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Hoje vivemos a velocidade alucinada da contemporaneidade. Não enxergamos nada, não absorvemos nada. Apenas vivemos de forma líquida, sem nos determos às essências da existência.

 

André Curvello

Há alguns dias tive a chance de rever o mais famoso discurso do reverendo pacifista Martin Luther King Jr. Em 1963, ele falou para 250 mil pessoas no Lincoln Memorial, em Washington, Estados Unidos. Foi a primeira vez que assisti à versão colorizada daquele que considero como um dos melhores falas já proclamadas.

Graças à generosidade dos meus pais, consegui estudar nos Estados Unidos e tive a oportunidade de conhecer um pouco da história norte-americana. Digo generosidade porque sei do imenso sacrifício que eles fizerem para me proporcionar aquela experiência inesquecível. Faço questão de sempre, sempre mesmo, agradecer a ambos, sem os quais eu não seria nada. Eles acreditaram em mim e até hoje tenho minhas dúvidas se consegui corresponder. Sigo tentando.

Aquele discurso do pastor batista King Júnior continua atual e fantástico. Era um líder negro que defendia o fim da segregação racial de forma pacífica e ordeira, enfrentando um câncer chamado preconceito, enraizado em instituições como a Ku Klux Klan, braço de um preconceito estúpido e desumano. Não era apenas a KKK o símbolo da imbecilidade racista e, sim, a sociedade americana da época, com sua estrutura legal, organizada e opressora.

No passado, a abolição da escravidão terminou sendo fator preponderante para a eclosão de uma página triste e sangrenta na história americana, a Guerra de Secessão, em que irmão levantou armas contra irmão. E nem assim aquele país aprendeu a ser tolerante.

Voltemos ao discurso de Luther King, justíssimo vencedor do Nobel da Paz de 1964. Intitulado “Eu Tenho Um Sonho”, prega a igualdade, a fraternidade entre brancos e negros, entre pessoas que deveriam ser qualificadas pelo seu comportamento e caráter e não pela cor da sua pele.

Recentemente, também tive a oportunidade de assistir, talvez pela milésima vez (estou exagerando!), ao filme O Poderoso Chefão, obra magnífica de Francis Ford Copolla. São espetaculares as interpretações de Marlon Brando e de Al Pacino, pai e filho, líderes do clã mafioso Corleone. Em uma das passagens, percebi, pela primeira vez, um diálogo que sempre me passou despercebido.

Naquela Nova Iorque de Mario Puzzo, ainda inocente diante das drogas e seus efeitos que tanto males provocam à sociedade, um dos chefões, ávido pelo lucro fácil da venda de entorpecentes, defende o comércio dessas substâncias desde que seja distante das escolas e das crianças. E ressalta: que a droga seja consumida pelos negros porque, de acordo com a fala da personagem, eles não eram gente. Sim, o racismo estava lá, indelével!

Do Eu Tive um Sonho do doutor King Jr. até os dias de hoje lá se vão 60 anos. Deixamos de ser hipócritas e preconceituosos durante esse período? Temo que não. É verdade, adquirimos muita tecnologia e com ela a possibilidade da democratização da informação, da disseminação do conhecimento, da convivência pacífica e da tolerância entre os seres humanos.

Porém, o que fizemos foi solenemente desperdiçar esse ouro comportamental, e passamos a mobilizar a internet e as redes sociais para propagar o ódio e o preconceito. A tecnologia deveria ser um instrumento de fortalecimento do respeito, pois sem ele a sociedade não evolui de forma saudável.

Hoje vivemos a velocidade alucinada da contemporaneidade. Não enxergamos nada, não absorvemos nada. Apenas vivemos de forma líquida, sem nos determos às essências da existência.

É preciso acordar para a reflexão urgente sobre a velocidade atroz e a lenta destruição que ela provoca em nosso humanismo. Sem respeito e sem Deus no coração, nos transformamos apenas em negação, em nada, em ninguém.

Quando me refiro a Deus, me sinto muito a vontade para falar em amor e respeito. Não tenho conhecimento sobre qualquer religião, o que defendo é respeito, é gentileza e solidariedade. A indiferença não constrói. Ela nos afasta e nos esvazia.

Martin Luther King foi um grande homem com inúmeros serviços prestados à humanidade. Sua obra nos convoca a um exercício contra a omissão, para escaparmos da sina de sermos nada e ninguém. Eu continuo tendo um sonho.

André Curvello é secretário de Comunicação da Bahia.

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MONTEIRO LOBATO E O “PATRULHAMENTO”

1Caçadas de PedrinhoOusarme Citoaian | ousarmecitoaian@yahoo.com.br

Creio que ninguém de minha geração sentiu prazer na polêmica que envolveu o escritor Monteiro Lobato (1882-1848), acusado de racismo. De Caçadas de Pedrinho (de 1933) foram pinçadas referências racistas, em relação a Tia Nastácia, negra.  Numa delas, o autor a compara a uma “macaca de carvão”. É racismo “leve”, dissimulado, que o Ministério da Educação, alertado, não levou a sério – e em que vários escritores, Ziraldo à frente, pregaram uma velha etiqueta: patrulhamento ideológico. Tudo ia bem até que chegamos às cartas do autor do Sítio do pica-pau amarelo – e vimos que o racismo em Monteiro Lobato é de estarrecer seus velhos admiradores.

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De tempo em que o racismo era “moda”

O escritor manteve vasta correspondência com o paulista Renato Kehl (1889-1974) e o baiano Arthur Neiva (1880-1943), revelando-se adepto de uma ideia esdrúxula chamada eugenia (que defendia a superioridade da raça “branca” sobre as demais), definida como “o estudo dos agentes sob o controle social que podem melhorar ou empobrecer qualidades raciais das futuras gerações”. O racismo estava em “moda” no começo dos anos vinte: lembremo-nos de que Euclides da Cunha também era apegado a isso, e que, tendo Renato Kehl como líder, criou-se, em 1918, uma certa Sociedade Eugênica de São Paulo. Kehl não queria que o Brasil aceitasse imigrantes, a não ser “brancos”.

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3KKKPovo da Bahia comparado a… esterco

A Bahia, com Neiva, foi o outro centro de difusão do racismo. Lobato aqui esteve e ficou chocado com o povo, que chamou de “feio material humano”, “um resíduo”, “um detrito biológico”, mas  reconheceu: “a elite que brota como flor desse esterco tem todas as finuras cortesãs das raças bem amadurecidas”. O racismo americano entusiasmou o autor de Urupês, em particular os matadores de negros. “Um dia se fará justiça à Ku-Klux-Klan”, diz ele em carta dos Estados Unidos, pregando que o Brasil tenha uma coisa “dessa ordem”. As cartas de Monteiro Lobato, escritor de alta qualidade, são de arrepiar. Mais uma prova de que caráter nada tem a ver com talento.

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UM MONSTRO QUE MORREU POR SER QUENTE

Importante jornal de Itabuna diz que “durante muito tempo o Poder Judiciário baiano serviu a um grupo político, longe do quimérico controle externo que alguns setores reivindicavam”. Não discuto a afirmação, incontestável, mas atenho-me ao “quimérico”, que confirma o peso da mitologia greco-romana em nossa linguagem. Este adjetivo advém, todos sabem, de quimera – os dicionários diriam “relativo a quimera”. E quem foi essa tal de quimera? Um monstro improvável, portador de três cabeças, sendo na frente uma de leão, nas costas uma de serpente, e no meio uma cabeça de bode, atirando fogo pelas ventas. Muito assustador.
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5A  caixa de PandoraCícero: tempo, imaginação e verdade

O herói Belorofonte, espertíssimo, encontrou um jeito de atacar a fera, sem virar carvão: montou em Pégaso, o cavalo alado, veio pelo alto, pairou acima da malvada (em feitio de Dario Beija-Flor, lembram-se?) e atirou-lhe na bocarra aberta uma grande bola de chumbo. Aquecido por aquele hálito de 480 graus Celsius, o chumbo se liquefez e escorreu goela abaixo do monstro mal-intencionado e, claro, o matou de faringite. No século I a. C. Cícero indagava: “Quem hoje acredita em quimeras? O tempo destrói as invenções da imaginação, mas confirma os julgamentos da natureza e da verdade”. Quimera já estava se tornando símbolo de coisa situada além dos limites do possível. Está tudo em Ferdie Addis (A caixa de Pandora – Editora Casa da Palavra/2012).

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UM PIANISTA BIZARRO E REVOLUCIONÁRIO

Thelonious Monk carrega atrás de si uma fileira de adjetivos: misterioso, bizarro, estranho, complexo, difícil, problemático são os mais comuns. Mas, além desses, é portador dos que definem um grande músico, como criativo e revolucionário, um dos pais do bebop, que influenciou muitos pianistas mais novos. Concorreu para esse “mistério” ser um tipo ensimesmado, com crises de mutismo que o levavam a passar dias sem falar. O crítico Arrigo Polillo conta que, ao ser preso por porte de drogas, com um amigo, Monk, que era “limpo”, recusou-se a falar: considerou uma indignidade permitir que o amigo fosse preso sozinho. Calado, foi parar no xilindró.
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7HarlemPara escândalo das escolas de música

Foi pianista único, que nunca deu atenção ao trabalho alheio, nem ouviu cuidadosamente os mestres. Quando, numa turnê pela Europa, lhe perguntaram quem exercera maior influência em sua música deu uma resposta ao seu estilo: “Eu, naturalmente”. É justo. Desde o começo (tentou o trompete, depois passou para piano e órgão), seu trabalho é pessoal, com acordes dissonantes e técnica fora dos padrões: martelava o teclado, mantendo os cotovelos abertos (tipo asas de borboleta), num estilo capaz de escandalizar qualquer aluno de conservatório. Mesmo assim, aos 14 anos já era profissional, tocando em festas e igrejas, ao tempo em que se familiarizava com o jazz do Harlem.

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As crises de mutismo incluíam Nellie

Compositor festejado, tem entre suas produções mais conhecidas Round midnight, que deu até nome de filme (Por volta da meia-noite, de Bertrand Tavernier), Monk´s dreamSomething in blue e Crepuscule with Nellie (dedicado a Nellie, sua mulher, por quem era apaixonado – mas com quem passava dias sem falar). Num festival de jazz, em Copenhague, Monk apresenta seu tema mais popular, Round midnight. Interpretação magistral, com o apoio de um grupo de feras conhecidas, catalogadas e reverenciadas poucas vezes reunido: Dizzy Gillespie (trompete), Sonny Stitt (sax alto), Al McKibbon (baixo) e Art Blakey (bateria).

 

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