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…E, PARA TANTO, FOI PRECISO QUE OS ESTUDANTES CHUTASSEM A PORTA DO PALÁCIO

sandro ferreiraSandro Ferreira | sandrosf@gmail.com

Era preciso radicalizar ainda mais o caráter inclusivo da UFSB para aqueles que aqui já estavam – em sua ampla maioria cotistas – e para aqueles que aqui ainda não estavam, por conta das próprias limitações da lei, como quilombolas, indígenas aldeados e populações transgêneros.

 

Nenhum intelectual sério, nenhum pesquisador dedicado, nega o papel fundamental das Ações Afirmativas na transformação simbólica da universidade brasileira. Mas ainda temos a difícil tarefa de reconhecer o potencial (e fazer valer) deste processo, ainda em curso, para uma transformação epistemológica do nosso principal espaço de produção de conhecimento: a UNIVERSIDADE PÚBLICA.

O último ciclo de expansão do ensino superior brasileiro, entre 2012 e 2014, produziu quatro novas universidades públicas, todas no eixo histórico da exclusão política e educacional, no Norte-Nordeste. As escolhas das regiões, onde cada uma das quatro novas universidades se instalaria, guardavam consigo enorme simbolismo e potencial transformador da própria concepção de universidade.

A região do Cariri, no Ceará, com o simbolismo político e religioso de Juazeiro do Norte; a região do sul e sudeste do Pará, com a luta pela resistência ecológica dos povos de Marabá e região; a região do oeste baiano, marcado por um desenvolvimento predatório e excludente do agronegócio do entorno de Barreiras; e a região do sul da Bahia, com toda sua beleza cultural articulada a toda a sua sabedoria ancestral, fruto dos povos indígenas e quilombolas que ainda resistem entre Itabuna e Teixeira de Freitas.

Neste sentido, é preciso esperar mais das universidades, mais do que apenas a oferta de vagas e a reprodução dos modelos clássicos de ensino universitário direcionado para os setores sociais que só pensam suas vidas e trajetórias por meio do saber moderno acadêmico.

A UFSB em sua construção inicial se propôs esta tarefa. Reuniu colaborações diversas vindas dos quatro cantos do Brasil, com experiências ímpares e interessadas em construir uma universidade inclusiva e democrática, mas, sobretudo, crítica dos saberes constituídos na universidade moderna. Mas, nesta crítica, deveria caber o novo, resultante da articulação do acúmulo teórico-epistemológico da universidade moderna com os saberes pluriepistêmicos ofertados na região por meio de suas comunidades tradicionais. Alguns percalços no caminho nos fizeram desviar um pouco desta potencialidade. Precisamos radicalizar a democracia interna para reascender esta tarefa.

Em outro campo, não menos importante, a UFSB produziu ainda em 2013 uma adesão ampla aos mecanismos recém-consolidados de inclusão e ação afirmativa: o ENEM, o SISU e a Lei de Cotas. Sobre esta última, a opção por aplicar integralmente a lei (que só previa a obrigatoriedade da aplicação integral em 2016) já no primeiro processo seletivo, foi efetivada por meio da ampliação simbólica da reserva de 50% para 55%, acompanhado da criação dos Colégios Universitários, enquanto mecanismo de aproximação com os egressos de escola pública (refletido na cota específica de 85%).Desde então, pouco avançamos em nossa adesão à Lei de Cotas. Demoramos, e eu diria, até resistimos ao imperativo legal da aplicação da Lei 12.711/2012 também na transição do primeiro ao segundo ciclo da graduação.

Talvez influenciados por uma leitura romântica e antissociológica da formação geral e da formação interdisciplinar do primeiro ciclo – que teria o potencial de equalizar desigualdades de oportunidades educacionais que reconhecíamos existir na passagem do ensino médio para a universidade – acabamos induzidos a esta demora excessiva para discutir tal questão.

Há que se dizer que esta vacilação foi encontrada também na UFBA, que só passou a aplicar a lei de cotas na passagem ao segundo ciclo agora em 2017, e em outras universidades baianas que também têm regime de ciclos (de modo complementar), como a UFOB e a UNILAB.

Mas, na UFSB, o incômodo quanto à possibilidade de termos uma representação étnico-racial no segundo ciclo – especialmente em áreas simbolicamente tão importantes na reprodução de status quo como a Medicina -, bem distinta daquela que efetivamos no primeiro ciclo com a Lei de Cotas, chamou a atenção de uma parte dos professores e gestores, bem pequena, diga-se de passagem. Eu mesmo, que passei os últimos dois anos estudando e militando por esta causa, fui instado a esta reflexão pela professora Joana Angélica, vice-reitora, que, após um conjunto de reuniões com os estudantes, me solicitou a produção de um estudo sobre o perfil provável dos ocupantes das vagas na Medicina sem a aplicação da Lei de Cotas. Pouco ou nenhum efeito teve este estudo.

Reunião do Conselho Universitário em que foi aprovado percentual de cotas para o segundo ciclo ||Foto Saulo Carneiro
Reunião do Conselho Universitário em que foi aprovado percentual de cotas para o segundo ciclo ||Foto Saulo Carneiro

Os estudantes, empoderados justamente pelo ideal de inclusão proposto em nossos documentos oficiais, resolveram comprar esta briga. E em junho de 2016 iniciaram a qualificação do debate por meio de um grupo de discussão no Facebook, chamado Cotando UFSB. E, aqui, cabe o registro histórico, para a devida localização daqueles sujeitos responsáveis por um conquista que, no futuro, terá papel fundamental na transformação social e política do sul-baiano.

Nomes como Letícia Lacerda, Emerson Mendes, Kaline Goncalves, Jorge Miguel, Vicente Izidro e Saulo Carneiro, dentre muitos outros, precisam ser lembrados por mim – enquanto pesquisador do tema – enquanto sujeitos destacados deste processo. Com estes, tive a oportunidade de discutir diversas vezes, muitas madrugadas inclusive, cada aspecto legal, cada demanda específica e cada estratégia política diante da tarefa de garantir o óbvio: a aplicação do que determinava a Lei de Cotas em seu Artigo 1o.

As instituições federais de educação superior vinculadas ao Ministério da Educação reservarão, em cada concurso seletivo para ingresso nos cursos de graduação, por curso e turno, no mínimo 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. (grifo nosso)

Mas se para mim já era um grande feito garantir os 55%, já aplicados no primeiro ciclo, na passagem aos cursos do segundo ciclo, para estes estudantes isso era pouco. Era preciso radicalizar ainda mais o caráter inclusivo da UFSB para aqueles que aqui já estavam – em sua ampla maioria cotistas – e para aqueles que aqui ainda não estavam, por conta das próprias limitações da lei, como quilombolas, indígenas aldeados e populações transgêneros.

E, nesta direção, demostrando uma coragem ímpar, insistiram na proposição de 75% de reserva para egressos de escola pública, apoiados nos dados da composição atual dos estudantes da UFSB; apoiados no fato de termos muitos estudantes ingressos através da ABI com sua cota de 85%; e apoiados nos dados dos egressos de escola pública e da população preta, parda e indígena da região sul da Bahia.

E, no histórico dia 1º de setembro de 2017, foi aprovado o novo sistema de reserva de vagas da UFSB, com 75% para egressos de Escola Pública e adoção de vagas supranumerárias para outros segmentos que não são especificamente citados pela lei.

Cabe também o destaque acerca da sensibilidade demostrada pela maioria do Consuni sobre a necessidade de um programa de transição, que considere o direito dos estudantes já ingressos na UFSB pela ampla concorrência de alcançarem o seu lugar no segundo ciclo, a partir de parâmetros condizentes com aqueles previstos na sua entrada. É preciso como passo urgente, formalizar e organizar estas normativas internas, sob pena de aumentarmos as condições de angústia e adoecimento em curso por conta da demora institucional em organizar este processo.

Agora, cabe aos gestores, aos estudantes e aos demais interessados no tema a tarefa de consolidar esta conquista e qualificar os mecanismos de seleção e subdivisões internas, garantindo ao máximo os resultados desejados com o novo sistema de cotas da UFSB.

Vida longa ao desejo de fazer desta universidade um instrumento real de transformação social, uma coisa pública que ajude a superar o histórico de desigualdades do sul da Bahia, sobretudo sobre a sua população majoritariamente negra e indígena.

Vida longa aos estudantes que lideraram esta batalha. Que estes nomes sejam lembrados, como sujeitos históricos em luta, nos livros que virão a contar os caminhos desta conquista.

Sandro Ferreira é professor da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB).