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NA REDE, CARREGAM “UM DEFUNTO DE NADA”

Ousarme Citoaian | ousarmecitoaian@yahoo.com.br

O tema está em Morte e Vida Severina (João Cabral de Melo Neto): são encontrados dois homens levando um defunto numa rede, aos gritos de “Ó, irmãos das almas! Irmãos das almas! Não fui eu quem matei não!”. Dos diálogos: “– A quem estais carregando,/ irmãos das almas,/ embrulhado nessa rede?/ dizei que eu saiba. – A um defunto de nada,/ irmão das almas,/ que há muitas horas viaja/ à sua morada. – E sabeis quem era ele,/ irmãos das almas,/ sabeis como ele se chama/ ou se chamava? – Severino Lavrador,/ irmão das almas,/ Severino Lavrador,/ mas já não lavra”. O “já não lavra” pode parecer irônico, mas não é: JCMN não tinha senso de humor.

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A rede traz recordações nem sempre boas

Minha locatária me presenteou com uma rede, bonita em seu colorido, armada e pronta para o uso, me dando uma estranha sensação de volta ao passado. Ou quase. A verdade é que a cidade grande estraga as pessoas, ofende-lhes origens, tradições e sotaques. No meu tempo de criança matuta, a cama era luxo destinado aos ricos, enquanto a rede simbolizava a pobreza, servindo aos vivos e aos mortos. A rede acompanhava o dia a dia das pessoas, também sendo uma espécie de mortalha – pois nela os pobres eram levados à cova – e, acreditem, lá deixado o defunto, ela era trazida de volta. A rede em que se levava o morto ao cemitério era devolvida à utilidade dos 

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Para os pobres, medo de defunto é luxo

vivos, pois a ideia de enterrá-la com o corpo não merecia, sequer, consideração. Uma boa rede não era coisa de se jogar fora, pôr a apodrecer debaixo da terra, pois era um bem valioso para quem quase nada tinha de seu. E digo aos infelizes habitantes da vida burguesa que pobres não têm luxos do tipo medo de defunto, e até ao esquecimento de outros detalhes nos víamos obrigados. Exemplo: não temer deitar-se no espaço em que, muitas vezes, o falecido penara o encerramento do seu tempo na terra e que ali exalara o último suspiro… Olho minha rede e concluo que nenhuma boa recordação da infância ela me traz. Vou agradecer e mandá-la de volta. Vazia, é claro.

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Lei de Murphy vai ao “Aulões do Enem”

Cena 1 – A bela repórter de famosa rede de tevê, com a maior sem-cerimônia, voz caprichada: “Esta calça aqui é toda orgânica. Só para se ter uma ideia, foi feita com algodão, fios de seda e pet. A cor chegou ao jeans por conta de uma mistura feita com ervas…” Cena 2 – Em teste do “Aulões Enem” (Unime/Governo da Bahia), foi assim redigida uma pergunta sobre meio ambiente : “As esponjas são animais de extrema simplicidade estrutural e, por conta disso, podem ser considerados organismos pluricelulares bastante primitivos”. Por conta (em lugar de devido a, por causa etc.) na tevê, já dói; quando vem de uma escola, abona a Lei de Murphy: nada é tão ruim que…

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DE VELHICE, PRECONCEITO E INTOLERÂNCIA

Circula na internet um texto atribuído ao publicitário Lula Vieira, em que ele se diz talvez “velho e ranzinza”, porque se irrita com certas coisas em moda.  A lista dos incômodos é enorme – e eu, por certo “velho e ranzina”, molestado com tanta bobagem, cito algumas. Há quem diga que isto é intolerância e preconceito, e talvez seja. É necessário ser sem preconceitos e encher-se de tolerância para aguentar mulher que anda com aquela garrafinha d´água e bebe um golinho a cada instante. É uma chata. A seguir, outras implicâncias: os naturebas radicais têm conversa incomodativa (falam o tempo todo em “vida saudável” e têm náuseas ao ouvir a palavra “carne”);

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Por que os atletas mordem as medalhas?

todo cara que costuma fazer aspas com os dedinhos quando faz uma ironia é um chato; mexer o gelo do uísque com o dedo é indício robusto de babaquice; gente que fala coisas como “chegar junto”, “fazer a diferença”, “superar limites”, “tudo de bom” e semelhantes, além de usar “gerundismos”, é babaca, com certeza; pegar na mão de desconhecidos durante a missa (Deus se apiede de minha alma!), é pagar mico, dos grandes; no cérebro de pessoas que se despedem dizendo “um beijo no coração”, se aberto, nada de bom será encontrado; por fim, minha contribuição a esta lista de sintomas de mau humor: se algum dia eu matar alguém será um atleta que morde a medalha na tevê. Que diabos os levam a aparecer na tevê mordendo as medalhas?

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PELE MORENA E BOCA PEQUENA: MEU DEUS!

Índia é uma guarânia de fronteira, uma coisa brasilguaia, cuja versão de José Fortuna tomou o Brasil de ponta a ponta, a partir de 1952. Foi lançada aqui pela dupla sertaneja paulista Cascatinha & Inhana (Francisco dos Santos e Ana Eufrosina da Silva) e virou mania: vendeu 300 mil cópias no primeiro ano e andava pelos 3 milhões em meados dos anos noventa. A letra é medonha, espécie de indianismo de mesa de boteco em fim de noite nos anos trinta: cheia de cabelos pelos ombros caídos, lábios de rosa, doce meiguice no olhar, pele morena rimando com boca pequena… um horror! Mas a melodia gruda, tanto assim que foi gravada até pelo insuspeito Dilermando Reis e pela orquestra nem tanto de Waldir Calmon.

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Deserto do Atacama, meio-dia, 38 graus

“No deserto do Atacama, vi uma mulher a cantar. Em pleno sol do meio-dia, termômetros em 38 graus (sensação de 42!), ela parecia ter saído do banho, tal a beleza geral que irradiava, além de um particular e incrível frescor da pele. Entre um trinado e outro, perguntei-lhe quem era. – Meu nome é Gal, disse a bela, piscando um olho – e mais não disse, pois acordei emocionado.” Em algum delírio, imaginei escrever uma coisa assim para falar de Gal Costa. É como a entendo: capaz de cantar a lista telefônica do Uzbequistão, em pleno deserto do Saara, sol a pino, 42 graus, sem desidratar a pele. E desafinar, jamais. Em 1973 ela gravou o LP Índia: na capa, um close de suas vergonhas, sob o biquíni pequenininho, que quase leva os militares a fechar a gravadora. A falsa moral é uma riqueza dos ditadores.

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Combinação de rouxinol e pintassilgo

Eu me chateei com o que achei ser concessão ao mau gosto, mas ela, sensata o bastante para não me dar ouvidos, vendeu horrores do disco e do show de mesmo nome (atenção: Gal repete um erro histórico na letra, mas não vou dizer qual). Ainda considero dispensável aquela gravação, mas o nome dela é Gal, cantando qualquer coisa, em qualquer lugar – e fez de Índia o registro definitivo (regravou-a mais duas vezes). Do show de 1983, temos um trecho dos versos quilométricos, ela cantando com a competência de sempre: na primeira parte, quase nos convence de que é uma cantora normal; na segunda, com arrepiantes agudos, é Gal Costa, a única – com seu som que parece combinar rouxinol, pintassilgo e taça de cristal.

(O.C.)