Billi Holiday, a dama do blues || Foto The Art Archive / Library of Congress
Tempo de leitura: 3 minutos

 

Billie diz ter pedido pra tocar Tra´velin All Alone, pois era o que mais se parecia com o que estava sentindo naquele momento. Silêncio total. Quando terminou as pessoas estavam chorando e ela pegou 38 dólares pelo chão.

 

Marival Guedes

Na rede de computadores ouvi casualmente Strange fruit (Billie Holiday). A composição fala sobre corpos de negros linchados e pendurados em árvores nos EUA. Dias depois, também por acaso, encontrei o livro Billie Holiday – Lady sings the blues – uma autobiografia. A publicação em Língua Portuguesa foi sugerida à editora Brasiliense pelo jornalista e biógrafo Ruy Castro, que fez a tradução e escreveu o posfácio.

Billie Holiday, aos dez anos, foi vítima de tentativa de estupro por um homem de 40 anos. Foi presa pela primeira vez injustamente, depois por porte de heroína e sofria constantes discriminações raciais, mesmo depois da fama.

A PRIMEIRA VEZ

A mãe era empregada doméstica e Billie diarista. Certa vez, a mãe, separada do pai, falou que seriam despejadas no dia seguinte, pois não tinha 56 dólares para pagar o aluguel. “Vou fazer qualquer coisa, mas trarei este dinheiro”, prometeu Billie.

Foi numa boate e pediu ao dono pra ser dançarina. No teste, em poucos minutos, foi interrompida e quando iam levá-la pra fora, continuou implorando emprego. O pianista apiedado perguntou se ela sabia cantar. Respondeu que sim, mas imaginou que não adiantaria. Gostava demais de cantar pra sonhar que poderia ganhar dinheiro profissionalmente.

Billie diz ter pedido pra tocar Tra´velin All Alone, pois era o que mais se parecia com o que estava sentindo naquele momento. Silêncio total. Quando terminou as pessoas estavam chorando e ela pegou 38 dólares pelo chão.

No final, mesmo dividindo com o pianista, conseguiu 57 dólares. No retorno pra casa, comprou um frango inteiro e feijão, comida que sua mãe adorava. Falou que conseguiu emprego de 18 dólares por semana. A mãe não acreditou, foi vê-la cantar e tornou-se sua maior incentivadora.

STRANGE FRUIT

Voltando à Strange Fruit, conta que o embrião foi um poema de Lewis Allen. Ele sugeriu que ela e o músico Sonny White transformassem em canção. Billie afirma que parecia falar das coisas que mataram o próprio pai, um músico que morreu vítima de problema pulmonar. O hospital não prestou atendimento por ele ser negro.

A primeira vez que cantou teve receio. Quando terminou não houve aplauso. Então, um jovem começou a aplaudir timidamente e de repente todas as pessoas aplaudiram. Por várias vezes empresários e produtores pediram pra ela não cantar esta composição. Billie desobedecia e foi intensamente perseguida pelo FBI por ordem do governo.

REAÇÕES AO RACISMO

Das histórias sobre discriminação racial destaco duas. Num voo com um amigo também negro, um homem branco na poltrona ao lado se mostrava bastante incomodado e olhava de soslaio para a dupla. De repente, fogo numa asa do avião. O homem pede pra segurar nas mãos deles e rezarem juntos. Billie respondeu: “O senhor vai morrer aí na sua poltrona, cavalheiro, e nós morreremos na nossa.”

Felizmente, a aeronave pousou sem maiores problemas.

Outro caso aconteceu quando passeava com uma amiga e o carro enguiçou. Ela pediu ajuda a um homem, que consertou e deu uma volta pra se certificar que estava tudo bem. E convidou a dupla para um bar. Ao chegar, um comediante se dirigiu à mesa do trio e falou: “pelo jeito você gosta de todos os tipos de mulheres.” Foi esmurrado. Quando retornou à mesa Billie falou que só agora o tinha reconhecido por causa do murro. Ele riu muito. Era o ator Clark Gable.

Billie morreu em 1959, aos 44 anos, “de enfarte, heroína e emoções em excesso”, escreveu Ruy Castro no posfácio. Diz ainda que ela “fundou sozinha uma dinastia de cantoras negras ou brancas que até hoje nos alimentam a alma”.

Marival Guedes é jornalista.