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MUNDO VISTO POR SAPO NO FUNDO DO POÇO

Ousarme Citoaian
Circula na internet um texto de ataque grosseiro aos que adotam a forma presidenta. É um monte de sandices que a direita ora desempregada chama de “aula de português”, misturando presidenta, adolescenta, pacienta e eleganta no mesmo pacote grotesco, etiquetado como “linguagem do PT e seus sequazes”. Trata-se de estultice travestida de erudição, somada a falta do que fazer e preconceito – nascido nas mesmas fontes que se opunham a Lula por ele ser “analfabeto” e beber cachaça. O ex-presidente chamou isso de “pequenez da oposição”. Disse-o bem, pois parte do seu enorme prestígio pode ser creditada justamente a opositores que têm do mundo essa visão de sapo no fundo do poço.

O TERMO “PRESIDENTA” É ANTERIOR AO PT

A palavra presidenta é muito mais velha do que o grupo político hoje no poder em Brasília. O português Castilho (Antônio Feliciano de), nascido em1800 (e lá se vão dois séculos e pico!), a empregou – citado por Mário Barreto (Novos Estudos da Língua Portuguesa). Ariano Suassuna também grafa presidenta várias vezes na sua obra maior, O Romance d´A Pedra do Reino/1971. Numa busca rápida (minha edição – a 5ª da José Olympio – tem mais de 750 páginas!), encontro duas referências (pág. 304 e 391): ele trata Dona Carmem Gutierrez Torres Martins como “presidenta perpétua” da enigmática entidade As virtuosas damas do cálice sagrado de Taperoá.

GROTESCA “AULA” DE PRECONCEITO E MÁ-FÉ

A prometida “aula de português” se frustra, sufocada por despreparo, preconceito e má-fé. A analogia de  presidente (gênero masculino) com adolescente, paciente e elegante (comuns de dois) é fraudulenta – e ninguém precisa ser linguista para saber dessas coisas primárias. Eu sempre advoguei presidenta, mas tenho como aceitáveis as duas formas (presidente, consagrada pelo uso, e presidenta, por ser gramaticalmente correta). Mas há controvérsias. Para Marcos de Castro (A Imprensa e o Caos na Ortografia) só existe uma forma: “mulher sempre será a presidenta”, diz ele, “não só como reivindicação feminista, mas também por questão linguística”.

AFINAL, QUAL É A PIOR FALA BRASILEIRA?

Perguntaram ao professor Pasquale Cipro Neto (famoso comentador de questões de língua portuguesa na mídia) onde se falava o pior português do Brasil e ele insinuou que era São Paulo, exemplificando com “dois pastel” e “acabou as ficha” (esqueceu “um chopes, mano”). Para ele, influência italiana. Mas não há unanimidade quanto a isso. Linguistas outros alertam que suprimir o “s” do plural não é “privilégio” de paulistas, mas uma prática comum nas camadas ditas incultas, do Oiapoque ao Chuí (ou ao Caburaí, se preferem). Nas nossas feiras, por exemplo, ouve-se que a dúzia de banana-maçã custa “dois real”.

SÃO PAULO EXPORTA PARA TODO BRASIL

Há expressões de paulistês que incomodam ouvidos habituados à pronúncia “nacional”, o padrão Rio de Janeiro (de acordo com Antenor Nascentes). É mal falado o português que chama a letra E (aberto) de Ê (fechado) – ou apelida o O de Ô. Sotaques de gente como Sabrina Sato (tenho um Asterix e os Vikings dublado por ela, uma tragédia) e Neto (aquele que comenta futebol na tevê) agridem ouvidos não paulistas. Mas o filólogo Marcos de Castro (obra citada) destaca como a pior coisa que se faz em São Paulo a frase do tipo “Nós estamos em cinco”, que ele diz ter ouvido até do carioca Jô Soares. Exportação de São Paulo, para o Rio.

DON FERNANDO PEREIRA LEITE, O GROSSO

Em outros tempos, dizia-se que o Maranhão, berço de Gonçalves Dias (foto), Raimundo Correia, Ferreira Gullar, Alcione e Humberto de Campos, falava o melhor português do Brasil. São Luís era então cidade “culta”, a Atenas brasileira. Noutro momento, por “contaminação” da cultura francesa, o maranhense estranhava se alguma pessoa se dirigia a outra de forma descortês. Conta o acadêmico José Sarney que lá pelo século XIX governava a província um certo D. Fernando Pereira Leite de Foyos, que destoava dos bons modos vigentes na área, por isso foi vitimado pela impiedade do povo: devido à sua escassa fineza de trato com os maranhnses, ganhou o sugestivo epíteto de Cavalo Velho.

VIVEMOS NOS TEMPOS DE CAVALO VELHO

Parece que vivemos aqui tempos daquele Cavalo Velho, como se a Bahia fosse um imenso curral (ou um presépio de bestas, como suspeitava Gregório de Mattos). O tempo passou, os bons modos e a linguagem foram jogados no mesmo saco de lixo da “globalização”, e hoje expressar-se deselegantemente é uma lei a ser seguida. Ser grosso é ser pop, e o que era regra virou exceção. Quanto ao sotaque, dizem os linguistas, há de  se preservá-lo, pois é uma forma de ligar o indivíduo e sua aldeia, responder à “pasteurização” da linguagem e valorizar os falares locais. Então, defendamos o direito de Sabrina (foto) e Neto, apesar da estranheza a nossos ouvidos nordestinos.

A PARAÍBA, APESAR DA FAMA, É FEMININA

“Paraíba masculina, mulher macho, sim senhor!” – diz o verso de Humberto Teixeira, gravado por Luiz Gonzaga, e que tanto constrangimento causou à mulher paraibana. O pior de tudo é que a “maldade” foi feita a um dos, se bem me lembro, dois únicos estados brasileiros “femininos”. O outro é a Bahia. Há predominância de nomes “masculinos” (Amazonas, Rio de Janeiro, Amapá, Rio Grande do Sul, Espírito Santo e outros) e “neutros” (Goiás, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe, por exemplo). “Eu vim da Bahia/ e algum dia eu volto pra lá”, diz a canção de Gil. Fala-se “Vim do Rio (ou do Pará e do Tocantins) e “Vim de São Paulo (de Brasília, de Goiânia, de Macuco).

OS ESTRANHOS POENTES DE TELMO PADILHA

Imagino (e tomara que os linguistas não me vejam como gafanhoto na seara que lhes pertence) que se trata, nos casos de São Paulo, Minas, Goiânia, Sambaituba e semelhantes (que não aceitam o  artigo ”o” ou “a”), de vestígio do gênero neutro latino. Mas deixo a explicação para quem dispuser de melhor engenho e arte do que eu. “Que artista é este que pinta/ estranhos poentes em Ilhéus?”, interroga Telmo Padilha, abonando nossa tese: o poeta não poderia dizer no ou na Ilhéus (a palavra, para este efeito, não é masculina nem feminina). Mas essa forma “neutra” também sofre pressão de escolhas regionais. O exemplo que me ocorre é Recife. Ou… o Recife.

ANTÔNIO MARIA TINHA SAUDADE DO RECIFE

“Eu nasci em Recife” seria a construção a nos tentar, pois a cidade, aparentemente, está no grupo dos neutros. Mas os recifenses fizeram sua própria regra: vou ao Recife, moro no Recife, gosto do Recife, pretendo passar o carnaval no Recife. Esse falar é típico local, para quem Recife é masculino, sim senhor. Gilberto Freire (foto) escreveu Assombrações do Recife Velho e Roberto Beltrão, no rastro, O Recife assombrado. “Sou do Recife/ com orgulho e com saudade” – chora o grandalhão Antônio Maria, no Frevo nº 3 do Recife. Observe-se a “masculinização” da palavra, a partir do título da música, cantada aqui por Geraldo Maia (ousei um incidental de Frevo nº 1 do Recife, do mesmo autor, com Betânia).

(O.C)

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GLOBO MUDA NOME DA “BÍBLIA” MUÇULMANA

Ousarme Citoaian

Em matéria sobre o dia do Ramadã, o repórter da Globo menciona duas vezes algo que pensei nunca mais ouvir: o Corão, referindo-se ao livro sagrado dos muçulmanos. A forma correta é o Alcorão – e o emprego de o Corão não é preferência, mas ignorância.  Há quem queira justificar a heresia argumentando que o al árabe é o nosso artigo o – daí dizer o Alcorão seria uma espécie de pleonasmo (haveria desnecessária  repetição do artigo o). O professor Mansour Challita, conhecedor das duas línguas, explica que as palavras árabes começadas com al tiveram esta parte incorporada ao português. Até eu sei de uma legião de exemplos.

EM CAMÕES, UM ABONO LUXUOSO E INSUSPEITO

Salvo melhor juízo, são de origem árabe as palavras alface, álgebra, algodão, almanaque, alforje, algoz e muitas outras. Para manter a coerência, os que traduzem Alcorão como o Corão deveriam falar (na ordem da lista acima) çúcar, gebra, godão, manaque, forje e goz. Onde está a incoerência, mora o erro, se não às claras, na sombra. Certo Luís Vaz de Camões (que todos conhecemos ao menos de nome) anotou em Os Lusíadas (estrofe 50 do canto 3º), publicado há mais de quatro séculos: “O português o encontra, denodado,/  Pelos peitos as lanças lhe atravessa:/ “Uns caem meio mortos, e outros vão/ A ajuda convocando do Alcorão”.

A LÍNGUA E O CHORO NO “EXÍLIO AMARGO”

“E que motivos haveria para meter-se o venerando vate lusitano em tal discussão?” – perguntaria algum distraído. Imagino que Camões, se vivo fosse, estaria lavando as mãos para essa pendenga, pois ela não lhe valeria a opinião, de tão óbvia. Mas paga a esta coluna o preço de ser um dos construtores da língua portuguesa, aquela em que ele “chorou, no exílio amargo, o gênio sem ventura e o amor sem brilho”. E seu abono (de exactos 4, 38 séculos) mostra que o Corão nunca existiu – salvo para os amigos das novidades inúteis. A propósito, a estrofe mencionada está na página 87, na minha edição de Os Lusíadas (Nova Cultural/2003).

DITADURA E DESORGANIZAÇÃO DA LINGUAGEM

A propósito de Daianas e Daiannes aqui referidas recentemente aproveitamos o gancho (no jargão do jornalismo, aquilo que nos dá motivo para produzir matéria) para falar um pouco mais sobre grafia de nomes próprios, o que constitui em nosso meio verdadeira salada. Perguntas freqüentes de jovens e (e alguns velhos) redatores: “Manuel é com U ou com O?”; “Antônio tem acento circunflexo?”; “Como escrevo esse Luís, com S ou com Z?”. A impressão que se tem é de estar num hospício, não num ambiente de profissionais com obrigação de ter boas noções da língua em que se comunicam com o público. A origem dessa babel está, imaginem, na ditadura militar – conforme o filólogo Marcos de Castro.

ONDE PASSA UM BOI, PASSA TODA A BOIADA

Antes, os jornais escreviam segundo o Vocabulário Ortográfico de 1943 (revisto em 1955), com os nomes próprios e comuns submetidos às mesmas regras. Às perguntas anteriores as respostas são: Manuel, Antônio e Luís (não Antonio, Manoel e Luiz). A coisa ia assim até certo momento dos anos setenta, quando o poderoso general Golbery do Couto e Silva se sentiu incomodado por ser chamado de Golberi pelo Jornal do Brasil e recorreu ao amigo Elio Gaspari (foto), então subeditor de Política do JB, para corrigir a “ofensa”.  O chefe da redação (não me lembra quem) aceitou o argumento de  Gaspari e deu no que deu: passou um boi, passou a boiada e os jornais sentiram o peso de outra ditadura, a dos cartórios.

OS CARTÓRIOS E O MODISMO VERDE-OLIVA

Quando Golberi virou Golbery entrou em vigor a lei do cartório, e a quase totalidade dos jornais (gosto de pensar que algum deles ainda resista ao odioso cartoricismo) adotou o modismo verde-oliva: Ulisses Guimarães (foto) passou a Ulysses, Miguel Arrais virou Arraes, Gilberto Freire ficou sendo Freyre, Ademar de Barros foi promovido a Adhemar, o poetinha, que era de Morais, hoje é Vinícius de Moraes, Ari e Rui agora são Ary e Ruy. E o pior aconteceu com nomes simples e singelos, a exemplo de Luís, Manuel, Sousa, Osvaldo, Tiago, Maria, Tomás (que passaram a aceitar dupla grafia, como se a língua no Brasil não tivesse normas a obedecer, como tem em Portugal, por exemplo. Dirão que minto, mas conheci, há poucos dias, uma Marya, assim com picilone.

NEM TERESA LISIEUX, SANTA, FOI POUPADA

Uma vítima da agressão ao Vocabulário Ortográfico foi Teresa, que se transformou (combinando a intervenção do general com a subserviência dos jornais da época e a ignorância de pais e escrivães de cartórios) em Tereza, Theresa e Thereza. Formas absurdas, pois a original (os católicos bem sabem) remete a Santa Teresa d´Ávila e Santa Teresa de Lisieux (foto). As outras grafias foram inventadas em cartório. Mas a vingança vem a cavalo. Pesquisa de Marcos de Castro em apenas três jornais do Brasil mostra que em 1985, quando morreu Médici (o mais sanguinário dos ditadores), sua viúva teve o nome grafado de oito formas: Scylla, Scyla, Scilla, Scila, Silla, Cylla, Cyla e o correto Cila. Bem feito.

POR QUE OS ESCRITORES ESCREVEM?

 O paulista José Domingos de Brito é um rato de biblioteca. Além de propriamente bibliotecário, é especialista em organização e administração de livros, com experiência em centros de documentação de várias grandes empresas. Tenho dele, lançado em 1999, o livro por que escrevo? – assim, com P minúsculo – pesquisa em que 96 escritores respondem a essa incômoda pergunta. Entre os mais conhecidos, e de respostas mais interessantes, está Érico Veríssimo (1905-1975): “Um verdadeiro escritor escreve por uma espécie de fatalidade, como a que leva o pinto a quebrar a bicadas a casca do ovo na hora certa, isto é, no momento determinado pela mãe-natureza, como diria Lucas Lesma” (Lesma é o jornalista de estilo pomposo de Incidente em Antares).

REMÉDIO CONTRA O VAZIO EXISTENCIAL

 

João Cabral de Melo Neto (1920-1999): “Sou como aquele sujeito que não tem perna e usa uma perna de pau, uma muleta. Escrever é uma maneira de me completar. A poesia preenche um vazio existencial”; William Faulkner (1897-1962), direto ao ponto: “Para ganhar a vida”; Millôr Fernandes (1924) deu resposta parecida: ”Sempre escrevi por necessidade, minha vida inteira”. Autran Dourado (1926): “Porque se não escrevesse já teria me matado”; Gabriel Garcia Márquez (1928) é o lírico que se esperava: “Para que meus amigos me amem mais”; Ignácio de Loyola Brandão (1936): “Para me divertir e divertir os outros”; Umberto Eco (1932), pra variar, complicou: “Eu escrevi porque meus filhos cresceram e eu não sabia mais para quem contar histórias”.

A ESCRITA COMO MEIO DE SOBREVIVER

“Se eu soubesse responder a essa pergunta deixaria de ser escritor. Não sei por que escrevo”, diz Fernando Sabino (1923-2004); Mário Vargas Lhosa (1936): “Escrevo porque é uma maneira de lutar contra a infelicidade”; “Eu escrevo para não morrer de tristeza nesse país desgraçado” – disparou o longevo anarquista Ernesto Sábato (1911); Jorge Amado (1912-2001): “Eu escrevo por não poder deixar de escrever, de escrever romances, de recriar a vida”; “Escrevo por que minha sobrevivência depende disso”, responde Márcio de Souza (1946); Clarice Lispector (1920-1977): “Escrevo como que para salvar a vida de alguém, provavelmente a minha”; e do mau humor de Graciliano Ramos (1882-1953) a resposta esperada: “Sei lá!”
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PRIMAVERA, FLORES, BACH E VINÍCIUS

Como a primavera (dita estação das flores) está à porta, achei oportuno postar aqui um vídeo apropriado para a estação. É música não muito nova (a letra, mais jovem, tem só 49 anos!), mas que merece ser dividida com eventuais leitores esquecidos. Trata-se de Rancho das flores, surpreendente parceria de Vinícius de Morais com Johann Sebastian Bach, separados por 228 anos – Bach nasceu em 1685; Vinícius em 1913. A letra do poetinha foi posta sobre a Cantada 141 (mais conhecida como Jesus, alegria dos homens), e teve a primeira gravação com a Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro (e coral), em 1961.

ROSA É MULHER RECENDENDO DE AMOR

Esse longo poema tem a marca do lirismo de Vinícius, que a tantos encantou: versos simples, singelos, comunicativos, que nos tocam profundamente: ele diz que “a natureza alegrou este mundo onde há tanta tristeza” – e que nesse programa de alegrar o mundo, as flores se destacam.  Elas são “um milagre do aroma florido mais lindo que todas as graças do céu”. A rosa (“que em perfume e em nobreza vem antes do cravo, e do lírio, e da hortência e da dália, e do bom crisântemo e até mesmo do puro e gentil mal-me-quer”) é personificada: – de “flor mais vaidosa e mais prosa”, atinge a condição de “mulher recendendo de amor”.
</span><strong><span style=”color: #ffffff;”> </span></strong></div> <h3 style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>E FRED JORGE CRIOU CELLY CAMPELLO!</span></h3> <div style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>No auge do sucesso, em 1965, a música teve uma versão no Brasil, gravada por Agnaldo Timóteo. Como costuma ocorrer com as

CANÇÃO QUE NÃO ACORDOU O MERCADO

Conheço poucas gravações de Rancho das flores. Imagino que ao escolher o ritmo de marcha-rancho (um andamento fora de moda, mesmo nos anos sessenta), Vinícius condenou ao esquecimento seu belo tratado sobre rosas, dálias, hortênsias e mal-me-queres, pois a marcha-rancho, coisa de nostálgicos como eu, pouco interesse despertou no mercado fonográfico. Em 2008, o músico cearense Raimundo Fagner, de reconhecido bom gosto, reviveu a parceria J. S. Bach e Vinícius de Morais no disco Fortaleza (seu arranjo, ao se aproximar de Bach, distancia-se da marcha-rancho).

(O.C.)
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A ORELHA CORTADA E O GOL QUE NÃO HOUVE

Ousarme Citoaian
Certos artistas são lembrados por um momento, uma curiosidade, uma circunstância: Van Gogh, por ter cortado a própria orelha e por vender, em vida, um único quadro –  A vinha encarnada (foto); mesmo quem não é dado a jazz & blues sabe que Ray Charles era cego, e isso basta; também de Jorge Luís Borges não se precisa ler nada, mas é imperdoável desconhecer-lhe a cegueira; e Pelé (embora não seja, rigorosamente, um artista)  foi muitas vezes celebrado pelo gol que não fez. Penso que essas situações poderiam integrar a lista daquilo que o gênio de Millôr Fernandes chama de “Ah, essa falsa cultura!” Entende.

FIRMINO ROCHA E O MENINO DO FUZIL

Autores são, volta e meia, vítimas da simplificação, passando a ser identificados por um só trabalho, não raro um detalhe, um ângulo desse trabalho. Essas referências, que contribuem para eclipsar o conjunto da obra, têm sido causa de irritação para muitas “vítimas”, que veem sua produção reduzida à expressão mais simples. São várias as situações em que o artista tem sua obra expressada por um item – um quadro, um disco, às vezes um verso, uma frase. Há poucos dias, citamos aqui o poeta itabunense Firmino Rocha, também ele atingido por essa “maldição”: sempre que se o cita, ouve-se uma referência ao poema “Deram um fuzil ao menino”. E só.

MÃOS QUE AFAGAM TAMBÉM APEDREJAM

Conta-se que Raimundo Correa ficava de mau humor quando alguém o tratava como o autor de As pombas (“Vai-se a primeira pomba despertada…”) e João Cabral de Melo Neto (foto), já de si zangado, não costumava ser simpático com quem demonstrava conhecê-lo apenas pela leitura do poema Morte e vida severina. Há pessoas que jamais abriram um livro e, mesmo assim, citam, sem saber a origem: “Depois de um longo e tenebroso inverno” (Luiz Guimarães), “Última flor do Lácio inculta e bela” (Olavo Bilac), “A mão que afaga é a mesma que apedreja” (Augusto dos Anjos) e “Que seja infinito enquanto dure” (Vinícius de Moraes). Também sei de gente que reduz Valdelice Pinheiro a “Rio Cachoeira” (“Rio torto, rio magro, rio triste…”).

A ELIPSE E A SEM-GRACICE DE MILÔR

Uma questão recorrente nesta coluna – a figura chamada elipse, que leva as pessoas a misturar os artigos definidos – teve um abono interessante, mesmo que nunca mais repetido, devido aos protestos que provocou. O nome do abonador, pasmem, é Luís Fernando Veríssimo. Com surpresa, leio no jornalista e filólogo Marcos de Castro (última edição de A imprensa e o caos na ortografia, uma de minhas leituras de cabeceira) que em 1997 o filho de Érico Veríssimo afirmou, em crônica no Jornal do Brasil, que Millôr Fernandes trabalhara “na Cruzeiro”. Millôr, que trabalhou na revista O Cruzeiro (e tem intolerância a bobagens) ficou sem graça.

SIMÕES FILHO EM ESTADO APOPLÉTICO

Essa epidemia de elipse fere uma regra simples, que toda redação conhece (ao que vejo, conhecia): o artigo que está no nome do veículo dita-lhe o gênero. Assim, O Cruzeiro é usado no masculino, tanto quanto O Malho e O Tico-Tico (embora sejam revistas, o que lhes dá “aparência” de feminino). Já A Tarde, A Gazeta, A Região e A Crítica são femininos (esse nó na língua que se dá para chamar A Tarde de “o A Tarde” deixaria apoplético o eminente Ernesto Simões Filho). Procurei de lanterna mão e não encontrei um só texto em que se chame a Folha de S. Paulo de “o Folha…” ou A Gazeta de “o Gazeta”. Ainda bem que o ataque não é generalizado.

PORTUGUÊS SEM “CONTORCIONISMOS”

Sobre a batatada de Luís Fernando Veríssimo (primeiro à esquerda, sentado), depois de dizer que “seu pai não faria o mesmo”, Marcos de Castro dá um exemplo, colhido “no admirável Solo de clarineta, de Érico Veríssimo”: “Quarta-feira era o meu dia mais esperado e feliz da semana, pois era às quartas que geralmente chegava a Cruz Alta o último número de O Tico-Tico”. O crítico nos chama a atenção para o fato de que por mais cinco vezes Érico se refere à revista na forma masculina, “sem fazer contorcionismos com o idioma”, mudando o gênero para o feminino. E conclui, com uma ponta de maldade: “O filho pode ser bom em saxofone, mas em clarineta o pai era melhor”.

NO BALCÃO, QUEM DIRIA, A FRASE GENIAL

Quando inventaram o comércio, inventaram os caloteiros e, por consequencia, as frases que procuram afastá-los. “Fiado só amanhã” é uma das mais antigas e, por isso, o tempo já lhe subtraiu a graça que, por ventura, teve na juventude. Desconfio de que, menino (aconteceu há uns 300 anos, ai meu Deus!) eu já desgostava da mesmice na linguagem, tanto que me encantei com uma frase de genial economia de palavras (sobre vender fiado), que vi sobre um balcão de loja – e nunca mais a encontrei, por mais que a buscasse, nem mesmo nos arquivos da internet. Jamais esqueci a frase e, claro, o nome do seu autor, o italiano Paolo Mantegazza (foto).

OS ARTISTAS NÃO SÃO FEITOS NA ESCOLA

Esse Mantegazza (1831-1910) não era um qualquer: foi neurologista, fisiologista e antropólogo, notável por ter isolado a cocaína da coca, que utilizou em experimentos, investigando seus efeitos psicológicos em humanos (“pesco” isto no Google). O velho italiano foi escritor de ficção e ainda encontrava tempo para produzir frases de efeito. “A escola pode aperfeiçoar o artista, criá-lo, nunca; não se melhora senão o que já existe”, é uma de suas pérolas. Outra: “A honra nunca existe por metade; inteira é forte, ferida está morta”. Faltou citar a minha preferida, primor de síntese para desestimular os velhacos: “Vendo, vendo; não vendo, não vendo”.

VOZES OBLÍQUAS NA HORA DO SOL SE PÔR

Há murmúrios neste rio,
vozes oblíquas me chamam;
Cantigas de bem-me-quer
entre rosas imaginárias.
Gemidos de superfície,
do coração de Jandira;
acenos de mãos franzinas
entre brisas de luar.
Senda do meu destino
nesta hora tão antiga;
uma saudade-ternura
na hora do sol se pôr.
Cachoeira, Itabuna, Jandira.
Amor cravado em cruz.

SINAL DE DESENCANTO COM A LITERATURA

Autor de “Água corrente”, acima, Ariston Caldas (1923-2007) passou sua vida, principalmente, em Uruçuca, Itabuna e Salvador. Na região e na capital exerceu o ofício de jornalista, poeta e prosador. Trabalhou nos grandes jornais de Salvador e aqui do Sul, tendo participado de várias antologias de contos e poemas. Publicou cinco livros de poesia: Mar distante, A hora sem astros, Balada que vai e vem, Olho dágua e Dissipação, todos em edições mais ou menos artesanais, hoje difíceis de ser encontrados.  Ariston (à direita da foto, ao lado de Jorge Amado – acervo de A Região) pareceu, em certo momento da vida, desencantado com a literatura, ficando mais de três décadas sem publicar. Curiosamente, um ano antes da morte voltou às livrarias, mas com um trabalho em prosa: Linhas intercaladas (Via Litterarum/2006).

SARAH VAUGHAN, A DIVINA, TERÁ EXISTIDO?

A primeira vez que o som inusitado da voz de Sarah Vaughan entrou pelos meus ouvidos eu senti um impacto próximo ao delírio. E cheguei de imediato à conclusão de que aquela cantora não existia – seria uma invenção de técnicos desocupados, um desses “milagres tecnológicos” que sempre estiveram em moda. Na época, minha sensação era da impossibilidade de um canto tão perfeito; e hoje (tantos anos já passados) ainda às vezes penso que Sarah (chamada, com justiça, a Divina) nunca existiu de se ver e pegar, não é gente de carne e osso. O exemplo é sua interpretação de Someone to watch over me, de George (foto) e Ira Gershwin – os irmãos da ópera Porgy and Bess (1935), já citada nesta coluna.

LETRAS COM BOBAGENS ARREPIANTES

Someone… tem letra feminina e bobinha (como em geral as letras dos americanos). Fala de “procurar um certo rapaz que eu tenho em mente” (I’m going to seek a certain lad I’ve had in mind), com bobagens arrepiantes, como “Onde está o pastor para esta ovelha perdida (Where is the shepherd for this lost lamb)? Na versão “masculina” com Emílio Santiago (foto) ficou:  “Eu sou um carneirinho perdido, arrependido e oferecido a alguém que olhe por mim” (Céus!). E antes que perguntem se Ira e George, com esse papo estranho, eram do reduto, respondo que não, ao menos que eu saiba – Cole Porter, contemporâneo deles, era quem jogava nessa posição. O que se notabiliza em Someone… é a melodia (de George), mais ainda com Sarah Vaughan, capaz de transformar em música até a lista telefônica de Constantinopla.
</span><strong><span style=”color: #ffffff;”> </span></strong></div> <h3 style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>E FRED JORGE CRIOU CELLY CAMPELLO!</span></h3> <div style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>No auge do sucesso, em 1965, a música teve uma versão no Brasil, gravada por Agnaldo Timóteo. Como costuma ocorrer com as

O COMPOSITOR MAIS RICO DO MUNDO

George Gershwin está na calçada da fama de Long Island desde 2006 e é nome de teatro em Manhatan, em resposta à contribuição que deu a esse meio cultural.  Aproveito e digo, só para quem ainda não sabe, que esse Gershwin (1898-1973), cuja fama encobriu   o irmão e colaborador Ira, formou ao lado dos maiores compositores americanos – como Cole Porter (foto), Richard Rodgers, Irvin Berlin e outros. E também das maiores fortunas. Artista talentoso e com uma vocação atávica para ganhar dinheiro (era judeu-russo), se deu muito bem na vida: em 2005, o jornal The Guardian concluiu que, “estimando os lucros acumulados na vida de um compositor, Gershwin foi o compositor mais rico de todos os tempos”.

COM VOCÊS, A DIVINA SARAH VAUGHAN!

Agora clique, se ajoelhe e esqueça, por escassos três minutos e meio, tudo o que ficou está lá fora. No fim, bata palmas – e se alguém estranhar, não ligue: o mundo está cheio de gente sem poesia.

(O.C.)
Tempo de leitura: 7 minutos

ENTRE A CONDENAÇÃO E A CURIOSIDADE

Ousarme Citoaian

Que meu olhar não seja de condenação, para evitar receber pedradas da CLMH (Comunidade dos Linguistas Mal Humorados), mas que possa ser de curiosidade. É que (assim como o “risco de vida”, aqui abordado recentemente), alguns neo-puristas decidiram que a expressão “entrega a domicílio” é ilegítima, de sorte que se algum infeliz a utilizar vai arder no fogo do inferno. O “certo” é “em domicílio”, proclamam os descobridores de novidades. Vamos acertar uma coisa: a língua portuguesa se alimenta do novo, mas mantém um pé na tradição, nas formas ditas consagradas, aquelas que os bons autores abonam.

EXPRESSÕES LEGITIMADAS PELO USO

“A domicílio” (condenada pelos puristas desvairados como abominável galicismo) é uma expressão enraizada na linguagem popular, que nossos avós já empregavam, e que, por ser consagrada, dispensa esses cuidados urgentes que lhe querem prestar. Os neologismos inúteis precisam ser evitados, e não aqueles se insinuam de forma natural e terminam integrantes “legítimos” da nossa fala. É o caso dos legitimados abajur (que já foi abat-jour) e piquenique (outrora, picnic). Atualmente, insiste-se em delivery de pizza (este, sim, um estrangeirismo dispensável). Contra ele temos o boa e velha “entrega a domicílio”.

INÚTIL ARTIFICIALISMO DE LINGUAGEM

A professora Maria Tereza Piacentini afirma que a regra purista manda usar “a domicílio” com palavras que indicam movimento (levar a roupa, a pizza etc.), e “em domicílio” quando sem movimento (dar aulas, cortar cabelo, fazer unhas e outros). Mas ela reconhece que “essa diferenciação está ultrapassada”, e que o uso prático recuperou (se alguma vez perdeu) a forma “a domicílio”, para ambos os casos. Portanto, vamos deixar de lado mais esse inútil e bobo artificialismo de linguagem que alguns redatores mal informados ajudam a difundir, e retomar a já brasileiríssima “a domicílio”, sem receios.

COPA DO MUNDO DE LUDOPÉDIO

Há estrangeirismos contra os quais a luta dos puristas é vã. Em certa época, tentou-se um termo “brasileiro” para piquenique, encontrando-se “convescote”. Não pegou, de sorte que os mais jovens (se não forem estudiosos de Gramática Histórica) desconhecem o termo. Só um sujeito irremediavelmente imbecil chamaria a colega de trabalho para “fazer um convescote” – e se arriscaria a um processo por assédio sexual: antigamente, moça de família só “convescoteava” depois do casamento. E tem ludopédio, do latim ludus (jogo) e pedis (pé) que quiseram pôr no lugar do anglicismo futebol. Não deu. Receio até que o Brasil, diante das patriotadas do “sargento” Dunga, jogue ludopédio, em vez de bola.

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“ARTIGO NOVIDADEIRO E INÚTIL”

Com o futebol no topo do noticiário, fortifica-se o festival de bobagens que habita o meio. Um dos itens mais notáveis é a inflação de artigos definidos que toma conta do noticiário. Em outros tempos, dizia-se que Zico ia vestir a camisa 10; atualmente, diz-se que quem vai vesti-la é o Kaká; no gol, informava-se que estaria, por exemplo, Tafarel; agora quem está é o Júlio César; a lateral direita, que em 1970 tinha Carlos Alberto Torres, agora tem como titular o Maicon – e por aí vai. “É de lamentar-se, mas todos os veículos de comunicação têm atrelado esse artigo novidadeiro e inútil em seus textos”, constata Marcos de Castro, em A imprensa e o caos na ortografia (Record – 5ª edição).

SEM CONCESSÕES AO MAU GOSTO

No começo, falar o Pelé ou o Luís Pereira (foto) era costume de algumas camadas das populações paulista e carioca, sempre em termos informais, quando ainda se mantinha maior respeito pela norma culta. Mais tarde, a televisão (a Globo, sobretudo, grande criadora de modismos) adotou algo semelhante como forma de comunicação: buscava-se uma linguagem capaz de ser entendida por todo o conjunto dos telespectadores, tendo como padrão de baixa escolaridade as pessoas de mais baixa escolaridade (se elas entendessem, todos entenderiam). Era o “coloquial bem escrito”: simples, claro e correto, sem preciosismos, mas igualmente sem concessões ao popularesco. Só que o controle se perdeu.

O BALTAZAR, O GASPAR E O BELCHIOR

“Qualquer palmeirense lembra, com saudades, de Leão, Luís Pereira, Dudu, Ademir da Guia e Leivinha. Já o bom marcador Zeca não foi tão marcante. E o Internacional de Rubens Minelli, bicampeão brasileiro? Ali fizeram história Manga, Figueroa, Falcão, Valdomiro e o lendário Dadá Maravilha. Mas ali também jogou o discreto Vacaria”, anota José Roberto Torero (Os cabeças-de-bagre também merecem o paraíso/Editora Objetiva). Em texto contemporâneo, o cronista manda sua mensagem sem gastar o estoque de artigos definidos – mostrando que não se trata de época, mas da competência de quem escreve. Há redatores por aí querendo “modernizar” o texto bíblico, dizendo que o Jesus, ao nascer, foi anunciado pelo Baltazar, o Gaspar e o Belchior.

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CHUMBO QUENTE E TEXTO REFINADO

E cá estamos, outra vez, a de western, como gênero de cinema uma paixão. John Ford, em Paixão de fortes nos faz bela surpresa, ao introduzir, quem diria, uma citação de Shakespeare, nada menos do que a cena 5 do ato III de (a tragédia de) Hamlet. Num saloon esfumaçado, um artista meio bêbado declama o To be, or not to be. Os vapores etílicos lhe atacam a memória e ele se vale de um pistoleiro “erudito” (o lendário Doc Holiday, aqui vivido por Victor Mature) para recitar o resto do texto, sob o olhar perplexo de Wyatt Earp/Henri Fonda. Improvável? Sim, mas criativo e de bom gosto.

EDGAR ALLAN POE EM PLENA PRADARIA

Howard Hawkins gostou tanto de Onde começa o inferno/1958 que fez uma refilmagem (esse hábito não estava em moda, como hoje, quando os filmes terminam dando a deixa para o próximo): é Eldorado, outra vez com John Wayne, agora liderando novo elenco (com destaque para Robert Mitchum, o xerife bêbado). Pois é nesse incrível ambiente que Hawkins introduz o poema “Eldorado” de Poe – no qual o autor ironiza a irracional corrida do ouro e dá aos versos, em Inglês, uma forma tal que o ritmo simula cavalos correndo. No filme de Hawkins, quem declama “Eldorado” é James Caan (à esquerda, na foto), um jovem e desajeitado pistoleiro de nome impronunciável.

O HOMEM EM SUA BUSCA SEM FIM

“Sozinho e errante/ um cavaleiro galante/ no sol e na sombra/ longamente viajara/ cantando, em busca do Eldorado”, recita Caan. O poema fala da eterna andança que o cavaleiro galante (noutra tradução é “elegante”) empreende em direção, talvez, à felicidade. Ele cavalga até ficar velho, sem encontrar “nenhum pedaço de chão parecido com Eldorado”. Quando está à beira da desistência, “caiu-lhe no peito uma sombra”, a quem ele, quase vencido pelo desânimo, interroga: “Onde estará essa terra/ chamada Eldorado?” – e a sombra responde: “Cavalgue, cavalgue corajosamente/ se você quer encontrar Eldorado” (combinei a tradução do filme com a de Rodrigo Garcia Lopes).

EM LETRAS, SOMOS OS BAMBAMBÃS

Do pouquíssimo que sei, acho que nossa música é a melhor do mundo, ao menos em termos de letra. O europeu é bom letrista, mas o brasileiro é melhor. Os americanos não são grande coisa. Mesmo o jazz, se cantado, não diz muito. Os europeus (sobretudo franceses, italianos e portugueses) ganham dos ianques, mas o Brasil ganha fácil deles todos. Yes, nós temos Braguinha (foto), Noel, Tom, Vinícius, Edu, Caetano, Gil, Chico Buarque, Paulo César Pinheiro, Cartola, Dolores Duran, Orestes Barbosa – citemos poucos, para não humilhar os gringos e criar problemas diplomáticos. Orestes escreveu “Tu pisavas nos astros, distraída”, o mais belo verso da língua portuguesa, segundo Manuel Bandeira.

LANCEADO, PREGADO, CRUCIFICADO

Há uma letra que me impressiona sobre as outras: Rosa, de Otávio de Sousa, que tem coisas assim: “Se Deus/ me fora tão clemente/ aqui neste ambiente/ de luz, formada numa tela/ deslumbrante e bela…/Teu coração/ junto ao meu lanceado/ pregado e crucificado/ sobre a rósea cruz/ do arfante peito teu”. Romantismo derramado, tangenciando o barroco, de autor praticamente anônimo. O público, injustamente, identifica a canção como “Rosa de Pixinguinha”. E o grande Pixinguinha (foto), autor da melodia, não ajudou a esclarecer o mistério. Interrogado, disse que Otávio de Sousa “era um mecânico que morava no Engenho de dentro, muito inteligente e que morreu novo”.
</span><strong><span style=”color: #ffffff;”> </span></strong></div> <h3 style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>E FRED JORGE CRIOU CELLY CAMPELLO!</span></h3> <div style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>No auge do sucesso, em 1965, a música teve uma versão no Brasil, gravada por Agnaldo Timóteo. Como costuma ocorrer com as

O MECÂNICO QUE NÃO DEIXOU RASTRO

Fazer esta letra e sumir sem deixar outro rastro na MPB é impossível. Minha versão preferida é outra: Otávio de Sousa nunca existiu, e Rosa seria de Cândido das Neves, o Índio (na verdade, negro!). O autor de Última estrofe (que todo seresteiro de respeito conhece) teria vendido os versos de Rosa a Pixinguinha e este “inventou” o mecânico. É coisa para pesquisador com P caixa alta. Os vídeos na internet estão cheios de erros na letra. Há até uma anta que canta (anta canta?) “vozes tão dormentes como um sonho em flor”, quando o poeta (seja quem for) escreveu dolentes.

ARROCHA PARA OS CAÇADORES DE ERROS

Luciana Mello comete “só” três erros. Se você descobrir algum deles, reclame no Pimenta o CD O melhor do arrocha, com a faixa-bônus “Rebolation”, na voz do Mano Cae. Mas, melhor do que caçar erros é relaxar e apreciar esse banho de romantismo, típico da MPB que se fazia no meado do século XX  – Orlando Silva (foto) lançou Rosa em 1937.


(O.C.)
Tempo de leitura: 7 minutos

ALFABETIZADO QUE NÃO LÊ, ANALFABETO É

Ousarme Citoaian
Há algum tempo, em Itabuna, uma professora de alfabetização infantil, na solenidade de “licenciatura” de seus alunos, recomendou aos mesmos que lessem. “A gente se alfabetiza para ler, pois, se não fosse assim, não valeria a pena o meu esforço, nem dos pais de vocês, nem de vocês”. O discurso me emocionou. Se não o aplaudi de pé, solitário, solidário e esperançoso, foi com receio de ser internado com urgência em nosocômio psiquiátrico credenciado pelo SUS. Está certíssima a professora: se não leio, para quê me alfabetizei? A alfabetização é irmã siamesa da leitura e prima carnal da escrita.

A MENOR DISTÂNCIA ENTRE DOIS PONTOS

Tenho dificuldade para explicar o assunto. Mas imagino que o alfabetizado que não lê é como aquele indivíduo que cursa a faculdade, licencia-se, por exemplo, em Direito e, depois, monta uma loja de calçados. Com todo respeito, para ter êxito com uma empresa comercial necessita-se de alguma técnica (que pode ser apreendida na prática da observação) e talento para os negócios. Então, ir à escola para ser comerciante é dissipar inteligência, perder tempo importante a estudar o que não interessa, usar a linha curva para ir de um ponto a outro, quando a reta é a menor distância.

CAMINHO PARA A TRANSFORMAÇÃO

A propósito de professores, aproveito para registrar dois textinhos, com sugestão de que pensemos a respeito deles: “Não é possível refazer este país, democratizá-lo, humanizá-lo, torná-lo sério, com adolescentes brincando de matar gente, ofendendo a vida, destruindo o sonho, inviabilizando o amor. Se a educação sozinha não transformar a sociedade, sem ela tampouco a sociedade muda”. Falou e disse o educador brasileiro Paulo Freire (foto); “O professor medíocre conta; o bom professor explica; o professor superior demonstra; o grande professor inspira”, sentenciou Arthur Ward, administrador americano.

HOJE É DIA DO PROFESSOR

Conservadora e preconceituosa (isto está comprovado em vários estudos), a sociedade brasileira tem ojeriza ao novo. Certos setores sofrem ataques agudos de urticária tão logo entram em contato com alguma coisa fora da mesmice. Isto é perceptível também quanto ao conhecimento. Todos nós já ouvimos a expressão calhorda “quem sabe faz; quem não sabe, ensina”. Uma grosseria contra o professor. Se é possível graduar as profissões, esta fica ao lado ou à frente do que há de mais importante. Vá o comentário por conta do Dia do Professor. É 15 de outubro? E daí? Façamos de conta que é hoje também.

COISAS DE MARSHAL MCLUHAN

Ligo a tevê e, num lance de má sorte, dou de cara com um ilustre especialista em nutrição, explicando as excelências da vitamina Ê. Assim mesmo: vitamina Ê. “A vitamina Ê faz, a vitamina Ê acontece”, e por aí segue. As vitaminas são identificadas por letras (A, B, C, D, E e K, com ligeiras variações) – e não existe em língua portuguesa a letra Ê. Interligada pela tecnologia – veja conceito de aldeia global de McLuhan (foto) –, a sociedade brasileira parece condenada a repetir bobagens linguísticas que, dicionarizadas mais tarde, adquirem status de consagração. Mas continuam sendo o que são: bobagens.

DIFERENÇA ENTRE LETRA E FONEMA

Dizem os conhecedores da língua (aqueles que não têm disposição para “consagrar” babaquices) que esse Ê não é letra, mas fonema. A quinta letra do nosso alfabeto (também segunda vogal) chama-se E (com som aberto). Não se trata de implicância nem de regionalismo nordestino, mas da pronúncia correta. Vale para qualquer canto do Brasil. Quem fala Ê é paulista mal informado ou quem repete a televisão, como se ela fosse, mal comparando, a Bíblia. Assim, vamos chamar IBGÊ e não IBGÉ, sendo que aquele famoso colégio de Ilhéus (o I.M.E., na foto de Mendonça), baianamente dito IMÊÉ, passa a se chamar IMÊÊ. Lá ele!

PRECONCEITO ATINGE NOMES DE  MULHER

Marcos de Castro, aqui várias vezes referido, nos chama a atenção para o imenso preconceito que a gramática alimenta contra as mulheres. E destaca a questão dos nomes próprios, que me passara despercebida: “Boa parte deles nasce de nomes masculinos e só se tornam nomes de mulher quando recebem desinência feminina”. O jornalista e filólogo aponta uma exceção, aliás nome muito bonito, de sonoridade cristalina e origem “nobilíssima”: Mariana. Trata-se da justaposição de Maria e Ana (Nossa Senhora e sua mãe). De Mariana nasceu Mariano, uma formação rara.

EM CASA DE JOÃO, MULHER ERA JOÃOZINHO

Entre os romanos, as mulheres eram tão sem importância (tanto em casa quanto na sociedade) que muitos dos seus nomes eram somente diminutivos dos nomes masculinos. Agripina (de Agripa) e Messalina (de Messala) são os exemplos citados por mestre João Ribeiro. É algo que soa hoje tão ridículo quanto se a um homem chamado João correspondesse uma mulher batizada como Joãozinho. Ao acaso, alguns nomes que nasceram do masculino: Manuela, Getúlia, Paula, Lúcia, Júlia, Maura, Antônia, Célia, Fernanda, Márcia e Patrícia.

PATRÍCIA AMORIM É PRESIDENTA DO FLA

Patrícios eram os nobres romanos, a elite à qual se conferia alta dignidade, em determinado período. Mais tarde, o substantivo comum transformou-se em próprio, e de Patrício veio Patrícia (que nada tem a ver com as atuais patricinhas). Por falar nisso, Marcos de Castro sugere que a nadadora Patrícia Amorim reaja às tentativas de chamá-la de presidente, dizendo aos repórteres: “Por favor, sou mulher e mãe, e tenho o direito de ser tratada por uma forma feminina. Sou presidenta do Flamengo, não sou presidente”. Dá neles, Patrícia!

DA ARTE DE ESCREVER BEM

O pesquisador Jorge de Souza Araujo me espanta a cada página. Num dos seus livros mais recentes, Graciliano Ramos e o desgosto de ser criatura, vejo que Quebrangulo, onde nasceu o Velho Graça, significa “matador de porcos”, em quimbundo. Jorge aponta forte semelhança entre o autor de Vidas secas e o escritor e ativista italiano Antonio Gramsci (foto): os dois foram criticados pelos seus partidos comunistas (PCB e PCI) por “falta de vigor revolucionário”, estiveram presos, adoeceram na cadeia e voltaram à liberdade no mesmo ano (1937). Gramsci, vítima do fascismo de Mussolini; Graciliano, do de Getúlio. O brasileiro escreveu Memórias do cárcere; o italiano, Cartas do cárcere.

GRACILIANO RAMOS EPIGRAMISTA

Graciliano Ramos, o que surpreende quem lê sua prosa descarnada, fez incursões na poesia.  Ele disse que compunha sonetos “para adquirir ritmo”, sem nunca ter pretendido ser poeta. “Aprendi isso para chegar à prosa, que sempre achei muito difícil”, afirmou. E o estoque de inusitados nesse Graciliano Ramos de Jorge Araujo (ganhador do Concurso Nacional de Literatura da Academia Alagoana de Letras) ainda guardava um inesperado Velho Graça epigramista: “De sífilis terciária, um dia, enfim, morreu/Este de alcoice imundo ignóbil filho espúrio/E a terra que o comeu/Entrou logo a tomar injeções de mercúrio”, escreveu ele contra desafeto anônimo.

ROBERTO DAMATTA E AS BALAS PERDIDAS

Sou um raro brasileiro que nunca viu (nem pretende ver) Tropa de elite. Também não quero ler Elite da tropa. Fico com a opinião de Roberto DaMatta, quando diz que “o cinema brasileiro é uma deprimente, com as exceções de praxe: só mostra pobreza, miséria, sofrimento, prostituição e bandidagem”. Prefiro o faroeste, a violência lá longe, antiga e vingada. Para ver polícia e bandido trocando tiros, basta estar na rua de uma grande cidade. Bom pra quem gosta de emoções fortes. No faroeste há justiça; no dia-a-dia das balas perdidas, não (e quando digo faroeste, me refiro aos americanos). A ficção não supera a realidade.

ITALIANO EM TEMPO DE TELENOVELA

 Faroeste italiano é como acarajé feito por baiana branca, se vocês me entendem. Já se vê, sou seletivo: Sergio Leone, o grande nome do spaghetti western, não entra em minha lista. Seu Era uma vez no Oeste, por exemplo, não me agrada, porque tem timing de telenovela (e eu detesto telenovela). Se a crítica adora Era uma vez, azar da crítica. Vamos fazer uma lista de dez ou vinte? Eu dou a saída com Matar ou morrer (Fred Zinnemann), Onde começa o inferno (Howard Hawkins), Os Brutos também amam (George Stevens), O homem que matou o facínora (John Ford), El Dorado (refilmagem de Onde começa) e Paixão de fortes (Ford).
</span><strong><span style=”color: #ffffff;”> </span></strong></div> <h3 style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>E FRED JORGE CRIOU CELLY CAMPELLO!</span></h3> <div style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>No auge do sucesso, em 1965, a música teve uma versão no Brasil, gravada por Agnaldo Timóteo. Como costuma ocorrer com as

ESTRANHA FORMA DE DIZER “I LOVE YOU”

Filmes de caubói (como se dizia antigamente), às vezes, têm referências surpreendentes. Em Onde começa o inferno, Angie Dickson ameaça vestir uma roupa que deixa as pernas à mostra e ouve do desajeitado xerife John Wayne: “Se você usar isso em público, eu vou prendê-la”. E ela, chorando de felicidade: “Até que enfim! Pensei que você nunca ia dizer que me ama”. Ele, espantado: “Eu disse que ia prendê-la. Ela: “É a mesma coisa”. Em Paixão de fortes, Henri Fonda, caído por Cathy Downs, busca ajuda no velho Farrell Mac Donald: “Você já esteve apaixonado?”. Resposta: “Não. Sempre fui barman”. Filme americano com humor inglês…

O HOMEM, O RIFLE E O CAVALO

Outro recurso recorrente no cauboi é a música. High noon (Matar ou morrer), My Darling Clementine (Paixão de fortes) são bons exemplos. Em Onde começa o inferno, há um intervalo na tensão de quatro homens à espera de uma quadrilha inteira, quando Dean Martin e Rick Nelson cantam um tema country (My rifle, my pony and me), com a ajuda do “doidinho” Walter Brennan, tendo John Wayne como plateia. É a síntese do gênero: o vaqueiro, a arma, o cavalo e a mulher amada. Confira em vídeo:
 
 

(O.C.)