Tempo de leitura: 5 minutos

“QUALIDADE” ANDA AO LADO DE ADJETIVOS

Ousarme Citoaian
É curioso como o falar das ruas ultrapassa a chamada norma culta e, nessa transgressão, facilita a linguagem assentada na gramática. Falamos aqui, há poucos dias, em adjetivos, e hoje retomamos o tema, de outro ângulo. Veja-se, por exemplo, “qualidade”, no sentido (Dicionário Michaelis) de “propriedade pela qual algo ou alguém se individualiza, distinguindo-se dos demais”. Já se vê que a palavra necessita de adjetivo que a explique: comida de boa qualidade, artigo de primeira qualidade, trabalho de qualidade inferior, música de qualidade – e demais lembranças que ocorram ao leitor. Se bem utilizado, o termo vem de braço dado com outro que o faça claro.

NOSSO FUTEBOL PRECISA DE “QUALIDADE”

É quando surge o falar brasileiro e faz a necessária adaptação. “Ronaldinho é um jogador de muita qualidade”, diz o narrador da tevê; “O ataque do Vasco não funciona porque falta qualidade no passe”, emenda o outro. Talvez regido pela lei do menor esforço (que abordaremos a qualquer dia), o falante eliminou o adjetivo, tornou a frase mais econômica e, pasmem, todos entendemos o que ele quis dizer: o jogador é de boa qualidade e o passe é de qualidade. Noel Rosa já dizia: “Isto é brasileiro, já passou de português” – mas o jornalismo não se pode permitir tal gênero de grosseria. Um jornalista tem que escrever tão bem quanto um romancista, sentencia Dad Squarisi.

NO HEROI MACUNAÍMA, “NENHUM CARÁTER”

“Caráter” (em referência a traços psicológicos, índole, temperamento, modo de ser e de agir dos indivíduos) parece seguir o mesmo modelo desvirtuado da norma culta. A divisão primária entre bom caráter e mau caráter já foi esquecida. Quando se deseja dizer que uma pessoa é moralmente sã diz-se que ela tem caráter (em vez de bom caráter); quando, ao contrário, se trata de cabra safado, é comum afirmar-se que ele não tem caráter. Pior é que tem; mau, mas tem. Lembram de Macunaíma? Era o herói sem nenhum caráter. Pode? Pode, como licença poética que o jornalismo não possui. E como ninguém aqui é Mário de Andrade, lembremo-nos de que todos têm “caráter” (bom, ruim, frágil, forte, irascível, leviano, colérico, dúbio etc).

“SHANE” OU… “OS BRUTOS TAMBÉM AMAM”

No Brasil resta consolidado o costume de dar aos filmes estrangeiros títulos capazes de atrair o público. Dois exemplos interessantes são The quiet man, de John Ford/1952 (aparentemente, “O homem quieto”), que  virou “Depois do Vendaval”; e The thin man (talvez “O homem magro”), W.S. Van Dyke/1934, sobre o romance noir de Dashiell Hammett), que chegou às telas (antes, às livrarias) como “A ceia dos acusados”. Porém, não tenho notícia de tradução mais manipulada pelo mercado do que “Os brutos também amam”, de Georges Stevens/1953, cujo título no original é um prosaico Shane, nome do personagem principal, feito por Allan Ladd (foto).

PERSONAGENS QUE NÃO TÊM AMOR A NINGUÉM

Guido Bilharino (O filme de faroeste, edição Instituto Triangulino de Cultura/2001) diz que a referência marota é aos “brutos” do filme: um fazendeiro ganancioso e seus pistoleiros, entre eles Jack Palance. “Mas estes não demonstram amor a ninguém, nem lhes é dada essa oportunidade pelo script”, ressalta o crítico. O título, portanto, é impróprio para definir a história mostrada na tela, embora tenha cumprido às mil maravilhas seu objetivo mercadológico: não há dúvida de que a expressão “Os brutos também amam” carrega a pieguice necessária para atingir o grande público. E o filme caiu (não pelo título subliterário) também no goto da crítica.

CRÍTICO OBSESSIVO VIU O FILME 82 VEZES


Shane é um clássico que tem lugar na estante de qualquer fã do faroeste. Densidade psicológica e feitura cuidadosa se destacam nesse trabalho que produziu até um especialista obsessivo no Brasil, o crítico Paulo Perdigão (1939-2007): ele viu Os brutos… 82 vezes, foi conhecer o set de filmagens nos Estados Unidos, entrevistou o diretor (na foto, à direita) e escreveu um livro a respeito do filme (Western clássico — gênese e estrutura de Shane). Treze críticos declararam à Folha de S. Paulo (1984) que este é o maior western de todos os tempos. Para Moniz Viana, “Shane é uma das obras mais perfeitas que não só o gênero, mas o próprio cinema produziu”.

COMENTE » |

UM SAXOFONISTA GRANDE E POUCO BADALADO

Faço saber a todos que me dão a honra de dispensar a esta coluna uma vista d´olhos (acho-me hoje inusitadamente lusitano) que sou, desde  antigamentes já olvidados, fã de jazz. Mais: se fosse forçado a escolher um instrumento para símbolo desse gênero, apontaria o saxofone, o tenor, de preferência. Não me perguntem sobre os tenoristas geniais, que são tantos, e eu não me arriscaria a dar palpite: Coleman Hawkins, Lester Young, Charlie Parker, Sonny Rolins, John Coltrane, há muitos, cada um com seu estilo: o sax tenor, segundo os críticos, é tão pessoal quanto a voz humana. Para os não iniciados, mostramos aqui o resumo da trajetória de um dos grandes, porém menos badalados, Sonny Stitt (foto).

TODA A FAMÍLIA DO SAX, MENOS O SOPRANO

Não se trata, a rigor, de um tenorista, pois Stitt (1924-1982) domina quase toda a família do saxofone: tenor, alto e barítono. Não consta que toque sax soprano, mas aposto que ele fez isso alguma vez, às escondidas, talvez no banheiro. E trabalhou com as grandes feras do jazz a partir da metade dos anos 40: tocou com Dexter Gordon (na banda do cantor Billy Eckstine), depois no sexteto do trompetista Dizzy Gillespie (foto), gravou com os pianistas Bud Powell e Oscar Peterson, em horas diferentes. Em 1960 integrou o grupo de ninguém menos do que Miles Davis, substituindo ninguém menos do que John Coltrane. Um currículo impressionante, mesmo que tenhamos esquecido de Thelonious Monk e Art Blakey.

FILHO DE “BIRD” PARKER E DEXTER GORDON

Críticos apontaram, no começo da carreira de Sonny Stitt (1945, ao trabalhar com Gordon) clara influência de Charlie “Bird” Parker, mas hoje acusam a presença de “Bird” apenas no sax alto. No tenor, Stitt logo desenvolveu linguagem própria, afastando-se do mestre. Aponta-se ainda que ele tem, sobretudo ao tocar baladas, um lirismo relaxado que o assemelha mais a Dexter Gordon (foto)
do que a Parker. Dessa combinação do clássico “Bird” Parker e do moderno bebop de Gordon, nasceu o estilo Sonny Stitt. Aqui, para quem é do ramo (e quem não é está perdendo muito), o sax alto de Stitt num dos temas mais populares do jazz: Stardust (creio que, em língua de barbares, quer dizer “poeira de estrelas”).


O.C.

COMENTE » |