Tempo de leitura: 4 minutos

GONÇALVES DIAS E SEUS ÍNDIOS HEROICOS

1ÍndiosOusarme Citoaian | ousarmecitoaian@yahoo.com.br

Adianto à gentil leitora e ao atento leitor que venho de tempos em que falar bem de índio não me fazia candidato a Judas de Sábado de Aleluia. Por isso decorei vastos trechos de I-Juca Pirama, o longo poema de Gonçalves Dias (1823-1864), com aqueles indígenas heroicos, grandiosos, valentes, que tanto me emocionaram – e, acabo de ver, ainda me emocionam. Pois é que voltei àquela fonte da infância, de onde tirei estas expressões: “caiu prisioneiro nas mãos dos Timbiras”; “as almas dos vencidos Tapuias, ainda choram”; “vaguei pelas terras dos vis Aimorés”; “quero provar-te que um filho dos Tupis vive com honra” – creio ser suficiente.

________________

 Academia de vestido longo e salto alto

A universidade brasileira, ainda elitista, arrogante, de vestido longo e salto alto (ou de fraque e bengala), costuma valer-se de linguagem própria, altissonante e, muitas vezes, vazia e ociosa. É o jargão que a identifica e isola, pois, deliberadamente, não atinge os mortais comuns. É bem o caso desse “índios Tupinambá” que a academia emana em flagrante agressão à lógica da linguagem. Gonçalves Dias há de ser copidescado: “nas mãos dos Timbira”, “vencidos Tapuia”, “terras dos vis Aimoré”, “filho dos Tupi” – e por aí vai esse festival de esnobismo. E a mídia, com seu pendor para a repetição, copia e engole tais sandices sem mastigar.

 ________________

3BueraremaForma clássica, sem rasuras ou emendas

“Meninos, eu vi!”: agora mesmo, à luz do fogaréu em que Buerarema ardeu, grupos de estudiosos da questão indígena em Porto Seguro se pronunciaram, denunciando a reincidência de ações violentas na região. É ótimo que se manifestem, mas dispensável é esse festival de “apoio aos Tupinambá” e “conflitos entre índios Tupinambá e fazendeiros”. Penso que com “índios Tupinambá” se queira dizer “índios (da etnia) Tupinambá, obviamente uma complicação (elipse?) desnecessária. É como escolher a linha curva para ir de um ponto a outro. “Índios Tupinambás” é a forma clássica, nos bons autores, que dispensa qualquer tipo de rasura ou emenda.

| COMENTE! »

UM OFFICE BOY COM O DOM DA UBIQUIDADE

Leio (ah, a universalidade da internet!) que o office boy Eduardo Carlos de Santana Jr., na flor dos seus 27 anos, foi condenado a sete anos e meio de cadeia por participar de assalto a uma loja de material de construção no bairro Vale dos Reis, em Cariacica/ES. Descubro mais: o Eduardo em apreço está foragido, daí a intimação de sentença, publicada no Diário da Justiça, afirmar que o condenado “encontra-se em lugar incerto e não sabido”, por isso sendo intimado por via do Edital. A expressão “lugar incerto e não sabido” é jargão dos cartórios (juridiquês) que atenta contra a saúde da língua portuguesa.
_________________

5ForagidoDesatenção com a gramática e a lógica

A prática, não raras vezes, consegue mudar a teoria (aliás, nada digo de novo, pois é no dia a dia do escrever e, mais ainda, do falar, que a língua se forma e se transforma). Neste caso, o princípio teórico, a lei, fala em citar pessoa em lugar incerto, não sabido ou indeterminado – atendendo à verdade de que o réu não é onipresente, não pode estar em dois lugares ao mesmo tempo. Operadores que não leram a regra com atenção vulgarizaram o “incerto e não sabido”, em detrimento da gramática e da lógica: incerto é “indeterminado”; não sabido, “ignorado”. Diga-se, então, “incerto ou não sabido”, sem traumas à norma.

|   COMENTE! »

LETRA DE MÚSICA PARA TESE DE MESTRADO

Dizer que Querelas do Brasil, de Aldir Blanc, é trocadilho com Aquarela do Brasil, de Ari Barroso, é verdade, mas muito pouco. Trata-se de letra “grande” demais para ser analisada em coluna de amenidades, tema para ensaio, tese de mestrado, essas coisas da mais alta responsa: o termo, segundo o Priberam, tem significados principais de discussão, debate, contestação; em lugar da aquarela, a querela não é mais exaltação, é desconstrução do modelo ufanista, louvação de outros valores, para mim sendo o maior deles a língua brasileira inculta e bela. Aldir abusa da sonoridade, ressuscita palavras, colhe outras em matrizes índias e negras: “Jererê, sarará, cururu, olerê/ blablablá, bafafá, sururu, olará”.
________________

7Jobim-AçuDos sertões de Guimarães a Jobim-açu

É notável a “louvação” que o poeta faz de grandes nomes das artes brasileiras, muitas vezes fundindo palavras. Lá estão “sertões, Guimarães” (lembrança de Guimarães Rosa e seu ambiente romanesco), “Caandrades” (sobre os Andrade: Drummond, Mário e Oswald), “Marionaíma” (fusão de Mário de Andrade e Macunaíma), “Bachianas” (referência direta às Bachianas Brasileiras de Villa-Lobos), “Tinhorão” (homenagem ao crítico musical José Ramos Tinhorão). Porém, o mais louvado de todos é Tom Jobim, com acréscimos que sugerem “grandeza”: “Jobim-açu” (açu é “grande”, em tupi), Jobim akarore (akarores são índios gigantes) e Ujobim (alguma coisa como Jobim pai).É o Brasil que o Brazil não conhece, de que fala o refrão.

 _________________

O Brasil que pode socorrer o Brasil

É curiosa a oposição Brasil/Brazil (com grafia e pronúncia distintas), como a confrontar “brasis” diversos: “o Brazil não conhece o Brasil/ o Brasil nunca foi ao Brazil”. Esta dicotomia vai confluir para uma espécie de sub-refrão em que desaparece o Brazil, e o Brasil ressurge a pedir socorro… ao Brasil. O autor parece querer dizer que as soluções dependem de nós mesmos. (Parte da “erudição” mostrada neste texto foi apreendida de um estudo publicado por Jussara DalleLucca, que explica o significado dos estranhos termos empregados por Aldir Blanc). E quase não tive espaço para dizer que Elis Regina, como sempre, está à altura desta forte mensagem política, de 1979, do autor de O bêbado e o equilibrista (1978).

 O.C.

Tempo de leitura: 6 minutos

MUNDO VISTO POR SAPO NO FUNDO DO POÇO

Ousarme Citoaian
Circula na internet um texto de ataque grosseiro aos que adotam a forma presidenta. É um monte de sandices que a direita ora desempregada chama de “aula de português”, misturando presidenta, adolescenta, pacienta e eleganta no mesmo pacote grotesco, etiquetado como “linguagem do PT e seus sequazes”. Trata-se de estultice travestida de erudição, somada a falta do que fazer e preconceito – nascido nas mesmas fontes que se opunham a Lula por ele ser “analfabeto” e beber cachaça. O ex-presidente chamou isso de “pequenez da oposição”. Disse-o bem, pois parte do seu enorme prestígio pode ser creditada justamente a opositores que têm do mundo essa visão de sapo no fundo do poço.

O TERMO “PRESIDENTA” É ANTERIOR AO PT

A palavra presidenta é muito mais velha do que o grupo político hoje no poder em Brasília. O português Castilho (Antônio Feliciano de), nascido em1800 (e lá se vão dois séculos e pico!), a empregou – citado por Mário Barreto (Novos Estudos da Língua Portuguesa). Ariano Suassuna também grafa presidenta várias vezes na sua obra maior, O Romance d´A Pedra do Reino/1971. Numa busca rápida (minha edição – a 5ª da José Olympio – tem mais de 750 páginas!), encontro duas referências (pág. 304 e 391): ele trata Dona Carmem Gutierrez Torres Martins como “presidenta perpétua” da enigmática entidade As virtuosas damas do cálice sagrado de Taperoá.

GROTESCA “AULA” DE PRECONCEITO E MÁ-FÉ

A prometida “aula de português” se frustra, sufocada por despreparo, preconceito e má-fé. A analogia de  presidente (gênero masculino) com adolescente, paciente e elegante (comuns de dois) é fraudulenta – e ninguém precisa ser linguista para saber dessas coisas primárias. Eu sempre advoguei presidenta, mas tenho como aceitáveis as duas formas (presidente, consagrada pelo uso, e presidenta, por ser gramaticalmente correta). Mas há controvérsias. Para Marcos de Castro (A Imprensa e o Caos na Ortografia) só existe uma forma: “mulher sempre será a presidenta”, diz ele, “não só como reivindicação feminista, mas também por questão linguística”.

AFINAL, QUAL É A PIOR FALA BRASILEIRA?

Perguntaram ao professor Pasquale Cipro Neto (famoso comentador de questões de língua portuguesa na mídia) onde se falava o pior português do Brasil e ele insinuou que era São Paulo, exemplificando com “dois pastel” e “acabou as ficha” (esqueceu “um chopes, mano”). Para ele, influência italiana. Mas não há unanimidade quanto a isso. Linguistas outros alertam que suprimir o “s” do plural não é “privilégio” de paulistas, mas uma prática comum nas camadas ditas incultas, do Oiapoque ao Chuí (ou ao Caburaí, se preferem). Nas nossas feiras, por exemplo, ouve-se que a dúzia de banana-maçã custa “dois real”.

SÃO PAULO EXPORTA PARA TODO BRASIL

Há expressões de paulistês que incomodam ouvidos habituados à pronúncia “nacional”, o padrão Rio de Janeiro (de acordo com Antenor Nascentes). É mal falado o português que chama a letra E (aberto) de Ê (fechado) – ou apelida o O de Ô. Sotaques de gente como Sabrina Sato (tenho um Asterix e os Vikings dublado por ela, uma tragédia) e Neto (aquele que comenta futebol na tevê) agridem ouvidos não paulistas. Mas o filólogo Marcos de Castro (obra citada) destaca como a pior coisa que se faz em São Paulo a frase do tipo “Nós estamos em cinco”, que ele diz ter ouvido até do carioca Jô Soares. Exportação de São Paulo, para o Rio.

DON FERNANDO PEREIRA LEITE, O GROSSO

Em outros tempos, dizia-se que o Maranhão, berço de Gonçalves Dias (foto), Raimundo Correia, Ferreira Gullar, Alcione e Humberto de Campos, falava o melhor português do Brasil. São Luís era então cidade “culta”, a Atenas brasileira. Noutro momento, por “contaminação” da cultura francesa, o maranhense estranhava se alguma pessoa se dirigia a outra de forma descortês. Conta o acadêmico José Sarney que lá pelo século XIX governava a província um certo D. Fernando Pereira Leite de Foyos, que destoava dos bons modos vigentes na área, por isso foi vitimado pela impiedade do povo: devido à sua escassa fineza de trato com os maranhnses, ganhou o sugestivo epíteto de Cavalo Velho.

VIVEMOS NOS TEMPOS DE CAVALO VELHO

Parece que vivemos aqui tempos daquele Cavalo Velho, como se a Bahia fosse um imenso curral (ou um presépio de bestas, como suspeitava Gregório de Mattos). O tempo passou, os bons modos e a linguagem foram jogados no mesmo saco de lixo da “globalização”, e hoje expressar-se deselegantemente é uma lei a ser seguida. Ser grosso é ser pop, e o que era regra virou exceção. Quanto ao sotaque, dizem os linguistas, há de  se preservá-lo, pois é uma forma de ligar o indivíduo e sua aldeia, responder à “pasteurização” da linguagem e valorizar os falares locais. Então, defendamos o direito de Sabrina (foto) e Neto, apesar da estranheza a nossos ouvidos nordestinos.

A PARAÍBA, APESAR DA FAMA, É FEMININA

“Paraíba masculina, mulher macho, sim senhor!” – diz o verso de Humberto Teixeira, gravado por Luiz Gonzaga, e que tanto constrangimento causou à mulher paraibana. O pior de tudo é que a “maldade” foi feita a um dos, se bem me lembro, dois únicos estados brasileiros “femininos”. O outro é a Bahia. Há predominância de nomes “masculinos” (Amazonas, Rio de Janeiro, Amapá, Rio Grande do Sul, Espírito Santo e outros) e “neutros” (Goiás, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe, por exemplo). “Eu vim da Bahia/ e algum dia eu volto pra lá”, diz a canção de Gil. Fala-se “Vim do Rio (ou do Pará e do Tocantins) e “Vim de São Paulo (de Brasília, de Goiânia, de Macuco).

OS ESTRANHOS POENTES DE TELMO PADILHA

Imagino (e tomara que os linguistas não me vejam como gafanhoto na seara que lhes pertence) que se trata, nos casos de São Paulo, Minas, Goiânia, Sambaituba e semelhantes (que não aceitam o  artigo ”o” ou “a”), de vestígio do gênero neutro latino. Mas deixo a explicação para quem dispuser de melhor engenho e arte do que eu. “Que artista é este que pinta/ estranhos poentes em Ilhéus?”, interroga Telmo Padilha, abonando nossa tese: o poeta não poderia dizer no ou na Ilhéus (a palavra, para este efeito, não é masculina nem feminina). Mas essa forma “neutra” também sofre pressão de escolhas regionais. O exemplo que me ocorre é Recife. Ou… o Recife.

ANTÔNIO MARIA TINHA SAUDADE DO RECIFE

“Eu nasci em Recife” seria a construção a nos tentar, pois a cidade, aparentemente, está no grupo dos neutros. Mas os recifenses fizeram sua própria regra: vou ao Recife, moro no Recife, gosto do Recife, pretendo passar o carnaval no Recife. Esse falar é típico local, para quem Recife é masculino, sim senhor. Gilberto Freire (foto) escreveu Assombrações do Recife Velho e Roberto Beltrão, no rastro, O Recife assombrado. “Sou do Recife/ com orgulho e com saudade” – chora o grandalhão Antônio Maria, no Frevo nº 3 do Recife. Observe-se a “masculinização” da palavra, a partir do título da música, cantada aqui por Geraldo Maia (ousei um incidental de Frevo nº 1 do Recife, do mesmo autor, com Betânia).

(O.C)