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Em vez de ser considerada um dos sete pecados capitais, a gula, para esse modesto comilão, é a satisfação do prazer de comer – bem e muito –, saciando a costumeira fome e degustando os sabores. Não importa se num restaurante grã-fino e laureado com as medalhas da moda e pouca comida, ou num pé sujo (com todo o respeito)

 

Walmir Rosário

A depender de onde estamos e com quem falamos quando o assunto é alimentação, geralmente ouvimos que o melhor tempero para a comida é a fome. Não discordo que a barriga vazia e a vontade de comer sejam componentes para esvaziar um bom prato, mas outros atributos mexem com nossos olhos e as papilas gustativas, destacando os sabores doces, salgados, amargos, azedos e umami (chic), sem falar nos gostos.

E essas diferenças podem ser notadas e degustadas independentemente do local em que estivermos fazendo nossa refeição. Isto quer dizer que tanto nos famosos e laureados restaurantes, os famosos “pé sujo”, ou em casa, o toque dos chefs renomados, cozinheiros ou quem mais se aventure no forno ou fogão é fundamental para saborearmos uma boa, excelente ou má refeição.

Muitos restaurantes tipo “pé sujo” possuem uma respeitável clientela, daquelas que têm direito a cadeira cativa num determinado dia de semana, saboreando um bom prato – melhor, dois ou mais tipos diferente de proteínas (boi, porco, carneiro, aves, peixes…) – e saem pra lá de satisfeitos. A cada dia uma especialidade da casa, daquelas de deixar qualquer ser vivente com água na boca.

Não basta encher a barriga, mas degustar cada tipo de comida, seja proteína, carboidrato, gordura, ou o que valha, é por demais essencial para que o cliente volte na próxima oportunidade ou se torne um freguês assíduo. E como dizem que a melhor propaganda é a feita de boca a boca, por certo, novos acompanhantes estarão dispostos a socializar as delícias desses restaurantes.

Em vez de ser considerada um dos sete pecados capitais, a gula, para esse modesto comilão, é a satisfação do prazer de comer – bem e muito –, saciando a costumeira fome e degustando os sabores. Não importa se num restaurante grã-fino e laureado com as medalhas da moda e pouca comida, ou num pé sujo (com todo o respeito), no qual a fartura é fundamental.

Nessas minhas andanças por restaurantes brasileiros e de outros países, pude constatar que o tamanho do prato é inversamente proporcional aos preços cobrados do distinto cliente, sem tirar nem por. E são muitos os pé sujos espalhados por esse imenso país, notadamente nas feiras livres e locais de movimento, como portos, rodoviárias e os que servem a comidinha de cada dia aos comerciários e industriários.

Comida de sustança para quem pega pesado no trabalho – ou nem tanto, mas que aprecia uma boa rabada, mocofato, cozido, sarapatel, sobe e desce, e outras delícias regionais nem tão conhecida por todos. E todos bem temperados, com especiarias das mais diversas, como queriam os portugueses ao ganhar o mundo nas circunavegações, deixando esse legado para nós pobres mortais.

À vezes nem mesmo precisamos sair de casa para provarmos esses manjares dos deuses, prática que tenho utilizado nesses últimos tempos em que a quarentena é recomendada pelas autoridades – nem sempre médicas – e que temos que obedecer. Quase sempre nem requer muito trabalho, desde que feito de maneira correta o planejamento, com a compra dos insumos principais e acessórios.

Outras vezes nem mesmo precisamos sair de casa, principalmente quando se aproxima o fim de semana, em que as panelas precisam ser renovadas. Basta fazer uma vistoria na geladeira e acreditar na consagrada teoria de Antoine-Laurent de Lavoisier, cientista das áreas da química e biologia, que mostrou ao mundo que “na natureza nada se cria e nada se perde, tudo se transforma”.

E foi o que fiz numa sexta-feira dessas, em que a chuva leve e intermitente cismou de modificar meus planos em encontrar os amigos, conforme prometido: ao meio-dia em pino, num desses recatados bares. Como o tempo chuvoso não permitiu, tratei eu de me virar por conta própria, dando-me ao luxo de sequer sair de casa. Para ganhar inspiração fui em busca de uma boa cachaça e algumas cervejas, disponíveis em no recato do lar.

Bastou abrir a velha geladeira e conferir a pequena sobra do feijão gordo da semana, misturá-lo com farinha e transformá-lo num especial tutu à mineira, arroz, cortar e passar na banha a última folha de couve, fritar umas fatias de bacon, linguiça calabresa e, com a sobra da gordura fritar um ovo, devidamente mexido. Para me sentir num pé sujo, bastou colocá-los num prato branco e numa toalha bem surrada.

Para me despedir, não pensem os senhores que estão com água na boca, que me enganei ao citar a ingestão de muita comida e apresentar um prato pouco condizente com o texto acima elaborado. Como ninguém é de ferro, do planejamento ao começo dos trabalhos etílicos, a eles se juntaram os tira-gostos, consumidos sem dó nem piedade. Afinal, o que de melhor fazer numa sexta-feira acinzentada e chuvosa?

Walmir Rosário é radialista, jornalista e advogado.

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NUM SÓ DIA, DUAS PEDRADAS NOS JORNAIS

Ousarme Citoaian

No mesmo fim de semana, recebo duas pedradas, vindas de veículos diferentes, mas igualados no mesmo desleixo com a linguagem. Um dos principais diários de Itabuna estampa no alto da página: “Gisnática Laboral em alta no setor empresarial”; e o dito mais importante jornal do Nordeste, de Salvador, saiu-se com esta pérola, também num título: “O medo não é só da mulher. Não tem haver com gênero”. Um caso, além dessa incômoda gisnática, tem o agravante da rima (“laboral-empresarial”), o que já condenaria o título. O outro (pela relevância do jornal) é ainda mais grave.

OS ERROS NOS ESPREITAM TODO O TEMPO

Quem conhece, mesmo sem aprofundar-se, a rotina de uma redação sabe que os erros nos espreitam todo o tempo. Mas há erros e erros (até já abordamos aqui os famosos erros de digitação, outrora chamados erros de imprensa). Escrever gisnática (em vez de ginástica) é erro de digitação, ao levar o “s” para um lugar estranho. É acidente de trabalho que precisa ser atendido pelo próprio redator, o editor ou por um profissional em extinção, chamado revisor). Nada justifica (principalmente em letras grandes) que chutes na canela cheguem às bancas e atinjam leitores incautos.

DIFERENÇA ENTRE ACIDENTE E IGNORÂNCIA

Mais difícil ainda é aceitar como “normal” que um redator (muito provavelmente com formação universitária) grafe tem haver em lugar de tem a ver, pois aqui não se trata de simples derrapagem a que todos temos direito, mas de ignorância crassa de princípios elementares de língua portuguesa. Como disse um cínico, “herrar é umano”, mas se a gente usa mais a borracha do que o lápis, é preciso desconfiar. Não entendo que um grande jornal tenha o direito de cometer erros desse nível. Em qualquer boa escola de segundo grau essa construção receberia um zero bem grande e redondo.

A LEI DE LAVOISIER NO TEXTO LITERÁRIO

O crítico Hélio Pólvora compara a literatura a uma olimpíada, afirmando que “na boa literatura a lanterna de Diógenes passa de mão em mão, como tocha olímpica”. O autor de Itinerários do conto acrescenta que as consequências desse caminhar da tocha “são as aparentes imitações, que, na verdade, aproximam temperamentos, sensibilidades, experiências comuns”. Passando de uns para outros, a arte recebe acréscimos que a engrandecem, de sorte que nada é propriamente novo, mas transformado, uma espécie de Lei de Lavoisier. Por mais criativo que pareça o autor (foi assim que entendi), sempre há alguém que o inspirou e motivou.

O TEXTO RESULTA DE TRABALHO COLETIVO

Para Hélio, nada acontece por acaso em literatura, sendo esta uma obra de arte coletiva. “Para cada grande escritor que surge (…) em língua portuguesa, haverá sempre uma geração ou mais de escritores diversos que prepararam alicerces às suas descobertas”, afirmou o crítico em 1985, em palestra na Universidade Federal da Bahia. Por ser a literatura um trabalho “de equipe”, matéria que se transforma ao longo da existência, ao agregar autores diversos, ela cria dificuldades extras para os não iniciados, como eu. É muitas vezes torna-se difícil separar a homenagem e a deslealdade: citação e pastiche, referência e plágio .

A OLAVO BILAC O QUE É DE OLAVO BILAC

Tenho consciência de que a citação possa, diante de leitores menos atentos, soar como apropriação indébita, mesmo assim a uso. Há pouco, empreguei aqui, sem aspas nem nada, a expressão “nasceu pequeninho, como todo mundo nasceu”, uma referência (tomara que) óbvia a Caymmi; também reproduzi, aspeado, o verso “[Em que Camões] chorou no exílio amargo, o gênio sem ventura e o amor sem brilho”, citação intencional clara do soneto “Língua portuguesa”, de Olavo Bilac. Não me apropriei de produção alheia, apenas considerei que os leitores não exigem bula, e precisam ter sua inteligência respeitada. Mas vou tomar mais cuidado.

MEMÓRIAS PÓSTUMAS DE ANTÔNIO OLINTO

O jornalista João Lins de Albuquerque (foto), ex-chefe da Divisão de Língua Portuguesa da Rádio das Nações Unidas (ONU) em Nova York, tem na praça o livro Antônio Olinto – memórias póstumas de um imortal. É uma entrevista com o mineiro Antônio Olyntho Marques da Rocha (Ubá/MG 1919-Rio/RJ 2009), de quem extraiu histórias magníficas. Intelectual dos mais aparelhados que o Brasil produziu, Olinto (vejam que ele “consertou” o pernóstico Olyntho) brilhou em várias atividades, sobretudo a de professor: latim, português, história da literatura, francês, inglês e história da civilização. Seu livro Jornalismo e Literatura foi adotado em diversos cursos de jornalismo..

NOME QUE DISPENSA APRESENTAÇÕES

Antônio Olinto (foto) é uma das melhores justificativas para o lugar-comum “dispensa apresentações”. Como “apresentar” alguém que foi, com invulgar entusiasmo, professor, jornalista, crítico literário, autor de dicionários e de gramática, ensaísta, autor de literatura infantil, acadêmico (ocupou a Cadeira nº 8 da Academia Brasileira de Letras), contista, romancista, poeta – e ainda encontrou horas vagas para se dedicar às artes plásticas? É melhor não identificá-lo por nenhuma dessas habilidades, pois qualquer delas nos levaria ao pecado da omissão. Chamemo-lo, simplesmente, de Antônio Olinto. Para quem o conhece deve ser suficiente.

MURUCUTUTU, SAFADO, LUPANAR E SAUDADE

Em matéria para O Globo, Olinto perguntou a dez escritores, por telefone, qual era a palavra mais bela da língua portuguesa. Guimarães Rosa escolheu murucututu, segundo ele, uma corujinha amazônica, afirmando que “nenhum país tem uma palavra tão bonita quanto esta, cinco ´us´ numa palavra só”. Jorge Amado (foto), provocador, preferiu safado (de Safo, a poeta grega), mas Roberto Marinho vetou a publicação, o que levou o escritor a escolher outra: lupanar. “Pior ainda!”, lamentou Olinto, pois esta é que não seria publicada mesmo. Ele disse que lupanar é uma palavra bonita, mas que safado era de “um mau gosto atroz”. A vitoriosa no concurso de Globo foi… saudade.

PALAVRAS COM SEDUÇÃO E ENCANTO

Para Antônio Olinto, alegria era a palavra mais bonita da língua portuguesa. Ele conta que, em Londres, viu uma casa em cuja fachada estava escrito: “Alegria”. Sem pensar duas vezes, tocou a campainha, ouvindo de um inglês meio atônito a explicação: “Eu morei no Brasil um bom tempo e achava a palavra alegria tão bonita que, quando voltei, resolvi decorar a entrada da minha casa com ela!”. Eu tenho cá comigo algumas palavras que acho muito bonitas: encanto e sedução, por exemplo. E você, quer entrar no jogo e dizer quais as duas palavras que mais o seduzem ou encantam na língua portuguesa? Parece que cometi um trocadilho…

“FASCINANTE” CANÇÃO QUE VIROU MANIA

Fascinação enraizou-se na MPB a ponto de a gente nem lembrar que ela é francesa. De 1905, a canção só chegou à língua portuguesa em 1943, na versão de Armando Louzada, gravada por Carlos Galhardo. Foi mania nacional, aliás, mundial: teve registros de Dinah Shore, Nat King Cole, Jane Morgan (para o filme Amor na tarde, de 1957), Connie Francis, Dean Martin, Edith Piaf, Pat Boone, Demis Roussous. Entre nós, foi entoada, além de Galhardo, por Nana Caymmi, Agnaldo Rayol, Francisco Petrônio, José Augusto, Agnaldo Timóteo, Jorge Vercillo e até por uma dupla chamada Sandy e Júnior .
</span><strong><span style=”color: #ffffff;”> </span></strong></div> <h3 style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>E FRED JORGE CRIOU CELLY CAMPELLO!</span></h3> <div style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>No auge do sucesso, em 1965, a música teve uma versão no Brasil, gravada por Agnaldo Timóteo. Como costuma ocorrer com as

A GRANDE VOZ DA NOVELA “O CASARÃO”

Em 1976, quando ninguém mais queria saber de Fascinação, a música foi incluída no álbum Falso Brilhante, de Elis Regina, e daquele momento em diante tornou-se um dos temas românticos mais presentes no repertório da cantora – com a luxuosa ajuda das novelas O Casarão/1976 e O profeta/2006, ambas da Globo, de que fazia parte da trilha sonora. Mais tarde, com sua reconhecida criatividade, o SBT também teve Fascinação como tema (e título) de novela, só que na voz de Nana Caymmi. Tem mais: em 2007, com a letra em francês, o tema foi usado em Piaf – um hino ao amor, filme baseado na vida de Edith Piaf.

VERSÃO CORRIGIU FRAQUEZAS LITERÁRIAS

Canção de amor desesperado, bem ao feitio das escolhas de Piaf, a versão brasileira é “leve”, e poeticamente mais consistente, no estilo dos nossos letristas românticos. (curiosidade: nos mais de 30 versos de  Fascination não há esta palavra nem uma vez). As fraquezas literárias saltam logo nos primeiros versos: Je t’ai rencontrée simplement/ Et tu n’as rien fait pour chercher à me plaire (algo como “Eu lhe encontrei simplesmente/ E você nada fez para tentar me agradar”). Louzada corrigiu isto, com o lirismo de “Os sonhos mais lindos sonhei/ De quimeras mil um castelo ergui”. Com (letrista) brasileiro não há quem possa. Clique e veja/ouça.

(O.C.)