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CUIDADO COM A LEITURA QUE “CONTAMINA”

Ousarme Citoaian | ousarmecitoaian@yahoo.com.br
1Homem lendo jornalQue não sejam tão puristas e chatos os que se comunicam com a população, mas mantenham um mínimo de cuidado com a linguagem. Fazer isto é respeitar o leitor/ouvinte e (por que não?) ser didático, ensinar: já vimos nesta coluna que o jornalista e advogado Ricardino Batista, de Itabuna, dizia ter aprendido a ler não propriamente na escola, mas tentando decifrar os textos do jornal A Tarde. Hoje, considerando certas coisas que vejo publicadas, tal experiência resultaria em completo desastre. Há de se tomar cuidado para não se “contaminar” com certos escritos que por aí desfilam sua irresponsabilidade, impunemente.

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Vereador quer “encontrarem” soluções
 
Penso no bom Ricardino ao ler nota da assessoria do vereador ilheense Rafael Benevides, um atentado violento ao pudor do texto. Diz que o edil tem ouvido os “reclames” da população, “à cada dia” melhora seu desempenho, e (com outros poderes) procura “encontrarem” soluções para “às várias” necessidades do município. Por fim, a cereja do bolo da incompetência: há “problemas em que a todos preocupam de que, deverasmente, macula à imagem do município”, mas ele vai “enveredar” esforços para resolvê-los. Chuta-se a gramática, viola-se a concordância, constrange-se a regência. Pressionado por tão desmesurada insensatez, calo-me.
 
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SALDANHA, A CONVENIÊNCIA E A ALIENAÇÃO

3SaldanhaNestes bicudos tempos de questionável futebol internacional no Brasil, enquanto multidões incendeiam as ruas (às vezes literalmente), me vem à lembrança a perfeita associação de futebol e política, que foi o jornalista João Saldanha (julho, 1917 – julho, 1990). Em meio ao alheamento da crônica esportiva (parte por conveniência dos veículos, parte por alienação mesmo), Saldanha, politizado, militante do PCB, saberia dar seu recado sobre o esporte sem esquecer o clamor das ruas, que, certamente, estaria apoiando. Tem sido difícil aguentar os comentários ufanistas, quando o povo sofre e protesta contra tudo e contra todos.
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Os ônibus são para prestar serviço”O João sem Medo sempre encontrava o viés político, como neste trecho de crônica publicada no extinto JB, em 1988: “Os ônibus são para prestar serviço e não para dar lucros fantásticos, como o que estes indivíduos, seus proprietários, abocanham. Eles dizem abertamente: ´Com mais de oito cadáveres já estou no lucro´. E os cadáveres somos nós. Corrompem o poder público, andam por onde querem, violentam o trânsito, e os seus prepostos são os que fixam os preços e itinerários. Ninguém sofre mais do que o pobre coitado que se atreve a ir a um jogo noturno. Fica horas sentado num meio-fio à mercê da intempérie e do assaltante”.
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JOVENS, BONS MODOS E “ESQUISITICES”

5RestauranteCometi, há dias, um gesto de gentileza com uma (não muito) jovem senhora e ela, correspondendo, disse que eu era “das antigas”. Acreditem, isto foi um elogio, que me fez pensar se os bons modos são coisa de velhos, vedada aos jovens. Penso que dizer “obrigado”, “desculpe”, “por favor” e outras esquisitices deveria fazer parte da educação básica de todos – mas parece que esta é uma típica ideia de ancião. As adolescentes são, em geral, lindas, mas algumas delas deveriam ficar de boca fechada. Ser jovem, para muita gente, significa dizer palavrões, desdenhar dos “coroas”, empurrar, em vez de pedir licença. Talvez seja a este meu pensar que chamam “choque de gerações”.
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A rapidez do mundo muda os conceitos
Pois até o conceito de “choque de gerações” já não é mais o mesmo. Se antes esse “antagonismo” se dava entre pessoas de 40 anos e de 20, por exemplo, agora as de 18 já “encaram” as de 25 como se estas fossem figuras fugidas do museu. É a rapidez com que o mundo gira, a poder de chips, parafusos, teclas e botões. Há meio século, “coroa” era quem tinha 60 anos, enquanto hoje já ganha este epíteto quem passa dos 30. Mas, nem pensem, não é meu caso: já tenho outonos bastantes para ser chamado de coroa, pé-na-cova, sobrevivente – ou o que mais queiram inventar para caracterizar um tipo “das antigas”. Digo que gostei do que a gentil senhora me disse. “Das antigas” é estranho, mas, para o caso, serve.

A MÃO DIREITA QUE “TOCAVA” A ORQUESTRA

7Count BasieSe acaso existiu algum chefe de orquestra modesto terá sido Count Basie (1904-1984), na foto, com Frank Sinatra. Poucos merecem tanto a denominação de bandleader: sem gritar nos ensaios, sem gesticular exageradamente nos shows, discreto, ele “se esconde” atrás do piano e dali lidera seus músicos. Não faz grandes solos, apenas “ponteia”, dá sinais, abre caminho para o grupo. “Basie não toca o piano, toca a orquestra”, resumiu um crítico de quem já não me lembra o nome, talvez seja Bruno Schiozzi. Não é à toa que Basie era tido como exclusivamente “mão direita”: sem floreios harmônicos da mão esquerda, ele não permitia excessos a seu piano, mais para reger do que para tocar.
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Sem piano, não havia família “chique”
O piano teve grande influência na cultura do Brasil antigo. Pois saibam todos que a mesma coisa se deu nos Estados Unidos. Nos anos vinte, lá como aqui, toda família “chique” tinha piano. A house is not a home without a piano (“uma casa sem piano não é um lar”), diziam os americanos ligados a costumes europeus. Ao escolher o piano como seu instrumento de jazz, Basie se submeteu à formação clássica, até encontrar o próprio caminho: “amputou” a mão esquerda, e simplificou tudo. Aqui, um raro momento de solo do maestro, quando ele “provoca” o baixo de Cleveland Eaton e o trombone de Booty Wood, em Booty´s blues. O show, de 1981, foi no lendário Carnegie Hall.
 
 

O.C.

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MÚSICA, PODEROSO INSTRUMENTO DIDÁTICO

Ousarme Citoaian | ousarmecitoaian@yahoo.com.br
1PalmatóriaA música é tão poderoso instrumento didático que com as professoras de antanho (em geral, leigas, mas dedicadas), aprendia-se aritmética cantando: “Dois e dois, quatro; quatro e dois, seis…” (se a gentil leitora duvida, pergunte a seu bisavô – e ele cantará, mesmo desafinado). Ressalte-se que quando o sujeito errava, quem “cantava” era a palmatória! Os masoquista diriam, com ar saudoso e olhar perdido no passado: “Bons tempos, aqueles!” Fiz um introito pra dizer que certos versos de mau gosto grudam na gente, sobretudo quando são cantados. E os exemplos são muitos. Lembram-se do “Melhoral, melhoral, é melhor e não faz mal”? Ridículo, como texto, mas grudento feito goma arábica (atenção avós!).

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2 Dalva de OLiveiraOs demônios dentro de nós adormecidos

“Mamãe eu quero” (Jararaca-Vicente Paiva) nasceu nos anos trinta e é ouvida até hoje, no seu abobalhado “Mamãe eu quero mamar”– e seria fácil citar outras. Uma de minhas preferidas é a patética Que será?, de Marino Pinto e Mauro Rossi, criada por Dalva de Oliveira (e com  uma regravação dispensável de uma cantora chamada Ana Carolina). A canção carrega no seu mau gosto um questionamento eterno: “Que será/da luz difusa do abajur lilás/se nunca mais vier a iluminar/outras noites iguais?”.  Ah, aquela “luz difusa do abajur lilás”!…  É verso suficientemente eficaz em sua breguice para despertar demônios dentro de nós adormecidos em épocas que (feliz ou infelizmente) jamais voltarão. Não haverá noites iguais àquelas.
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(ENTRE PARÊNTESES)

Vejo aqui no jornal que um auxiliar do bicheiro Carlinhos Cachoeira, já cansado de andar por aí sem ser molestado, resolveu entregar-se às autoridades. Diz ainda a notícia que um advogado, com a devida procuração em punho, negociou com a Polícia Federal “os termos da apresentação” do referido indivíduo. É curioso o vasto mundo brasileiro: cidadãos, principalmente se integram o grupo dos três “pês” (pobres, pretos e pardos), apanham da polícia por qualquer dá cá aquela palha, enquanto bandidos notórios têm advogados caros, são presos apenas quando querem e ainda exigem “condições” para se entregar. Fico pensando se esta não é mais uma mentira da imprensa, do que o poder tanto se queixa…

QUEM ALISOU OS BANCOS ESCOLARES SABE

“Choveu forte no Rio de Janeiro”, diz um jornal, como para não me deixar esquecido dessa recente salada linguística que a mídia tem patrocinado. Outros setores absorveram a anomalia: “treinar forte” (esportes), “investir forte” (economia) – e por aí vai. Confunde-se adjetivo com advérbio da mesma forma que Corpus Christi com habeas corpus. Todos os que alisaram os bancos escolares (e tiveram professores minimamente preparados) sabem que estas duas categorias são diferentes, com funções diferentes. De forma sumária (falecem-me condições para aprofundar o tema), adjetivo qualifica substantivo; advérbio modifica verbo.
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Compromisso da mídia com a norma culta

Entende-se que chover “pede” advérbio, não adjetivo; por isso, “Choveu fortemente…” seria a forma adequada, em língua portuguesa, deixando-se o “Choveu forte…” para esse dialeto que falam por aí. Pelo mesmo raciocínio, “treinar fortemente”, “investir fortemente” (e “trabalhar arduamente”, “estudar incansavelmente”) etc. Não há de faltar quem esgrima o manjado argumento do dinamismo da língua. E eu lhes direi, no entanto, que esses fenômenos são muito bem-vindos ao coloquial, mas inaceitáveis na chamada norma culta – e é com esta o compromisso da (boa) mídia, pouco importa que seja jornal, rádio, tevê ou blog.
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QUATRO MÚSICOS QUE SE FORMARAM EM CASA

6 Dizzy GuillespieWynton Marshalis é de 1961, por isso é menino em relação à corrente mais festejada (mainstream) do trompete de jazz (Armstrong, Davis, Chet Baker, Clifford Brown, Gillespie, Fred Hubbard, Arturo Sandoval), mas é um dos mais festejados pela crítica, que o considera responsável pelo retorno do jazz ao lugar merecido. Filho de um músico que mais ensinava do que tocava, ele voltou-se para a arte desde criança, em sua terra natal, Nova Orleans, e mais tarde estudou regularmente numa sofisticada escola de Nova Iorque. Aplicado aluno de primeiro ano, impressionou o baterista Art Blakey e logo foi tocar no celeiro de estrelas que era o Jazz Messengers daquele. Mr. Marshalis, le père, era professor de verdade, tendo formado em casa quatro músicos: Wynton (trompete), Branford (sax), Delfeayo (trombone) e Jason (bateria).
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Um abraço no jazz, outro no clássico

Aos vinte anos, Wynton já tinha seu próprio quinteto e excursionava pelos EUA, tocando em clubes de jazz, festivais e concertos. Seu grupo participou, na época, de homenagem prestada ao pianista Thelonious Monk, em Nova Iorque. Após essa experiência, “faz” a Europa e o Japão, depois regressa a Londres, para gravar seu primeiro disco, de peças clássicas, incluindo Haydn. Wynton Marshalis se manteve fiel à fórmula jazz e clássicos: aos 24 anos torna-se o primeiro músico instrumental a receber dois Grammy ao mesmo tempo – um na categoria jazz e outra na categoria de música erudita, nos dois casos, como melhor solista. Em 1997 tornou-se o primeiro músico de jazz a receber o Pulitzer, pela autoria de Blood on the fields, sobre a vida dos escravos norte-americanos. Foi eleito membro honorário da England´s Royal Academy of Music.
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8 Boston PopsViolinos: estranhos no ninho ao jazz

Em 1984, Wynton Marshalis e a não menos famosa Boston Pops Orchestra acompanham a diva Sarah Vaughan na gravação de alguns standards, entre eles o inebriante Autumn leaves, Body and soul e September song. Observe-se na faixa que selecionamos (September song) a discrição com que Wynton se comporta. Arrisco-me a dizer que ele faz suas intervenções com extremo cuidado, evitando que o trompete se saliente. O músico premiado meio que se rende à grandeza da estrela, sem nenhum acorde que nos faça suspeitar de que ele quer roubar a cena. Mas não resisto a dizer, mesmo sujeito a pedradas, que a Boston Pops é, para este caso, inteiramente dispensável: cordas não fazem falta no ninho do jazz, a quem bastam piano, baixo e bateria e um metal de responsabilidade.

(O.C.)