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CHET BAKER: ENTRE A MÚSICA E O CHORO

Ousarme Citoaian | ousarmecitoaian@yahoo.com.br

Um jovem carteiro encontra uma bela mulher bêbada, caída num beco, e a leva para casa. Sob o chuveiro, a inusitada visita tenta espantar a carraspana, ao tempo em que solta “a voz mais linda do mundo” e, para a palidez de espanto do jovem, sai do banheiro para a sala nuinha dos pés à cabeça. A mulher, creiam, é Billie Holiday; Chet Baker, emocionado com sua própria música, confessa que quase encerra o show antes da hora, pois “ou bem a gente toca ou bem a gente chora”: era abril de 1988, a última apresentação do trompetista; um fã sai do show de John Coltrane assoviando Naima e, sozinho na rua, ao alongar a última nota da melodia, ouve aplausos entusiasmados, curva-se em agradecimento e entra em casa, sentindo-se “um homem feliz, totalmente realizado”.

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Contos de jazz, fúria dor e alegria

São ficções do jornalista mineiro Paulo Vilara no livro Jazz! Interpretações – Pequenas histórias de fúria, dor e alegria (Artes Gráficas Formato/2011), uma preciosa coleção de oito contos, tendo por tema o jazz. Vilara é o guia de um encontro emocionante, pondo-nos cara a cara com John Coltrane, Chet Baker, Thelonious Monk, Miles Davis, Lennie Tristano, Roland Kirk, Charles Mingus e Billie Holiday (nesta ordem), em textos literários de extraordinária economia de linguagem. A tendência ao minimalismo, entretanto, não nos deixa em falta: ele se dá ao luxo de acrescentar, a cada conto, valiosas notas sobre o artista, a canção e os lugares citados. Como apêndice, a discografia básica dos oito músicos. Livro raro, para ler e ler.

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Apresentação que paga o livro inteiro

Ao ler a introdução de Paulo Vilara para Jazz! Interpretações, ocorreu-me antiga expressão repetida nas arquibancadas após um cada vez mais raro lance de futebol arte: é preciso sair do estádio, comprar outro ingresso e entrar novamente, pois aquela jogada já pagara a entrada. No caso deste livro, fica o sentimento de que as 4,5 páginas da introdução justificam o preço da obra. No todo, uma emocionante celebração do jazz, vinda de um apaixonado cultor do gênero, mas, afora gostos musicais, uma obra literária com lugar em qualquer biblioteca. Faltou dizer que o livro (com prefácio de James Gavin, biógrafo de Chet Baker) é dedicado ao maestro Moacir Santos e à cantora Alaíde Costa, homenageados por esta coluna.

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NÓS SOMOS, MAS NÃO SABEMOS O QUE SOMOS

Gentil leitora, presa de curiosidade, pergunta quem é Ousarme Citoaian. Esta é uma angústia metafísica que nos pressiona, mais cedo ou mais tarde. Mesmo pensando que já tinha explicado a questão, eis que não sou poupado. A dúvida é tão velha quanto o homem, mas resiste ao tempo e às explicações. Shakespeare colocou a dicotomia do ser e do não ser como eterna indagação da humanidade: ser ou não ser é, no teatro, vingar-se ou não vingar-se, matar ou não matar – e para sair dessa prisão da dúvida, precisamos nos conhecer. Parece inquestionável ser. Nós somos. Mas o que somos e quem somos é a incógnita, ou, como queria Noel Rosa, filósofo, o “x” do problema.

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O que sou: reflexo, miragem, paisagem?

Nem só em Shakespeare vislumbramos essa fragilidade humana. Outras literaturas também oferecem instigantes exemplos da aflição que nos corrói. Conta o filólogo carioca Sérgio Pachá, da Academia Brasileira de Letras (não “imortal”, mas funcionário), que Antero de Quental (1842-1891), já noite velha, foi à casa de um amigo, com quem, certamente, pretendia dividir o sofrimento metafísico de que estava possuído. Ao bater à porta e ouvir a indagação “Quem é?”, teria retrucado, do fundo de sua angústia: “E eu lá sei quem sou?!” Florbela Espanca (1894-1930), num poema, meio século depois, diz algo parecido: “Sei lá! Sei lá! Eu sei lá bem/ Quem sou? Um fogo-fátuo, uma miragem…/

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“Quem cresce em saber, cresce em dor”

Sou um reflexo… um canto de paisagem/ Ou apenas cenário!  Um vaivém/ Como a sorte: hoje aqui, depois além!” José Régio (1901-1969), “brinca” com o poema de Florbela, acrescentando dois tercetos em que mostra a antiga questão: procuramos o saber como forma de libertação, mas será que o conhecer nos liberta dessa dúvida existencial? Parece que não: “Sei que sou a paródia de mim mesmo/ Sei tudo… E para quê? Por que sabê-lo?/ Viver é entrar no rol dos que não o sabem”, diz José Régio a Florbela Espanca. Resta ainda que o conhecimento parece uma condenação, se aceitarmos o que está no Eclesiastes: “Aquele que cresce em saber, cresce em dor”. O espaço acabou e não respondi à leitora…

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A CANÇÃO QUE REUNIU CINCO DIVAS DO JAZZ

Tenderly, de 1946, está entre as canções mais gravadas do mundo, registrada por, pelo menos, 80 artistas e grupos, de nomes consagrados a desconhecidos (por mim). Cito alguns que todo ouvinte de jazz conhece, começando pelas cinco divas negras (Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Billie Holiday, Nina Simone, Carmen McRae), seguidas de Armstrong, Tony Bennett, George Benson, Ray Anthony, Chet Baker, Clifford Brown, Pat Boone, Nat King Cole, Natalie Cole, Miles Davis, Billy Eckstine, Frank Sinatra, Duke Ellington, Percy Faith, Johnny Mathis, Errol Garner, Woody Herman, Etta James, Henri Mancine, Anita O´Day, Oscar Petterson, Buddy Powell e Artie Shaw.

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História que vem da alvorada dos tempos

Trata-se de um tema pop, de que o jazz se apropriou, como tantas vezes aconteceu. A letra não faz inveja aos autores românticos brasileiros: nas preliminares, a brisa da noite acaricia as árvores e as árvores abraçam a brisa com ternura, até que, nos finalmentes, “você tomou meus lábios, você tomou meu amor tão ternamente” (You took my lips/ you took my love so tenderly). História da alvorada dos tempos, já se vê, mas que funcionou até agora – e já lá se vão 66 anos. O brasileiro Dick Farney foi quem primeiro deu voz a  Tenderly (em junho de 1947), levando a canção ao topo das paradas americanas. Depois, vieram Sarah Vaughan, Nat King Cole e todo mundo.

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Sarah em estado de graça: a deusa canta

Creio que o show é de 1985, não aposto nisso. Aposto em que Sarah Vaughan (1924-1990) se encontra em absoluto estado de graça, em plena forma, alegre, fazendo caras e bocas para a plateia. Tenderly já foi cantada por ela (quase sai um trocadilho!) de várias formas diferentes, cada gravação com uma marca própria, a marca Divina Sarah (basta lembrar que este foi o primeiro sucesso da diva, em 1954). Aqui, ela “erra” o tempo da entrada e, em seguida, entra triunfalmente, com seu timbre inconfundível de diva do jazz que é. O público, é claro, se curva: uma deusa negra canta.

(O.C.)

Tempo de leitura: 4 minutos

O MATUTO E A “BONDADE” DOS CANDIDATOS

Ousarme Citoaian | ousarmecitoaian@yahoo.com.br

Apurados os votos e sabidos os eleitos (com perdão do trocadilho pouco explícito), posso brincar com o sistema, sem que a Justiça Eleitoral me meta grades adentro. E aproveito o momento para repetir um excerto de Festa de inleição, do poeta paraibano Pompílio Diniz (eu, até este momento, o dava como pernambucano). É a história de um matuto que se aproveitou da “bondade” dos candidatos, “cumeu até se arripuná” nas festas da campanha e depois foi às urnas. Trata-se de bela caricatura do nosso eleitor típico (o texto completo está em Buerarema falando para o mundo, de Antônio Lopes).

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Carne de bode, sarapatel e chouriço

O meu cumpade Vicente,/ Nessa úrtima inleição,/ Cumeu, de ficá duente,/ Carne de bode, pirão,/ Sarapaté e chouriço/ E dispois, com sacrifiço/ Foi votá na opusição.
Mas quando chegô a hora/ Do meu cumpade votá/ O pobre quis ir “lá fora”/ Pro mode se aliviá,/ Mas o tá do presidente/ Começa a berrar “Vicente!”/ E manda logo ele entrá…/ E disse pra ele: “assine/ seu nome nesses papé,/ Dispois entre na gabine/ vote lá em quem quisé,/ Mas não demore lá dento/Pois os outo também quer…” O meu cumpade assinô/ O que tinha de assiná,/ E se troceno de dô,/ Sem poder mais nem falá,/

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O cumpade faz “oportuno” uso da cabine

Mostra o tito, se aprivine,/ Fecha a porta da gabine,/ Começa logo a “votá”…/ Já fazia meia hora/ E o pessoá lá de fora/ Começaro a recramá:/ “Seu fiscá, ói a demora!”/ Outo diz “vamo simbora/ Que a urna é só de Vicente/ E o gota do presidente/Não bota o home pra fora!…”  Lá na mesa o presidente/Manda o povo se calá,/ Toca a esperar por Vicente,/ Toca Vicente a custar…/ E pra num havê revorta,/ Vai o tá do presidente/ Batê com força na porta/ Da gabine de Vicente…/ Depois dumas três batida/ Uma vóiz grossa, isprimida/ Responde de lá: “Tem geeeente!”

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SOLDADO É ELEITA VEREADORA EM ITABUNA

“O velho Ousarme perdeu o que lhe restava de bom senso e começou a escrever (mais) bobagens”, dirá o exigente leitor, com a anuência da gentil leitora. Calma pessoal! Apenas imaginei, com este título canhestro, despertar olhares para um tema que precisa ser discutido: a masculinização da mulher por meio da linguagem. “Soldado Valéria Morais foi eleita vereador em Itabuna pelo PSC”, anuncia um blog. Construção atabalhoada: primeiro, a mulher é tratada como soldado (palavra masculina, toda a turma da segunda série sabe); depois se lhe nega a condição de vereadora, chamando-a vereador. Então, nós temos soldado eleita e Valéria vereador. Talvez uma nova língua, mas não é a portuguesa, com certeza.

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“Soldada Valéria é eleita vereadora”

Os exemplos dessa violência, no caso da “soldada Valéria eleita vereadora”, são legião em todas os veículos: “A campeã das urnas foi a soldado Valéria Morais, com 2.054 votos”, trombeteia um jornal diário de Itabuna; “A soldado Valéria foi a mais votada”, assusta-se outro importante diário, “Soldado Valéria conseguiu os votos de 2.054 eleitores”, comenta um semanário itabunense – e por aí vai esse desvario gramatical. Mas, louve-se a diferença! “A vitória da soldada Valéria Morais despertou muitas consciências”, comenta-se num solitário espaço de jornal grapiúna, acrescentando-se, simpaticamente: “a soldada Valéria chega à Câmara com algum potencial de liderança”.

As mulheres deveriam reagir ao abuso

A boa norma diz que soldado é substantivo masculino, não comum de dois (o Michaelis até define soldado como “homem alistado ou inscrito nas fileiras…”),  sendo seu correspondente feminino soldada. Assemelha-se a delegada, deputada, vereadora, prefeita, reitora, doutora, generala, presidenta, promotora, coronela, marechala, confreira, paraninfa e outras. Assim, não se vê fundamento em chamar mulher de soldado, bacharel, general ou cônsul (consulesa é a escolha), pois tais termos são masculinos. É o velho preconceito (abrigado também pela Polícia Militar e o Tribunal Regional Eleitoral), repetido por uma mídia que se recusa a pensar, e aceito por mulheres que deveriam reagir a esse abuso.

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UMA CANÇÃO DE AMOR QUE GANHOU O MUNDO

Les feuilles mortes – que inaugurou esta coluna, em dezembro/2009 – é uma canção francesa de 1945 (letra de Jacques Prévert, melodia de Joseph Kosma), que Yves Montand lançou no filme As portas da noite, em 1946 (na foto, em cena com Nathalie Nattier). Um ano depois, Johnny Mercer fez a versão americana (Autumn leaves) e a música ganhou status de clássico do jazz. O tema foi gravado, além de Yves Montand, por Nat King Cole, Frank Sinatra, Ella Fitzgerald, Stanley Jordan (com duas guitarras!), Natalie Cole, Edith Piaff (em inglês!), Keith Jarret, Eric Clapton, Bill Evans, Juliette Greco, Stan Getz, Doris Day, Miles Davis, Chet Baker e Sarah Vaughan (com Winton Marsalis).

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A letra que vale a pena é a francesa

Se a gentil leitora tiver vocação para a pesquisa, por certo aumentará consideravelmente esta relação, pois o fascínio que Autumn leaves/Les feuilles mortes exerce sobre cantores e instrumentistas de jazz parece não ter fim. Curiosamente, vejo agora que não incluí na lista acima Laura Fygi, uma alemã branca cantora de jazz que ainda pretendo mostrar aqui. A meu juízo, a letra que vale a pena é a francesa – a americana segue o padrão nacional daquela terra de maus letristas. Realizamos o delírio de botar Nat King Cole e Natalie (pai e filha) cantando juntos. A voz dele vem do filme Autumn leaves, de 1956 – quando ela conhecia, no máximo, alguma cantiga de roda. Tinha seis anos.

(O.C.)