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MOCHILEIRO CHEIO DE VOCAÇÃO REPRIMIDA

01 On the roadOusarme Citoaian | ousarmecitoaian@yahoo.com.br
Amigos me olham atravessado (aquele olhar tipo “coitado, pirou de vez!”) quando descobrem minha mania de andarilho nunca concretizada. Tentei ir a pé de Ilhéus a Recife, mas desisti, por não conseguir montar uma estrutura compatível com a empresa; imaginei ir de Fortaleza/CE a Jaguarão/RS, pela BR 116 – missão que se tornou impossível, pelo mesmo motivo. Sou um mochileiro cada dia mais teórico e mais frustrado, pois, além das outras dificuldades, as pernas já não aguentam tais aventuras. Fico a imaginar de onde vem essa sufocada vocação de vagabond que quase me dá insônia, e imagino que ela tenha origem em Jack Kerouac e seu Na estrada, um dos livros mais impressionantes que já (re) li, talvez pelo grito de liberdade que salta de suas páginas.

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O livro que mudou a vida de Bob Dylan

02 Mochileiro

Acabo de ler a nova versão desse clássico e experimentei a mesma inquietação de tempos passados. O lançamento da L&PM, de 2008 (já com duas reedições), traz os nomes reais dos personagens e, na capa, um elogio nada pequeno, de Bob Dylan: “Este livro mudou minha vida”. Teria mudado a minha, se o lesse aos 18 anos – mas só o descobri quando estava irrecuperável para as aventuras de verdade, já mortos alguns sonhos, a cabeça cheia de juízo, abafada a vocação para a doidice. O livro, publicado no fim dos anos 50, é a descoberta do jazz, dos malucos beats, de um jeito novo de viver e sentir. Mesmo hoje, já doídas as articulações, Kerouac me injeta uma inquietante vontade de jogar tudo pra cima e pegar a estrada, mochila às costas e cata-piolho apontando o caminho.
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Benzedrina, café, Parker e Gillespie
On the road é cercado pela mitologia. Foi escrito em três semanas, de uma tacada só, enquanto o autor ingeria doses cavalares de café “adoçado” com benzedrina (uma substância que dá efeito de euforia e estímulo). Kerouac emendou várias folhas de papel e obteve um rolo de 36 metros (há quem fale em 40), no qual deixou jorrar sua história, em que há um único parágrafo. Enquanto escrevia, como em transe, JK mantinha o rádio ligado num programa de jazz e era embalado pelo bebop, o estilo frenético de improvisação em que eram mestres Charlie “Bird” Parker e Dizzie Gillespie. Desta versão original emerge o tipo (real) mais doidão que já se viu em letra de forma: Neal Cassady. É livro perigoso, desses que escaparam de ser queimados em praça pública, com direito a missa de réquiem.

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UM TÉCNICO DE LINGUAGEM ACIMA DA MÉDIA

04 CoutinhoEsporte nacional, o futebol, fonte de graves agressões à língua portuguesa, guarda casos de puro sabor brasileiro. Conheço, modéstia à parte, muitos deles, alguns já nem sei em que fonte obtive – leituras esparsas, conversa de bar, audiência de transmissões pelo rádio. Cláudio Coutinho, que fracassou na seleção brasileira e depois seria um dos maiores técnicos da história do Flamengo, era um militar (capitão do Exército) de alto nível, até acusado de não ser entendido pelos jogadores, devido a seu falar sofisticado. Coutinho, “culturalmente”, situava-se bem acima da média: até introduziu nos gramados e arquibancadas expressões como overlapping e ponto futuro.
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Se fala várias línguas é… troglodita!
Gaúcho de Dom Pedrito, Cláudio Coutinho trabalhou com Kenneth Cooper, o americano que revolucionou a avaliação física, e falava várias línguas, o que era um verdadeiro assombro no mundo do futebol, conhecido naqueles tempos como o império da ignorância. Soneca, que por longo tempo foi roupeiro no Botafogo, vendo um dia o treinador dando entrevistas em inglês, francês e alemão, expressou seu espanto ao médico Lídio Toledo, responsável pela saúde na seleção brasileira: “– Doutor, eu vi! O homem fala tudo quanto é língua. É um troglodita perfeito!”.  O episódio foi registrado pelo cronista esportivo Sandro Moreyra – Histórias de futebol (Coleção O Dia Livros/1998).

BADEN POWELL ENTRE OS GRANDES DO JAZZ

Dizer que o violonista Baden Powell (de Aquino) é parente do jornalista Ramiro Aquino seria revelar uma grande curiosidade, o que não faço, por desamor à mentira. Mas há outras curiosidades: ele é primo de João de Aquino (autor de Viagem, com Paulo César Pinheiro), nasceu numa cidade chamada Varre-e-Sai (Rio de Janeiro) e teve esse nome graças ao pai escoteiro – o velho quis prestar uma homenagem ao general Robert Stephenson Smyth Baden Powell, criador do escotismo. E mais: Baden (o músico, não o general) é pai do pianista Philippe Baden Powell e do violonista Louis Marcel Powell. Por último, mas não menos importante, críticos americanos listam Baden Powell (1937-2000) entre os grandes do jazz, com estilo influenciado pelo guitarrista Django Reinhardt.
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Cyro: “um abraço em toda a humanidade”
Cyro Monteiro era sobrinho do pianista Nonô (Romualdo Peixoto, chamado “O Chopin do Samba”) e parente de Cauby Peixoto, creio que primo. Tinha oito irmãos (todos com nome iniciado pela letra C), e com um deles, Careno, começou sua experiência, cantando em dupla. Torcedor do Flamengo, quando nasceu Sílvia, filha do pó-de-arroz Chico Buarque (com Marieta Severo), mandou para o bebê uma camisa rubro-negra; Chico, em “represália” fez o samba Ilmo. Sr. Cyro Monteiro ou Receita para virar casaca de neném. Vinícius disse ser o cantor uma criatura tão extraordinária, a ponto de o poetinha achar “deplorável qualquer de seus amigos não se haver dito, num dia de humildade, que gostaria de ser Cyro Monteiro”. Cyro, segundo Vinícius, “é um grande abraço em toda a humanidade”.  
_______________07 Ciro Monteiro
A Constituição e o direito de cantar
Mais do que uma frase, Vinícius e Baden deram a Cyro todo um disco, o De Vinícius e Baden especialmente para Cyro Monteiro, gravado em Paris, em 1965. O disco citado, hoje peça de colecionador, tem dez faixas, das quais me lembro bem de Tempo feliz, Deixa, Amei tanto e Formosa – todas na voz do  homenageado. Baden, num show no Teatro de Ilhéus, transpirava bom humor, quando disse que cantava porque a Constituição Federal lhe garantia esse direito. Sabia o grande violonista não ser nenhum Sílvio Caldas. Neste vídeo, ele canta (viva a Constituição!) Formosa, uma das faixas daquele disco com que Cyro Monteiro mais se identificava. Vocês podem se queixar do cantor (que até tenta uma espécie de scat singing), mas, certamente, não vão reclamar do acompanhante. Vale pela curiosidade.

(O.C.)

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A TELEVISÃO E SUA LINGUAGEM RASTEIRA

Ousarme Citoaian
Do jeito que a coisa anda, terminaremos nos comunicando por sinais de fumaça. Escrever (ou falar) de acordo com o que a norma preceitua virou coisa arcaica, sem graça e de difícil entendimento. E a mídia (façamos aqui um mea culpa) tem muito a ver com isso, sobretudo a tevê, que defende como princípio uma linguagem cada vez mais rasteira, cooptando, lentamente, a sociedade: os folhetins (a que chamam novela), antes considerados “produto para domésticas analfabetas”, hoje são matéria de teses de doutoramento nas universidades (e quem empregar a frase aspeada será tido como preconceituoso e politicamente incorreto). São ásperos os tempos.

ANTÔNIO MARIA, A FRASE PARA A HISTÓRIA

O processo de erosão intelectual é bem antigo. Sérgio Porto (o Stanislaw Ponte Preta) nos conta esta: Antônio Maria (cronista, compositor, narrador de futebol, roteirista e apresentador de programas de rádio e televisão), foi solicitado por Péricles do Amaral, então diretor da TV Rio, a copidescar uma matéria. A ideia era tornar o texto mais simples, ao alcance do público menos escolarizado. O trabalho do autor de Ninguém me ama não satisfez o chefe, pois este achava que o texto ainda poderia ser mais simples. O bom Maria refez a tarefa, porém, ao entregar a nova adaptação, produziu uma frase para a história: “Pior do que isto eu não sei fazer”.

DE COMO TORNAR PERPÉTUA A IGNORÂNCIA

A tevê, em seu objetivo de atingir as camadas medianas da população, derrapa tanto em linguagem quanto em conteúdo. A linguagem (seja na tevê seja na literatura de ficção, por exemplo) precisa ser simples, sem ser indigente. Nunca é demais repetir que a simplicidade é uma qualidade do estilo. Portanto, ser simples, sem ser rasteiro, não é defeito, é virtude. Já a questão do conteúdo é mais difícil: William Bonner, editor do Jornal Nacional, comparou o telespectador médio a alguém simplório como o personagem Homer Simpson, “incapaz de entender notícias complexas” – daí o JN só divulgar o “simples”. Este, sim, é um argumento destinado a perpetuar a ignorância.

PROVA DE DESRESPEITO AO LEITOR/OUVINTE

Costumo dizer que jornalistas detêm, basicamente, o mesmo saber. Eles se diferenciam na ética, no comportamento moral e na (in) dependência com que atuam – mas se equivalem em domínio da linguagem (ou não são jornalistas, são enganadores). Todos eles sabem o que é sujeito e predicado, estudaram e apreenderam noções de concordância, regência e acentuação (se não estão seguros sobre o emprego do hífen, não os culpemos – afinal de contas, ninguém sabe usar esse sinalzinho nefasto, depois do último Acordo Ortográfico). Por que erram tanto? – perguntaria a leitora ingênua (ainda há leitoras ingênuas?), a quem eu diria: erram por falta de cuidado, desleixo e conseqüente desrespeito ao leitor/ouvinte.

CUIDADO COM O REBANHO BOVINO NAS RUAS

Em dias recuados, na aventura de assistir a um noticiário de tevê, dei de cara com uma reportagem do Extremo Sul da Bahia, alardeando o progresso econômico daquela região. Lá pras tantas, o repórter destacou que, além da agricultura, existe em Teixeira de Freitas um notável crescimento da pecuária. E saiu-me com esta pérola: “Tanto é assim que a cidade já possui o quarto rebanho bovino do estado”. Pálido de espanto, pensei no inferno que seria a cidade conviver com tantas vacas, bois, bezerros e touros nem sempre de bom humor, a atravancar ruas e amedrontar pessoas. Ao que me consta, nem a Índia (onde as vacas, por tradição religiosa, têm sagradas até as fezes e a urina) se viu igual pesadelo.

PARA UM BIFE, 15 MIL LITROS DE BOA ÁGUA

Devidamente traduzida e digerida a notícia, filosofei, a respeito do repórter: tão jovem, bem vestido, mas tão descuidado! Tudo ficaria simples e claro se ele dissesse que “o município” etc. etc., pois é regra conhecida que a pecuária não se pratica na cidade: é lá no campo que ela se exerce, sob protesto dos ambientalistas, que querem os bois extintos (um bovino, até que passe de bezerro a bife acebolado, bebeu milhões de litros de boa água – sendo que o tal bife acebolado “custa” cerca de 15 mil litros – mas esta é outra história). Voltando à pérola, é o que dizíamos na abertura deste tema: o repórter, por certo, está careca de saber que município e cidade são valores bem diferentes. Descuidou-se.

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DE TROPEIRO A ATOR, POETA E COMPOSITOR

Zé do Norte (por extenso, Alfredo Ricardo do Nascimento, em Cajazeiras/PB) trabalhou na enxada sob o sol do sertão nordestino, foi tropeiro e apanhador de algodão. Em 1921, alistado no Exército, foi servir no Rio de Janeiro e, a partir de um convite de Joracy Camargo, embrenhou-se no meio artístico e foi em frente: virou cantor, compositor, poeta, folclorista e ator. Jogava nas onze e chutava com as duas. Trabalhou nas principais emissoras de rádio da época, foi consultor do sotaque nordestino em O Cangaceiro (Lima Barreto) e, graças a esse filme, ficou conhecido mundialmente com Muié Rendera (ou Mulher Rendeira). Fez cerca de cem canções, algumas delas com revisitas modernas de Nana Caymmi, Raul Seixas, Maria Bethânia e Joan Baez. É tido como “descobridor” de Luiz Gonzaga.

CANGACEIRO-POETA OU POETA-CANGACEIRO?

O músico pernambucano (1926-2006) ensinou a arte a Baden Powell, Paulo Moura, Menescal, Sérgio Mendes, Nara Leão, João Donato. Não é pouca coisa. Dele, Vinícius disse (Samba da Bênção): “Moacir Santos/tu que não és um só, és tantos”. Sua estreia em gravação se deu com o álbum Coisas, “um dos melhores discos brasileiros de todos os tempos”, segundo a revista Rolling Stones. São dez faixas – Coisa nº 1, Coisa nº 2, Coisa nº 3 (e por aí vai), mas Coisa nº 1 não é a primeira faixa, é a 8ª, Coisa nº 8 é a 10ª e Coisa nº 5 é a 3ª. Coisa confusa, não? Coisa mais linda é Sônia Braga, que enfeita, acompanhada de figuras carimbadas da Globo em 1980, Coisas do mundo, minha nega, do elegante, fino, inteligente, discreto e terno Paulinho da Viola. Faltou alguma coisa? Então vá: genial.

LAMPIÃO: “TU ME ENSINA A FAZER RENDA”

Volta Seca e Zé do Norte foram contemporâneos (Zé do Norte era dez anos mais velho) e, ao que consta, chegaram a trabalhar juntos como consultores de O Cangaceiro. Mesmo assim, o ex-integrante do bando de Lampião não se mostrou incomodado com a Muié Rendera cantada pelo grupo paulistano Demônios da Garoa (a letra de Zé do Norte, não a dele). E não se pode ignorar a versão também corrente de que o autor não seria nenhum dos dois, mas o mítico Lampião, o Rei do Cangaço. Enfim, a autoria da letra simplória de Mulher Rendeira tem lá seus mistérios, mas a Zé do Norte cabe o mérito da adaptação conhecida por várias gerações de brasileiros, há quase 60 anos. A dupla Marco Pereira (violão) e Gabriel Grossi nos mostram o que a composição tem de melhor, a melodia.
(O.C.)
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JÁ MUITO ALÉM DO CABO DA BOA ESPERANÇA

Ousarme Citoaian
Foi com Emílio de Menezes que aprendi a beber uísque com água de coco. “Como?” – gritariam horrorizados puristas, para os quais uísque não se mistura – e, no seu espanto, me levantariam a bola para um mau trocadilho: eu não como, bebo. Mais: se o poeta morreu em 1918, este humilde e hebdomático colunista, para gabar-se de com ele ter bebericado, precisaria carregar no costado, pelo menos, 100 anos – e ter começado a beber ainda usando fraldas. Convenhamos que já estou meio para a idade provecta, mais pra lá do que pra cá, dobrado o Cabo da Boa Esperança e ofensas semelhantes, mas não tanto que ultrapasse uma centena de verões ardentes.  Meu convívio com o poeta não se deu em boteco, mas em livro.

EMÍLIO, QUEM DIRIA, NÃO É MAIS AQUELE


Trata-se de Emílio de Menezes, o último boêmio, de Raimundo de Menezes, bebido (ops!) na adolescência, e que agora recuperei num sebo. Réu, confesso: precoce, lia, bebia uísque e fumava (de fumar, logo me cansei, pois odeio vícios pequenos). Pois saibam todos que o velho e bom Emílio (a voz poética mais destrutiva que já se ouviu neste País) está também num livro psicografado por Chico Xavier (Parnaso de além túmulo) e, crenças à parte, não gostei de vê-lo “recuperado”, como ali se mostra em dois sonetos. Num deles, confessa: “Sou o Emílio, distante da garrafa,/ mas que não se entristece nem se abafa,/ longe das anedotas indecentes”. Não é Emílio, é anti-Emílio. 

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OPINIÃO DE LINGUISTA “PESA” EM DECISÃO

A variedade de entendimentos é um dos muitos encantos do Direito e, por extensão, da democracia e da vida. Um juiz de Niterói (poderia ser qualquer outro cidadão) recorreu à Justiça, exigindo ser tratado por “senhor”, pois se sentira ofendido ao ser chamado de “vocêpelo síndico do edifício onde mora. Pleiteava que também suas visitas recebessem do mesmo síndico o tratamento de “senhor”, “senhora”, “doutor”, “doutora” e por aí vai – e ainda pedia que, em caso contrário, fosse o “infrator” levado a pagar multa não inferior a 100 salários mínimos, por danos morais. No tribunal, o julgador negou-lhe a pretensão, com base em parecer da linguista Eliana Pitombo Teixeira.

DOUTOR É TÍTULO, NÃO FORMA TRATAMENTO

Segundo a professora, “você” é tratamento formal – por ser variante (contração) da alocução respeitosa “Vossa Mercê”. Para o magistrado sentenciante, “´Doutor´ não é forma de tratamento, e sim título acadêmico utilizado apenas quando se apresenta tese a uma banca e esta a julga merecedora de um doutoramento”. Estou perfeitamente de acordo quanto à segunda justificativa. Da primeira, data vênia, discordo frontalmente: “você”, embora vindo de uma expressão formal, é, na linguagem de todos os quadrantes do Brasil (exceto, talvez, alguns locais da região Sul), tratamento íntimo. Nenhuma pessoa medianamente educada usa “você” com pessoa idosa, autoridade ou desconhecido.

COMO REGRA, “VOCÊ” É TRATAMENTO ÍNTIMO

Não opino se há direito ou apenas pose na “exigência” do cidadão em não querer ser tratado por “você”. Apenas digo que “você”, em não sendo, por si só, forma ofensiva de abordagem, não é formal, como diz a ilustre professora, opinando a distância do falar brasileiro. Mas ela tem seguidores, obviamente: o ótimo apresentador Jô Soares costuma tratar todos seus convidados por “você” – e há quem ache isto normal (ele, por exemplo, acha). Assustou-me ver, por exemplo, Fernando Henrique Cardoso e D. Evaristo Arns (para citar apenas duas figuras que devem receber trato formal) serem chamados de “você”. No meu entender, cometeu-se, nestes dois casos, uma descortesia. Ou mais.

“JUSTIÇA, PARA SER BOA, COMEÇA EM CASA”

Não resisto a esticar o assunto e fazer um comentário em torno da palavra “doutor”, de sentido hoje já desvirtuado (para não dizer desmoralizado) entre nós. Aqui, a tese aprovada por banca especializada não está entre as formas mais comuns de chegar ao título: mais fácil é obter uma licenciatura qualquer ou, na falta desta, vestir-se de branco. Bem fez famoso bacharel em Direito, de Itabuna, que, tão logo recebeu o diploma, reuniu a família e fez seu primeiro grande discurso: “A justiça, para ser boa, começa em casa; portanto, a partir de hoje, quero ser chamado de doutor”. Assim foi feito e assim é até hoje, “doutor pra lá, doutor pra cá”, com (quase) todos felizes.

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NOEL, UMA IMENSA PRODUÇÃO EM OITO ANOS

Vinícius de Morais, que praticamente abandonou a carreira de poeta “sério” para se dedicar a um gênero então considerado menor, a MPB, foi letrista dos mais profícuos. Penso que, em termos de produtividade, ele só tem rival em Noel Rosa, que fez mais de 200 composições – sem contar muitas que vendeu e foram assinadas por outros compositores. Vinícius ultrapassou a marca de 300. Não faltará fã de Noel a fazer as contas e concluir que o Poeta da Vila, que viveu 27 anos (1910-1937) realizou toda sua carreira musical em curtíssimo período (de 1929 a 1937). Já Vinícius (1913-1980) produziu durante 22 anos, a partir de 1958.

VINÍCIUS FOI BARROCO, NOEL FOI CAIPIRA

Visto assim, Noel foi mais produtivo. Porém a ideia não é comparar os dois autores e levantar polêmica, mas mostrar alguns pontos curiosos. Além desse da alta produção, os dois começaram com gêneros que logo abandonaram: Noel estreou com a embolada Minha viola, cuja letra hoje parece fora do padrão noelino: “Minha viola tá chorando com razão,/com saudade da marvada que roubou meu coração”. Vinícius começou em tom barroco, com Serenata do adeus. Refere-se à mulher como “estrela a refulgir” e cria estes versos: “Crava as garras em peito em dor/ e esvai em sangue todo o amor,/ toda desilusão”. Cândido das Neves assinaria.

EM VINÍCIUS, ATÉ CÂNCER ERA INSPIRAÇÃO

Noel subiu o nível dos seus versos, assumindo-se como poeta urbano “culto”, Vinícius abandonou a escola antiga, integrou-se à Bossa Nova, popularizou-se, sem fazer concessões à vulgaridade. Como costuma acontecer, o espaço se finda, e tanto ainda resta a dizer. Há tempo para citar Chico Buarque (foto), para quem Vinícius fazia letra de música com “qualquer coisa”. Certa noite, numa clínica para se tratar do excesso de uísque, o Poetinha ouviu que no quarto vizinho um homem com câncer estava em estado terminal – e alguém, logicamente, chorava seu desenlace iminente: Vinícius fez e mandou pra Baden pôr a melodia em Pra que chorar (aqui, com Zeca Pagodinho).
 

 O.C.

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ESCREVER É EQUILIBRAR-SE NA CORDA BAMBA

Ousarme Citoaian
Dia desses, grafei torço (verbo torcer), quando queria dizer torso (busto) – ferida em que um leitor diligente logo pôs o dedo. Em outros tempos, tentava-se (com um sorriso amarelo) justificar isso como “erro de imprensa”, uma impropriedade, já se vê: o erro seria, quando muito, de datilografia (usava-se máquina de escrever) e, hoje, de digitação (já não se escreve, digita-se).  Como o Ç está bem longe do S, o meu caso é sem remédio: não foi erro de digitação, mas derrapada das brabas, desatenção, desleixo. Mas, e daí?  – haverão de perguntar os mais pressurosos. É para dizer que as armadilhas, seja teclar a tecla (ops!) errada ou se permitir atos falhos, sempre rondam quem escreve.

RECLAME NÃO É QUEIXA, É PUBLICIDADE

Por exemplo: temos visto um abusivo emprego de reclame, como substantivo: “A PM quer ouvir os reclames da população”, diz um jornal, um blog fala dos reclames quanto ao transporte ao Carefour, outro informa que a UPB registra muitos reclames de prefeitos e um terceiro acusa, de dedo em riste: “O governo de Ilhéus não atende aos reclames da população”. Aqui não se trata de “erro de digitação”, pois veículos diversos não conseguem cometer o mesmo engano, de forma recorrente. Logo, é desinformação, de fato. Reclame, para os casos citados, não serve. O mais indicado é reclamo, que remete a reclamação, queixa; reclame é anúncio (ao lado, um do Leite Leik, no Diário da Tarde de Ilhéus, anos 60).

ORESTES BARBOSA E OS VERSOS LUMINOSOS

Há um abono em Arranha-céu, de Orestes Barbosa, ao descrever (com versos de sete sílabas) uma situação em que o sujeito espera, de coração dilacerado, a mulher que não vem. O cara fica “vendo a cidade a luzir/ nos seus delírios nervosos/ dos anúncios luminosos/ que são a vida a mentir”. Mais adiante, o poeta, na voz de Sílvio Caldas (foto), cai na real e afirma: “Cansei de olhar os reclames/ e disse ao peito ´não ames,/ que teu amor não te quer´”…  Os reclames a que ele se refere são os luminosos (“que são a vida a mentir”, lindo verso!). Faustão sabe o que é reclame, tanto que criou a expressão “Reclames do plim-plim”, em referência aos comerciais da Globo, não às queixas da Globo.

OLAVO BILAC E O SEU PODEROSO RECLAME

Até o começo do século XIX não havia agências de publicidade, sendo os escritores, em especial os poetas, chamados a fazer anúncios. Conta-se que um amigo de Olavo Bilac lhe pediu um reclame para a venda de um sítio. O poeta fez algo assim: “Vende-se encantadora propriedade, onde cantam os pássaros ao amanhecer no extenso arvoredo, cortada por cristalinas e marejantes águas de um ribeirão. A casa, banhada pelo sol nascente, oferece a sombra tranquila das tardes na varanda”.  Dias depois, soube que o amigo desistira da venda. O sujeito, ao ler o reclame, “descobriu” a maravilha que era o sítio, para ele, até então, apenas um terreno, uma casa velha e umas árvores, coisa que só lhe dava prejuízo. Ah, do que é capaz o bom texto!
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COMPLEXO DE CULPA INQUIETA COLUNISTA

Penso em sugerir ao  Pimenta colocar nesta página a tarja “Cuidado! Perigo! Afaste-se!”, ou algo equivalente. É que me sinto na contramão do mundo e, no caso, com a possibilidade de influenciar (o pensamento mais arcaico diria “desencaminhar”) alguns leitores, o que me daria certo complexo de culpa. Conforta saber que as crianças não me leem, daí não sofrerem interferências negativas em seu desenvolvimento sociocultural. Pelo menos é o que espero das mães mais cuidadosas, pois com os pais, todo mundo sabe, é difícil contar. Senão, vejamos em que se baseiam minhas preocupações, de todo fundadas.

JOÃO, NOEL E SAMUEL, TODOS SÃO ROSA

Como (e aí me refiro aos adultos, obviamente) ler alguém que não vê a novela das oito (que na verdade é das nove!), não tem discos do Chiclete, de Claudinha, nem de Ivete? Minha preferência é Rosa, Guimarães ou Samuel (foto), sem esquecer de Noel, ou Rosa de Pixinguinha, e Rosa minha madrinha, ou ainda Rosa Passos  e  também Rosa Maria, de Lupicínio um achado, em boa e velha canção: “Seu nome é Maria Rosa, seu sobrenome, Paixão”. Quero Caetano, Caymmi – fiz uma aliteração? – e também Luiz Gonzaga, eterno rei do baião, eu quero Cauby Peixoto, quero mais Elis Regina, chega do forró maroto, que me agride em cada esquina.

CARLOS CACHAÇA, CANDEIA E BADEN

Eu quero o som da Portela, Sarah Vaughan, Billie, Ella, jazz e samba de Cartola, quero Jackson do Pandeiro, Gil, Paulinho da Viola. De Alcione o vozeirão, de Jacó o bandolim, pelo não e pelo sim, para botá-los nos trilhos sugeridos por meu estro, eu chamaria o maestro Antônio Carlos Jobim. Eu quero xote e baião, Carlos Cachaça e Candeia, Baden Powell ao violão (foto), Clementina (“Não vadeia”!), show de Zeca Pagodinho, Marcelo Ganem, Toquinho, as rimas de Ari Barroso, quero Elizete Cardoso, boa poesia e prosa, canção de Orestes Barbosa, samba-enredo da Mangueira, versos de Manuel Bandeira, contos de Guimarães Rosa.

POESIA, CONTA E NOVELA (NÃO DE TEVÊ!)

Quero Nelson Cavaquinho, com o sorriso no caminho, para eu passar com a minha dor, lembrando ainda outro Nelson, o que canta “Normalista”, e quase encerrei a lista, mas vou deixá-la em aberto, pois só agora desperto: eu não citei o maior, e o maior é João Gilberto. Permaneço nesta trilha, invoco Telmo Padilha, o breque de Morengueira, haicais de Abel Pereira, Cyro de Mattos em festa, com Canto a nossa senhora, prece em favor da floresta, da nossa fauna e da flora. Quero a Piaf de outrora, novela (não de tevê!!!) mas Os galos da aurora (de rimar o autor eu fujo – só se fosse Hélio Polvóra!), me tragam Jorge Araujo e nada lhes peço mais, com uma só exceção: é Vinícius de Moraes, que eu chamo de… “poetão”.

A MENINICE EM FIRMINO ROCHA

Rua da meninice
em noite de maio
desperta em mim
velhas canções,
antigas sagas,
amoríssimas baladas
de quando os luares faziam cirandas,
histórias de moças perdidas nos bosques,
sonhares em mim de doces afagos.

Rua da meninice
em noite de maio
me faz parecer
que nunca pequei,
que  nunca chorei,
que nunca sofri.

O POETA E SEU RITUAL DE SOLIDÃO

O autor de “Rua da meninice em noite de maio”, Firmino Rocha (Itabuna, 1919-Ilhéus, 1971), é, na visão crítica de Cyro de Mattos (na antologia Itabuna, chão de minhas raízes), poeta “místico e romântico”, com “voz essencialmente lírica”, tendo “vários poemas endereçados mais aos ouvidos do que aos olhos”. Assis Brasil, em A poesia baiana no século XX, deplora a ausência de fontes sobre Firmino (foto), dizendo tê-lo encontrado apenas na referida antologia de Cyro e numa nota publicada no extinto suplemento A Tarde Cultural. É ainda Cyro de Mattos quem anota: “Comove o ritual de solidão que cumpria esse poeta de espírito manso nas madrugadas de sua cidade natal”.
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O ESTADO ESPUMA E RANGE OS DENTES

Se fosse possível escolher uma canção-símbolo para o blues, esta seria Strange fruit, de Lewis Allan (foto), feita em 1940 e imortalizada por Billie Holiday. Diz a lenda que Allan (também conhecido pelo  nome judeu de Abel Meeropol) ficou impressionado com uma foto dos anos 30, com negros assassinados e pendurados pelo pescoço, numa árvore. “Estranhos frutos”,  pensou o poeta. Billie Holiday, negra, comprometida com seu povo, encerrava seus shows com esta música. Ao cantar Strange fruit, ela chorava, enquanto o poder espumava e rangia os dentes: é uma canção política, e por isso a cantora teve que se explicar às autoridades americanas.

UM TOM SANGUÍNEO DE CRUELDADE

O mais curioso é que Strange fruit, a rigor, não é blues, ao menos na forma em que o gênero é mais comumente definido – aquilo que os músicos chamam de 12 compassos, num esquema de pergunta e resposta. Sem possuir bagagem técnica, eu fiquei com essa dúvida, até ver The Blues – uma jornada musical (a série de sete filmes coordenada por Martin Scorsese). Um músico, já não me lembra quem, deu a resposta: tudo que Billie Holiday canta é blues, pelo patos que ela imprime à canção, que “contamina” com seu sofrimento pessoal. Vista assim, Strange fruit é essencialmente blues, pela letra carregada na cor vermelha da crueldade e da injustiça e pela interpretação insuperável de Lady Day (foto).
</span><strong><span style=”color: #ffffff;”> </span></strong></div> <h3 style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>E FRED JORGE CRIOU CELLY CAMPELLO!</span></h3> <div style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>No auge do sucesso, em 1965, a música teve uma versão no Brasil, gravada por Agnaldo Timóteo. Como costuma ocorrer com as
</span><strong><span style=”color: #ffffff;”> </span></strong></div> <h3 style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>E FRED JORGE CRIOU CELLY CAMPELLO!</span></h3> <div style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>No auge do sucesso, em 1965, a música teve uma versão no Brasil, gravada por Agnaldo Timóteo. Como costuma ocorrer com as

O FRUTO ESTRANHO E PODRE DO RACISMO

O Sul dos Estados Unidos era o local das plantations de algodão, com negros submetidos a odiosas formas de vida. É difícil imaginar a degradação em que essas pessoas sobreviviam – sob pressão de grande parte da população branca. O grupo racista Klu Klux Klan (KKK), com atuação ao longo dos tempos, registra um rosário de agressões a negros, hispanos e judeus, com linchamentos, incêndios e assassinatos (também de brancos simpatizantes). A filosofia da KKK resiste: em 1963, um seu ex-membro jogou uma bomba numa igreja batista do Alabama, matando quatro meninas negras; em 2001, um plebiscito decidiu manter na bandeira do Mississipi um símbolo associado à defesa da escravidão (a cruz de treze estrelas)

“SANGUE NAS FOLHAS E NA RAIZ”

Antes de ouvir, saiba que a letra fala de árvores que “têm um estranho fruto”, corpos negros balançando ao sopro da brisa sulina, “sangue nas folhas e sangue na raiz e, no último verso, a conclusão de que se trata de “uma estranha e amarga colheita” (a strange and bitter crop”). Clique, se for capaz.


(O.C.)