Borges. E nosso Brasil brasileiro, necas.
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CANTO MASCULINO EM VOZ DE MULHER

Ne me quitte pas teve gravações em várias partes do mundo, com artistas das mais diversas tendências. Curiosidade: embora a canção seja essencialmente masculina (trata–se de um homem se dirigindo a uma mulher) foram as cantoras e não os cantores que fizeram todos os registros de que tenho notícia: as francesas Simone Langlois e Sylvie Vartan, a americana Nina Simone e, pasmem, nada menos do que meia dúzia de vocalistas brasileiras: Maysa (foto), Maria Gadu, Roberta Miranda, Ângela Rô-Rô, Sônia Andrade e Alcione. No filme A lei do desejo (1987), Pedro Almodóvar usa a canção na trilha sonora, em gravação de Maysa. Logo, devido à exposição do filme, este seria o registro mais divulgado de Ne me quitte pas.
</span><strong><span style=”color: #ffffff;”> </span></strong></div> <h3 style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>E FRED JORGE CRIOU CELLY CAMPELLO!</span></h3> <div style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>No auge do sucesso, em 1965, a música teve uma versão no Brasil, gravada por Agnaldo Timóteo. Como costuma ocorrer com as

CORAÇÃO EM CHAMAS, ALMA DILACERADA

O francês Jacques Brel (foto), em 1959, durante sua dolorosa separação da ex-mulher Suzanne Gabrielle, fez Ne me quitte pas, um tijolaço com cerca de 60 versos, fora o refrão, todos rigorosamente com cinco sílabas. Única gravação masculina que conheço, a do autor, é definitiva, mostrando a diferença entre cantar e interpretar: ele é um homem abandonado, com o coração em chamas, à beira do desespero. Certa feita, Monsieur Brel, vestido de filósofo, disse que Ne me quitte pas não é um poema sobre o amor, mas sobre a covardia do homem. Dono da letra, ele tem o direito de dizer o que bem quiser. Mas para mim esta é uma canção de amor, sem dúvida, e das mais extraordinárias já vistas na música popular em qualquer tempo.

“EU TE OFERECEREI PÉROLAS DE CHUVA”

Se alguma leitora não concordar comigo, diga se já ouviu um homem lhe sussurar “Eu te darei pérolas de chuva/ Vindas de países onde jamais chove” (Moi je t’offrirai des perles de pluie/ Venues de pays où il ne pleut pas). Apenas estes versos já seriam bastantes para identificar Ne me quitte pas como um soberbo canto de paixão.  Clique aqui e veja/ouça a dilacerante interpretação de Jacques Brel.
(O.C.)

8 respostas

  1. Acho que Noel percebeu que nossa língua é viva, vivíssima! Já pensou se falássemos como nos livros de Machado de Assis? Haveria muita pompa, norma culta e ratificada colonização. Felizmente, penso que falando livremente, misturando formas e conceitos, somos transgressores dessa colonização linguística e cultural, sendo ao mesmo tempo criativos e imponentes contra o elitismo proposto por alguns mestres da gramática… Eita, que este assunto rende muitas discussões!

  2. Há um equívoco no tocante a Dom Hélder Câmara. No período da Ditadura Militar falava-se dele, sim, na imprensa. Uma pesquisa rápida no acervo digital da Veja mostra 53 citações exatas para “Hélder Câmara” entre 1968 e 1974.

  3. Pô, cara!
    Como gostaria de ter escrito isto!
    Não se aborreça com a ousadia… Endosso o artigo até nas vírgulas.
    Peço licença para sugerir mais dois adjetivos “elogiosos”: parlapatões e capadócios (com o devido respeito aos turcos nascidos na localidade).

  4. Gostei da caricatura do talentoso Noel.
    Conheci e visitei como poucos o local onde Noel Rosa nasceu, viveu e compôs: a Vila Isabel.
    De galpão de Escola de Samba a “barzinhos”… Aliás, “barzinhos” é o que não falta na Vila – de Isabel e Noel. Eles podem ser encontrados dois dois lados do charmoso Boulevard 28 de Setembro.
    As calçadas do Boulevard são feitas de pedras portuguesas que desenham as partituras das músicas do Noel.
    Ainda é o bairro mais boêmio do Rio, apesar de a concorrência hoje ser grande.
    Lembro-me do primeiro livro que minha filha Luciane leu: A Vila, de Isabel a Noel. Ganhou em um concurso promovido por uma instituição. Claro, não deixei também de ler.
    Pena que a bebida e o fumo tenham levado o Rosa ao 33 anos. De resto, ficaram suas belíssimas composições e as calçadas do Boulevard. Ah, também emprestou seu nome para batizar um pequeno túnel que liga a Vila ao bairro do Jacaré/Jacarezinho e grande parte da Zona Norte, predominantemente suburbana.
    ADSUMUS!

  5. Enigmático Sr. “O.C.”,
    parabéns pela deliciosa coluna!
    É um deleite dominical!
    Sou leitora assídua!
    Na minha opinião deveria ser a coluna mais comentada desse blog, mas…(Até tenho a minha hipótese sobre isso…).

  6. A referência de Souza Neto a Noel Rosa me deixou com um nó na garganta, pois me fez lembrar que quando o poeta morreu a lua chorou e suas lágrimas caíram, sobre os oitis do boulevard (que já perdeu o charme francês e virou bulevar). Quem o diz é o compositor Sebastião Fonseca, em “Violões em funeral”, homenagem a Noel, que cito de memória:
    “Vila Isabel veste luto/ pelas esquinas escuto/ violões em funeral… Choram bordões, choram primas/ soluçam todas as rimas/ numa saudade imortal…
    Entre as nuvens escondida/ como de crepe vestida/ a lua fica a chorar… E o pranto que a lua chora/ goteja, goteja agora/ nos oitis do bulevar…
    Adeus, cigarra vadia/ que mesmo em sua agonia/ cantava pra não morrer/ Tu viverás na saudade/ da tua grande cidade/ que não te há de esquecer…
    Adeus, poeta do povo/ tu ressuscitas de novo/ quando na morte descambas… Senhor de pele mais clara/ onde o Senhor encarnara/ a alma sonora dos sambas…
    Toda a cidade soluça/ todo o Brasil se debruça/ sobre o caixão de Noel… Estácio, Matriz, Salgueiro,/ todo o Rio de Janeiro/ consola Vila Isabel”.
    Jamais consegui cantarolar estes versos sem me sentir fortemente emocionado. Ao que sei, Sebastião Fonseca só fez esta letra (musicada por Sílvio Caldas). E, pela parte que me toca, não precisava fazer outras.
    Muito obrigado a todos.

  7. “Coisas que eu sei…”
    Também penso que sei.
    Muita gente sabe.
    Aliás, quase todos sabem!
    Essa “hipótese” não comento,
    Porque ela é uma certeza…
    Vamos ficando por aqui…
    Os meus dedos incontroláveis
    E o teclado sem defesa…
    Ou eu encerro essa prosa
    Ou acabo postando o que sei.

  8. Nove anos, foi o tempo que morei vizinho da Vila Isabel. Da Uruguai pro Boulevard bastava atravessar a Maxwell e a Teodoro da Silva. Pronto. Estava na charmosa Vila de Noel, Isabel, Martinho e de todos que gostam de samba, bossa-nova, pagode e de bebericar num barzinho de esquina.
    No Livro “A Vila de Isabel a Noel”, consta que a Princesa gostava de recolher-se em terras da Coroa que ficavam nas proximidades da Vila. Não era exatamente na Vila. Ficava um pouco mais para dentro. Pras bandas do Andaraí e do Grajaú. A Vila era o caminho carroçável por onde se ia até lá.
    Mas o batismo do bairro com o nome da Isabel se deu por outras razões. Um cara (Barão de Drummond – o criador do jogo do bicho) comprou as terras e era um ferrenho abolicionista. Batizou o local de Vila Isabel para homenagear a Princesa. O bairro foi urbanizado com inspiração parisiense. Daí o nome Boulevard 28 de Setembro, renomeando a então Estrada do Macaco. E, por falar em “macaco”, não da mais pra subir: Macacos, Andaraí, Cachoeirinha, Borel, Salgueiro, todos na Grande Tijuca, mega bairro que abriga a Vila e outros locais extraordinários da Zona Norte carioca.

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