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ENTRE A CONDENAÇÃO E A CURIOSIDADE

Ousarme Citoaian

Que meu olhar não seja de condenação, para evitar receber pedradas da CLMH (Comunidade dos Linguistas Mal Humorados), mas que possa ser de curiosidade. É que (assim como o “risco de vida”, aqui abordado recentemente), alguns neo-puristas decidiram que a expressão “entrega a domicílio” é ilegítima, de sorte que se algum infeliz a utilizar vai arder no fogo do inferno. O “certo” é “em domicílio”, proclamam os descobridores de novidades. Vamos acertar uma coisa: a língua portuguesa se alimenta do novo, mas mantém um pé na tradição, nas formas ditas consagradas, aquelas que os bons autores abonam.

EXPRESSÕES LEGITIMADAS PELO USO

“A domicílio” (condenada pelos puristas desvairados como abominável galicismo) é uma expressão enraizada na linguagem popular, que nossos avós já empregavam, e que, por ser consagrada, dispensa esses cuidados urgentes que lhe querem prestar. Os neologismos inúteis precisam ser evitados, e não aqueles se insinuam de forma natural e terminam integrantes “legítimos” da nossa fala. É o caso dos legitimados abajur (que já foi abat-jour) e piquenique (outrora, picnic). Atualmente, insiste-se em delivery de pizza (este, sim, um estrangeirismo dispensável). Contra ele temos o boa e velha “entrega a domicílio”.

INÚTIL ARTIFICIALISMO DE LINGUAGEM

A professora Maria Tereza Piacentini afirma que a regra purista manda usar “a domicílio” com palavras que indicam movimento (levar a roupa, a pizza etc.), e “em domicílio” quando sem movimento (dar aulas, cortar cabelo, fazer unhas e outros). Mas ela reconhece que “essa diferenciação está ultrapassada”, e que o uso prático recuperou (se alguma vez perdeu) a forma “a domicílio”, para ambos os casos. Portanto, vamos deixar de lado mais esse inútil e bobo artificialismo de linguagem que alguns redatores mal informados ajudam a difundir, e retomar a já brasileiríssima “a domicílio”, sem receios.

COPA DO MUNDO DE LUDOPÉDIO

Há estrangeirismos contra os quais a luta dos puristas é vã. Em certa época, tentou-se um termo “brasileiro” para piquenique, encontrando-se “convescote”. Não pegou, de sorte que os mais jovens (se não forem estudiosos de Gramática Histórica) desconhecem o termo. Só um sujeito irremediavelmente imbecil chamaria a colega de trabalho para “fazer um convescote” – e se arriscaria a um processo por assédio sexual: antigamente, moça de família só “convescoteava” depois do casamento. E tem ludopédio, do latim ludus (jogo) e pedis (pé) que quiseram pôr no lugar do anglicismo futebol. Não deu. Receio até que o Brasil, diante das patriotadas do “sargento” Dunga, jogue ludopédio, em vez de bola.

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“ARTIGO NOVIDADEIRO E INÚTIL”

Com o futebol no topo do noticiário, fortifica-se o festival de bobagens que habita o meio. Um dos itens mais notáveis é a inflação de artigos definidos que toma conta do noticiário. Em outros tempos, dizia-se que Zico ia vestir a camisa 10; atualmente, diz-se que quem vai vesti-la é o Kaká; no gol, informava-se que estaria, por exemplo, Tafarel; agora quem está é o Júlio César; a lateral direita, que em 1970 tinha Carlos Alberto Torres, agora tem como titular o Maicon – e por aí vai. “É de lamentar-se, mas todos os veículos de comunicação têm atrelado esse artigo novidadeiro e inútil em seus textos”, constata Marcos de Castro, em A imprensa e o caos na ortografia (Record – 5ª edição).

SEM CONCESSÕES AO MAU GOSTO

No começo, falar o Pelé ou o Luís Pereira (foto) era costume de algumas camadas das populações paulista e carioca, sempre em termos informais, quando ainda se mantinha maior respeito pela norma culta. Mais tarde, a televisão (a Globo, sobretudo, grande criadora de modismos) adotou algo semelhante como forma de comunicação: buscava-se uma linguagem capaz de ser entendida por todo o conjunto dos telespectadores, tendo como padrão de baixa escolaridade as pessoas de mais baixa escolaridade (se elas entendessem, todos entenderiam). Era o “coloquial bem escrito”: simples, claro e correto, sem preciosismos, mas igualmente sem concessões ao popularesco. Só que o controle se perdeu.

O BALTAZAR, O GASPAR E O BELCHIOR

“Qualquer palmeirense lembra, com saudades, de Leão, Luís Pereira, Dudu, Ademir da Guia e Leivinha. Já o bom marcador Zeca não foi tão marcante. E o Internacional de Rubens Minelli, bicampeão brasileiro? Ali fizeram história Manga, Figueroa, Falcão, Valdomiro e o lendário Dadá Maravilha. Mas ali também jogou o discreto Vacaria”, anota José Roberto Torero (Os cabeças-de-bagre também merecem o paraíso/Editora Objetiva). Em texto contemporâneo, o cronista manda sua mensagem sem gastar o estoque de artigos definidos – mostrando que não se trata de época, mas da competência de quem escreve. Há redatores por aí querendo “modernizar” o texto bíblico, dizendo que o Jesus, ao nascer, foi anunciado pelo Baltazar, o Gaspar e o Belchior.

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CHUMBO QUENTE E TEXTO REFINADO

E cá estamos, outra vez, a de western, como gênero de cinema uma paixão. John Ford, em Paixão de fortes nos faz bela surpresa, ao introduzir, quem diria, uma citação de Shakespeare, nada menos do que a cena 5 do ato III de (a tragédia de) Hamlet. Num saloon esfumaçado, um artista meio bêbado declama o To be, or not to be. Os vapores etílicos lhe atacam a memória e ele se vale de um pistoleiro “erudito” (o lendário Doc Holiday, aqui vivido por Victor Mature) para recitar o resto do texto, sob o olhar perplexo de Wyatt Earp/Henri Fonda. Improvável? Sim, mas criativo e de bom gosto.

EDGAR ALLAN POE EM PLENA PRADARIA

Howard Hawkins gostou tanto de Onde começa o inferno/1958 que fez uma refilmagem (esse hábito não estava em moda, como hoje, quando os filmes terminam dando a deixa para o próximo): é Eldorado, outra vez com John Wayne, agora liderando novo elenco (com destaque para Robert Mitchum, o xerife bêbado). Pois é nesse incrível ambiente que Hawkins introduz o poema “Eldorado” de Poe – no qual o autor ironiza a irracional corrida do ouro e dá aos versos, em Inglês, uma forma tal que o ritmo simula cavalos correndo. No filme de Hawkins, quem declama “Eldorado” é James Caan (à esquerda, na foto), um jovem e desajeitado pistoleiro de nome impronunciável.

O HOMEM EM SUA BUSCA SEM FIM

“Sozinho e errante/ um cavaleiro galante/ no sol e na sombra/ longamente viajara/ cantando, em busca do Eldorado”, recita Caan. O poema fala da eterna andança que o cavaleiro galante (noutra tradução é “elegante”) empreende em direção, talvez, à felicidade. Ele cavalga até ficar velho, sem encontrar “nenhum pedaço de chão parecido com Eldorado”. Quando está à beira da desistência, “caiu-lhe no peito uma sombra”, a quem ele, quase vencido pelo desânimo, interroga: “Onde estará essa terra/ chamada Eldorado?” – e a sombra responde: “Cavalgue, cavalgue corajosamente/ se você quer encontrar Eldorado” (combinei a tradução do filme com a de Rodrigo Garcia Lopes).

EM LETRAS, SOMOS OS BAMBAMBÃS

Do pouquíssimo que sei, acho que nossa música é a melhor do mundo, ao menos em termos de letra. O europeu é bom letrista, mas o brasileiro é melhor. Os americanos não são grande coisa. Mesmo o jazz, se cantado, não diz muito. Os europeus (sobretudo franceses, italianos e portugueses) ganham dos ianques, mas o Brasil ganha fácil deles todos. Yes, nós temos Braguinha (foto), Noel, Tom, Vinícius, Edu, Caetano, Gil, Chico Buarque, Paulo César Pinheiro, Cartola, Dolores Duran, Orestes Barbosa – citemos poucos, para não humilhar os gringos e criar problemas diplomáticos. Orestes escreveu “Tu pisavas nos astros, distraída”, o mais belo verso da língua portuguesa, segundo Manuel Bandeira.

LANCEADO, PREGADO, CRUCIFICADO

Há uma letra que me impressiona sobre as outras: Rosa, de Otávio de Sousa, que tem coisas assim: “Se Deus/ me fora tão clemente/ aqui neste ambiente/ de luz, formada numa tela/ deslumbrante e bela…/Teu coração/ junto ao meu lanceado/ pregado e crucificado/ sobre a rósea cruz/ do arfante peito teu”. Romantismo derramado, tangenciando o barroco, de autor praticamente anônimo. O público, injustamente, identifica a canção como “Rosa de Pixinguinha”. E o grande Pixinguinha (foto), autor da melodia, não ajudou a esclarecer o mistério. Interrogado, disse que Otávio de Sousa “era um mecânico que morava no Engenho de dentro, muito inteligente e que morreu novo”.
</span><strong><span style=”color: #ffffff;”> </span></strong></div> <h3 style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>E FRED JORGE CRIOU CELLY CAMPELLO!</span></h3> <div style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>No auge do sucesso, em 1965, a música teve uma versão no Brasil, gravada por Agnaldo Timóteo. Como costuma ocorrer com as

O MECÂNICO QUE NÃO DEIXOU RASTRO

Fazer esta letra e sumir sem deixar outro rastro na MPB é impossível. Minha versão preferida é outra: Otávio de Sousa nunca existiu, e Rosa seria de Cândido das Neves, o Índio (na verdade, negro!). O autor de Última estrofe (que todo seresteiro de respeito conhece) teria vendido os versos de Rosa a Pixinguinha e este “inventou” o mecânico. É coisa para pesquisador com P caixa alta. Os vídeos na internet estão cheios de erros na letra. Há até uma anta que canta (anta canta?) “vozes tão dormentes como um sonho em flor”, quando o poeta (seja quem for) escreveu dolentes.

ARROCHA PARA OS CAÇADORES DE ERROS

Luciana Mello comete “só” três erros. Se você descobrir algum deles, reclame no Pimenta o CD O melhor do arrocha, com a faixa-bônus “Rebolation”, na voz do Mano Cae. Mas, melhor do que caçar erros é relaxar e apreciar esse banho de romantismo, típico da MPB que se fazia no meado do século XX  – Orlando Silva (foto) lançou Rosa em 1937.


(O.C.)

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