Tempo de leitura: 7 minutos

A ORELHA CORTADA E O GOL QUE NÃO HOUVE

Ousarme Citoaian
Certos artistas são lembrados por um momento, uma curiosidade, uma circunstância: Van Gogh, por ter cortado a própria orelha e por vender, em vida, um único quadro –  A vinha encarnada (foto); mesmo quem não é dado a jazz & blues sabe que Ray Charles era cego, e isso basta; também de Jorge Luís Borges não se precisa ler nada, mas é imperdoável desconhecer-lhe a cegueira; e Pelé (embora não seja, rigorosamente, um artista)  foi muitas vezes celebrado pelo gol que não fez. Penso que essas situações poderiam integrar a lista daquilo que o gênio de Millôr Fernandes chama de “Ah, essa falsa cultura!” Entende.

FIRMINO ROCHA E O MENINO DO FUZIL

Autores são, volta e meia, vítimas da simplificação, passando a ser identificados por um só trabalho, não raro um detalhe, um ângulo desse trabalho. Essas referências, que contribuem para eclipsar o conjunto da obra, têm sido causa de irritação para muitas “vítimas”, que veem sua produção reduzida à expressão mais simples. São várias as situações em que o artista tem sua obra expressada por um item – um quadro, um disco, às vezes um verso, uma frase. Há poucos dias, citamos aqui o poeta itabunense Firmino Rocha, também ele atingido por essa “maldição”: sempre que se o cita, ouve-se uma referência ao poema “Deram um fuzil ao menino”. E só.

MÃOS QUE AFAGAM TAMBÉM APEDREJAM

Conta-se que Raimundo Correa ficava de mau humor quando alguém o tratava como o autor de As pombas (“Vai-se a primeira pomba despertada…”) e João Cabral de Melo Neto (foto), já de si zangado, não costumava ser simpático com quem demonstrava conhecê-lo apenas pela leitura do poema Morte e vida severina. Há pessoas que jamais abriram um livro e, mesmo assim, citam, sem saber a origem: “Depois de um longo e tenebroso inverno” (Luiz Guimarães), “Última flor do Lácio inculta e bela” (Olavo Bilac), “A mão que afaga é a mesma que apedreja” (Augusto dos Anjos) e “Que seja infinito enquanto dure” (Vinícius de Moraes). Também sei de gente que reduz Valdelice Pinheiro a “Rio Cachoeira” (“Rio torto, rio magro, rio triste…”).

A ELIPSE E A SEM-GRACICE DE MILÔR

Uma questão recorrente nesta coluna – a figura chamada elipse, que leva as pessoas a misturar os artigos definidos – teve um abono interessante, mesmo que nunca mais repetido, devido aos protestos que provocou. O nome do abonador, pasmem, é Luís Fernando Veríssimo. Com surpresa, leio no jornalista e filólogo Marcos de Castro (última edição de A imprensa e o caos na ortografia, uma de minhas leituras de cabeceira) que em 1997 o filho de Érico Veríssimo afirmou, em crônica no Jornal do Brasil, que Millôr Fernandes trabalhara “na Cruzeiro”. Millôr, que trabalhou na revista O Cruzeiro (e tem intolerância a bobagens) ficou sem graça.

SIMÕES FILHO EM ESTADO APOPLÉTICO

Essa epidemia de elipse fere uma regra simples, que toda redação conhece (ao que vejo, conhecia): o artigo que está no nome do veículo dita-lhe o gênero. Assim, O Cruzeiro é usado no masculino, tanto quanto O Malho e O Tico-Tico (embora sejam revistas, o que lhes dá “aparência” de feminino). Já A Tarde, A Gazeta, A Região e A Crítica são femininos (esse nó na língua que se dá para chamar A Tarde de “o A Tarde” deixaria apoplético o eminente Ernesto Simões Filho). Procurei de lanterna mão e não encontrei um só texto em que se chame a Folha de S. Paulo de “o Folha…” ou A Gazeta de “o Gazeta”. Ainda bem que o ataque não é generalizado.

PORTUGUÊS SEM “CONTORCIONISMOS”

Sobre a batatada de Luís Fernando Veríssimo (primeiro à esquerda, sentado), depois de dizer que “seu pai não faria o mesmo”, Marcos de Castro dá um exemplo, colhido “no admirável Solo de clarineta, de Érico Veríssimo”: “Quarta-feira era o meu dia mais esperado e feliz da semana, pois era às quartas que geralmente chegava a Cruz Alta o último número de O Tico-Tico”. O crítico nos chama a atenção para o fato de que por mais cinco vezes Érico se refere à revista na forma masculina, “sem fazer contorcionismos com o idioma”, mudando o gênero para o feminino. E conclui, com uma ponta de maldade: “O filho pode ser bom em saxofone, mas em clarineta o pai era melhor”.

NO BALCÃO, QUEM DIRIA, A FRASE GENIAL

Quando inventaram o comércio, inventaram os caloteiros e, por consequencia, as frases que procuram afastá-los. “Fiado só amanhã” é uma das mais antigas e, por isso, o tempo já lhe subtraiu a graça que, por ventura, teve na juventude. Desconfio de que, menino (aconteceu há uns 300 anos, ai meu Deus!) eu já desgostava da mesmice na linguagem, tanto que me encantei com uma frase de genial economia de palavras (sobre vender fiado), que vi sobre um balcão de loja – e nunca mais a encontrei, por mais que a buscasse, nem mesmo nos arquivos da internet. Jamais esqueci a frase e, claro, o nome do seu autor, o italiano Paolo Mantegazza (foto).

OS ARTISTAS NÃO SÃO FEITOS NA ESCOLA

Esse Mantegazza (1831-1910) não era um qualquer: foi neurologista, fisiologista e antropólogo, notável por ter isolado a cocaína da coca, que utilizou em experimentos, investigando seus efeitos psicológicos em humanos (“pesco” isto no Google). O velho italiano foi escritor de ficção e ainda encontrava tempo para produzir frases de efeito. “A escola pode aperfeiçoar o artista, criá-lo, nunca; não se melhora senão o que já existe”, é uma de suas pérolas. Outra: “A honra nunca existe por metade; inteira é forte, ferida está morta”. Faltou citar a minha preferida, primor de síntese para desestimular os velhacos: “Vendo, vendo; não vendo, não vendo”.

VOZES OBLÍQUAS NA HORA DO SOL SE PÔR

Há murmúrios neste rio,
vozes oblíquas me chamam;
Cantigas de bem-me-quer
entre rosas imaginárias.
Gemidos de superfície,
do coração de Jandira;
acenos de mãos franzinas
entre brisas de luar.
Senda do meu destino
nesta hora tão antiga;
uma saudade-ternura
na hora do sol se pôr.
Cachoeira, Itabuna, Jandira.
Amor cravado em cruz.

SINAL DE DESENCANTO COM A LITERATURA

Autor de “Água corrente”, acima, Ariston Caldas (1923-2007) passou sua vida, principalmente, em Uruçuca, Itabuna e Salvador. Na região e na capital exerceu o ofício de jornalista, poeta e prosador. Trabalhou nos grandes jornais de Salvador e aqui do Sul, tendo participado de várias antologias de contos e poemas. Publicou cinco livros de poesia: Mar distante, A hora sem astros, Balada que vai e vem, Olho dágua e Dissipação, todos em edições mais ou menos artesanais, hoje difíceis de ser encontrados.  Ariston (à direita da foto, ao lado de Jorge Amado – acervo de A Região) pareceu, em certo momento da vida, desencantado com a literatura, ficando mais de três décadas sem publicar. Curiosamente, um ano antes da morte voltou às livrarias, mas com um trabalho em prosa: Linhas intercaladas (Via Litterarum/2006).

SARAH VAUGHAN, A DIVINA, TERÁ EXISTIDO?

A primeira vez que o som inusitado da voz de Sarah Vaughan entrou pelos meus ouvidos eu senti um impacto próximo ao delírio. E cheguei de imediato à conclusão de que aquela cantora não existia – seria uma invenção de técnicos desocupados, um desses “milagres tecnológicos” que sempre estiveram em moda. Na época, minha sensação era da impossibilidade de um canto tão perfeito; e hoje (tantos anos já passados) ainda às vezes penso que Sarah (chamada, com justiça, a Divina) nunca existiu de se ver e pegar, não é gente de carne e osso. O exemplo é sua interpretação de Someone to watch over me, de George (foto) e Ira Gershwin – os irmãos da ópera Porgy and Bess (1935), já citada nesta coluna.

LETRAS COM BOBAGENS ARREPIANTES

Someone… tem letra feminina e bobinha (como em geral as letras dos americanos). Fala de “procurar um certo rapaz que eu tenho em mente” (I’m going to seek a certain lad I’ve had in mind), com bobagens arrepiantes, como “Onde está o pastor para esta ovelha perdida (Where is the shepherd for this lost lamb)? Na versão “masculina” com Emílio Santiago (foto) ficou:  “Eu sou um carneirinho perdido, arrependido e oferecido a alguém que olhe por mim” (Céus!). E antes que perguntem se Ira e George, com esse papo estranho, eram do reduto, respondo que não, ao menos que eu saiba – Cole Porter, contemporâneo deles, era quem jogava nessa posição. O que se notabiliza em Someone… é a melodia (de George), mais ainda com Sarah Vaughan, capaz de transformar em música até a lista telefônica de Constantinopla.
</span><strong><span style=”color: #ffffff;”> </span></strong></div> <h3 style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>E FRED JORGE CRIOU CELLY CAMPELLO!</span></h3> <div style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>No auge do sucesso, em 1965, a música teve uma versão no Brasil, gravada por Agnaldo Timóteo. Como costuma ocorrer com as

O COMPOSITOR MAIS RICO DO MUNDO

George Gershwin está na calçada da fama de Long Island desde 2006 e é nome de teatro em Manhatan, em resposta à contribuição que deu a esse meio cultural.  Aproveito e digo, só para quem ainda não sabe, que esse Gershwin (1898-1973), cuja fama encobriu   o irmão e colaborador Ira, formou ao lado dos maiores compositores americanos – como Cole Porter (foto), Richard Rodgers, Irvin Berlin e outros. E também das maiores fortunas. Artista talentoso e com uma vocação atávica para ganhar dinheiro (era judeu-russo), se deu muito bem na vida: em 2005, o jornal The Guardian concluiu que, “estimando os lucros acumulados na vida de um compositor, Gershwin foi o compositor mais rico de todos os tempos”.

COM VOCÊS, A DIVINA SARAH VAUGHAN!

Agora clique, se ajoelhe e esqueça, por escassos três minutos e meio, tudo o que ficou está lá fora. No fim, bata palmas – e se alguém estranhar, não ligue: o mundo está cheio de gente sem poesia.

(O.C.)