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NOSSO MUNDO EM CONSTANTE TRANSFORMAÇÃO

Ousarme Citoaian | ousarmecitoaian@yahoo.com.br

mãos2É de espantar como certas pessoas, arquitetas de um Brasil que já se foi (e que, felizmente, não volta mais), se apegam a conceitos antigos. Querem o mundo estagnado, na permanente defesa do socialmente velho, sem perceber que o novo, para o bem ou para o mal, é inevitável. É saudável entender que o mundo é revolucionário, é processo contínuo de movimento e mudança, ambiente sempre em transformação, pouco importa nossa vontade. E, pior para essa gente, não é só o ambiente que sofre o impacto do novo, mas as pessoas também abrigam uma incrível luta de morte e vida: ao nascer, começamos a morrer – e sabemos o resultado desse embate, sem lhe saber a data.

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A leitura ajuda a compreender o Brasil
Os versados em filosofia já perceberam a pista: tateio a dialética marxista, talvez por influência de Para entender O capital (David Harvey, Boitempo Editorial/2013). Imagino que essas leituras nos ajudem a, além de entender o pensamento de Marx (muito citado e pouco lido), entender o Brasil. Vivemos, para desespero dos mais reacionários, tempos em que se unem indivíduos do mesmo sexo, empregadas domésticas têm direitos trabalhistas, índios, sem-terra e sem-teto protestam, pobres recebem Bolsa-Família, negros encontram abertas as portas da universidade. De pouco adianta reclamar, pois esses valores novos são irreversíveis.
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Conquistas sociais que não têm volta
003 CotasQuem tiver tempo a perder e latim a gastar, que reclame do Bolsa-Família, por exemplo, mas o programa não tem volta, pouco importa quais forças políticas venham a dirigir o País. O grupo partidário que (em defesa da estagnação contra o movimento) atacou o BF já renunciou ao combate desde a última campanha, prometendo aumentar os valores distribuídos e ainda acrescê-los de um surpreendente 13º salário (ou seria 13ª bolsa?). Diga-se o mesmo das cotas para afrodescendentes: pesquisa em quatro universidades federais mostra que as cotas deram certo. Os argumentos contrários a elas não se confirmaram, eram só as velhas manifestações de preconceito.
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ENTRE PARÊNTESES

A questão com o livro emprestado, aqui referido há poucos dias, não é apenas devolver, mas devolver bem cuidado. Já me aconteceu receber de volta livro que parecia ter vindo da guerra ou sobrevivido a incêndio: sujo, amassado, com páginas dobradas, riscado, capa escangalhada, num escandaloso desrespeito. Siga-se o exemplo de mestre Jorge Araújo – que se acaso toma emprestado livro de alguém o devolve no estado em que foi recebido. Livro deve ser tratado com delicadeza e carinho, de mãos limpas como queremos que tenham os políticos, e carinhosas como devem ser as de quem mapeia o corpo de pessoa muito amada.

VESTIDO RODADO E PINTINHAS NA BOCHECHA

005 São JoãoEm princípio, tudo que existe no corpo humano tem utilidade – eu não sei qual a serventia do meu dedo mindinho do pé, mas deixa pra lá. Os olhos possuem uma coisa chamada celha (ê), conhecida como cílio, que os protege da poeira e outras agressões – e a tal celha é guarnecida pela sobrancelha, que lhe fica acima. Em crônica de agradável sabor sobre os festejos juninos em Ilhéus, o autor me faz lembrar que havia, então, ao pé da fogueira, dentre outros atrativos, “damas, com vestido rodado, quadriculado, exibindo a feição maquiada, com pintinhas na bochecha, batons nos lábios, realce nas sombracelhas e cabelo dividido ao meio…” – ah, meu tempo!
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Som nasal que se aboleta nas palavras

O texto merece elogios, mas necessita de um reparo nesse apêndice capilar que tão deliciosas lembranças nos evocam: para começar, não creio que o cronista quisesse dizer sombracelhas, que nunca ouvi, mas sombrancelhas, muito comum, mas igualmente equivocado. Seria um erro de digitação? Usa-se, com alguma insistência, sombrancelha em lugar de sobrancelha (suponho que viria de sobre a celha, com o som transformado). Mas sombracelha é novidade. Curioso é como esse “n” anasalador de sons invade as palavras e ali se aboleta, criando sérios entraves para quem fala ou escreve: indiossincrasia (por idiossincrasia), buginganga (bugiganga), mortandela (mortadela),  reinvidicar (reivindicar), intinerário (itinerário) – e por aí vai.

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Cílios postiços custam os olhos da cara

007 Malu MaderAs mulheres, que já nascem criativas, logo se aperceberam de que os cílios eram um item de beleza, tanto que os projetam grandes, bem tratados, escovados, às vezes adquiridos em butiques, a preços que custam os olhos da cara (com perdão pelo mau trocadilho). E não desprezam as sobrancelhas, que são aparadas, depiladas, pintadas, redesenhadas, perfumadas e submetidas a demais truques capazes de melhorar o que a natureza já fez bem feito. A bela e doce Malu Mäder, matéria de sonhos masculinos, escolheu caminhar, se entendem, na contramão: em vez de investir na mudança, preferiu manter au naturel suas sobrancelhas. De minha parte, nada oponho, até aplaudo.

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MADAME BREL TINHA O GELO DENTRO DO PEITO

Canção francesa das mais festejadas, todo mundo conhece Ne me quitte pas, aqui referida, pelo menos, duas vezes. Como já explicamos que o som desta coluna é montado sobre standards, vá lá a terceira: descubro, com atraso, um surpreendente registro de  Alcione – respeitável voz de sambista e, pelo que sei, não chegada a gorjeios em outra língua que não a camoniana. É mais uma cantora para este dramático tema masculino que, curiosamente, tem raras gravações de homens. Não precisa dizer que Ne me quitte pas foi feita (com todos os versos  em cinco sílabas) por Jacques Brel para sua mulher, quando se separaram, em 1959. Creio que aquela Suzanne Gabrielle, ao resistir a uma cantada desta categoria, provou ter dentro do peito uma pedra de gelo.
(O.C.)
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SAUDOSISMO E MÁ-FÉ: A MISTURA PERIGOSA

Ousarme Citoaian

Recebo frequentemente (quem não as recebe, atire a primeira pedra) gracinhas recolhidas em exames públicos, nunca sei se reais ou inventadas. É que o Brasil costuma acalentar o pensamento saudosista (às vezes em mistura perigosa com a má-fé) de que “antigamente tudo era melhor, sobretudo a escola”. Besteira. Energúmenos jovens e adultos sempre os tivemos à mancheia, e até guardo o sentimento de que essa raça – se acaso não estiver em extinção – estranhamente viceja muito mais entre adultos do que entre adolescentes. Os meninos e meninas de hoje, penso, são bem mais preparados do que seus ancestrais. E menos conservadores.

FANTÁSTICOS BEÓCIOS DO TERCEIRO GRAU

A escola, antiga ou contemporânea, sempre abrigou extraordinários mentecaptos, formidáveis beócios e fantásticos basbaques, sem prejuízo de uma chusma de grandes atoleimados, labruscos, paspalhões, estultos e estúpidos em geral. Não se trata de ofensa, mas de realidade constatada. Lamentável é que o preconceito em voga reserve essas gentis qualificações para os alunos, quando elas abundam entre professores – sobretudo no terceiro grau – e quem disso discordar é porque não tem lido algumas opiniões exaradas em artigos de jornais da região: essas sumidades tratam os leitores como se fôssemos tutelados ou rematados imbecis.

QUALQUER ESTULTICE PODE SER SUPERADA

Um desses profetas do caos defende a estranha tese de que quem vota em certo grupo político é cego, surdo e analfabeto – a mostrar que o respeito pelo leitor/eleitor é artigo em falta nas colunas, enquanto outro se refere aos programas federais como “medidas de caridade”. Também “denunciam” ameaças nazistas, conspirações contra a democracia e que o stalinismo será implantado no País, se certa candidata for eleita. É a recorrência ao pensamento carcomido de uma malta de fascistas, tendo à frente Olavo de Carvalho, Demétrio Magnoli et caterva do Instituto Millenium. A turma do Enem, pelo menos, é original, com erros de lavra própria.

PÉRICLES FOI O DITADOR DA DEMOCRACIA

Diferente do ranço reacionário que emana de tais escritos, as “pérolas” do Enem remetem a alguma poesia. Vejamos as nove melhores: 1) O nervo ótico transmite idéias luminosas para o cérebro; 2) O vento é uma imensa quantidade de ar; 3) As múmias tinham um profundo conhecimento de anatomia; 4) Péricles foi o principal ditador da democracia grega; 5) O problema fundamental do terceiro mundo é a superabundância de necessidades; 6) O Chile é um país muito alto e magro; 7) As aves têm na boca um dente só, chamado bico; 8)  Antes de ser criada a Justiça, todo mundo era injusto; 9) A insônia consiste em dormir ao contrário.

O BARZINHO E A SUBVERSÃO DA LINGUAGEM

A mídia regional tratou um concurso musical realizado em Itabuna recentemente como “Fase dos Barzinhos”. E tinha que ser assim, pois a escolha do nome foi dos promotores, não dos divulgadores: “Barzinhos” é uma estranha forma de fazer o plural de substantivos terminados em “zinho”, não reconhecida pela gramática portuguesa, que manda seguir outro processo em tais casos: 1) ignora-se o “zinho”, 2) coloca-se o substantivo no plural, 3) retira-se o “s”, 4) recoloca-se  o “zinho” em seu lugar original e 5) acrescenta-se o “s”. Pãozinho, por exemplo: 1) pão; 2) pães; 3) pãe, 4) pãezinho, 5) Pãezinhos.

A REGRA QUE OS BRASILEIROS REFORMARAM

Vamos multiplicar Mulherzinha? 1) mulher; 2) mulheres; 3) mulhere; 4) mulherezinha, 5) Mulherezinhas. Que tal este, em moda? Eleitorzinho: 1) eleitor; 2) eleitores; 3) eleitore; 4) eleitorezinho, 5) Eleitorezinhos. Como compor o plural de Barzinho? Fácil: 1) bar; 2) bares; 3) bare; 4) barezinho, 5) Barezinhos. É claro que todo falante da língua desta terra achada por Cabral consideraria “Fase dos Barezinhos” (em lugar da eleita “Fase dos Barzinhos”) uma verdadeira afronta: se cantor, recusar-se-ia (ops!) a cantar; se público, negar-se-ia a pagar o ingresso. “Barzinhos”, por assim dizer,  fechou os “Barezinhos”.

“É BRASILEIRO, JÁ PASSOU DE PORTUGUÊS”

Tenho, sem consulta ao professor Odilon Pinto (provavelmente pouco interessado neste tema menor), uma teoria sobre esta formação esdrúxula. Barzinho, na acepção referida, não é apenas o diminutivo de bar, mas um bar “especial”, onde músicos se apresentam, geralmente à noite. Naquilo que chamaríamos (arbitrariamente, é claro) língua brasileira, a palavra perdeu seu sentido de “bar pequeno” e passou a ter outra identidade. Visto assim, o barzinho pode até ser um grande espaço, desde que mantenha a característica de bar com música. Barzinhos, como diria o insuperável Noel Rosa, “é brasileiro, já passou de português”.

INVEJA TIROU NOBEL DE CARLOS CHAGAS

O Brasil já esteve na bica para ganhar o Nobel de Medicina, com Carlos Chagas (foto), e o de Física (César Lattes). Chagas (indicado pelas suas pesquisas em tripanossomíase) foi derrotado em seu próprio quintal: colegas brasileiros consultados sobre a descoberta da doença de Chagas, num misto de ignorância e inveja, desaconselharam a premiação em 1921 (ninguém foi escolhido naquele ano). Já Lattes pediu ajuda a um certo Ceci Powell, da Universidade de Bristol, para redigir o artigo científico em que  anunciava sua descoberta, o méson Pi. Powell assinou com ele e terminou recebendo o Nobel. A equipe de Lattes sequer foi mencionada.

DITADURA TIROU NOBEL DE DOM HÉLDER

O terceiro brasileiro seriamente cotado para o Nobel foi o cardeal-arcebispo Dom Hélder Câmara (foto). Apelidado “Bispo Vermelho”, pela ditadura militar que assaltou o poder em1964, foi autor de um dos maiores programas sociais do Nordeste, o Operação Esperança. Em 1970, reuniu mais de 20 mil pessoas em Paris para denunciar torturas no Brasil. Por suas obras, foi indicado ao Nobel da Paz de 1970 a 1973, tido como favorito absoluto nas quatro vezes. Mas nunca foi escolhido, devido a pressões do governo brasileiro. Na época, por ordem dos militares, nossa mídia sequer “conhecia” D. Hélder: não falava dele bem nem mal.

NO NOBEL, ARGENTINA NOS DÁ GOLEADA

O Prêmio Nobel de Literatura teve alguns países supercampeões: França (ganhou 14 vezes), Reino Unido (10), Estados Unidos (9), Itália e Suécia (6), Espanha (5), Irlanda e Polônia (4). Noruega e União Soviética (3 vezes). Em outras categorias, com um prêmio só, ainda estão Timor Leste, Gana, Paquistão, Tibet e a pequena ilha caribenha de Santa Lúcia (Literatura, 1992). Aliás, até a Autoridade Palestina, que nem país é, já ganhou o Nobel.  A poesia do pequeno Chile levou o prêmio duas vezes, com Gabriela Mistral (foto) e Pablo Neruda. A Argentina ganhou cinco vezes, mas não o de Literatura – por isso reclama da “injustiça” com o escritor Jorge Luis Borges. E nosso Brasil brasileiro, necas.
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CANTO MASCULINO EM VOZ DE MULHER

Ne me quitte pas teve gravações em várias partes do mundo, com artistas das mais diversas tendências. Curiosidade: embora a canção seja essencialmente masculina (trata–se de um homem se dirigindo a uma mulher) foram as cantoras e não os cantores que fizeram todos os registros de que tenho notícia: as francesas Simone Langlois e Sylvie Vartan, a americana Nina Simone e, pasmem, nada menos do que meia dúzia de vocalistas brasileiras: Maysa (foto), Maria Gadu, Roberta Miranda, Ângela Rô-Rô, Sônia Andrade e Alcione. No filme A lei do desejo (1987), Pedro Almodóvar usa a canção na trilha sonora, em gravação de Maysa. Logo, devido à exposição do filme, este seria o registro mais divulgado de Ne me quitte pas.
</span><strong><span style=”color: #ffffff;”> </span></strong></div> <h3 style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>E FRED JORGE CRIOU CELLY CAMPELLO!</span></h3> <div style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>No auge do sucesso, em 1965, a música teve uma versão no Brasil, gravada por Agnaldo Timóteo. Como costuma ocorrer com as

CORAÇÃO EM CHAMAS, ALMA DILACERADA

O francês Jacques Brel (foto), em 1959, durante sua dolorosa separação da ex-mulher Suzanne Gabrielle, fez Ne me quitte pas, um tijolaço com cerca de 60 versos, fora o refrão, todos rigorosamente com cinco sílabas. Única gravação masculina que conheço, a do autor, é definitiva, mostrando a diferença entre cantar e interpretar: ele é um homem abandonado, com o coração em chamas, à beira do desespero. Certa feita, Monsieur Brel, vestido de filósofo, disse que Ne me quitte pas não é um poema sobre o amor, mas sobre a covardia do homem. Dono da letra, ele tem o direito de dizer o que bem quiser. Mas para mim esta é uma canção de amor, sem dúvida, e das mais extraordinárias já vistas na música popular em qualquer tempo.

“EU TE OFERECEREI PÉROLAS DE CHUVA”

Se alguma leitora não concordar comigo, diga se já ouviu um homem lhe sussurar “Eu te darei pérolas de chuva/ Vindas de países onde jamais chove” (Moi je t’offrirai des perles de pluie/ Venues de pays où il ne pleut pas). Apenas estes versos já seriam bastantes para identificar Ne me quitte pas como um soberbo canto de paixão.  Clique aqui e veja/ouça a dilacerante interpretação de Jacques Brel.
(O.C.)