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UM CRIME CHAMADO CACÓFATO

Ousarme Citoaian
Na escola do professor Chalub, em Itabuna, a caneta-tinteiro (ainda não havia a esferográfica) que produzisse um cacófato tinha seu dono levado “aos costumes”: reguada, puxão de orelha, palmatória e perdão a Deus, ajoelhado sobre caroços de milho. “O sofrimento é didático”, pensavam pais e mestres. Na rua, qualquer intelectual corria o risco de ser desmoralizado num piscar d´olhos: “Aquele sujeito escreveu um cacófato!”, apontava o caçador de criminosos. E o cara estava publicamente execrado até o fim dos tempos. Para o bem ou para o mal, os linguistas decretaram que o erro de português não existe – e se por acaso teimar em surgir, intrometido e temporão, há de ser perdoado, com urgência. O cacófato foi descriminalizado. Perdoar é divino.

“MÁQUINA DE DESCASCAR ALHO”

Cacófato é a junção das sílabas finais de uma palavra com as iniciais de outra, formando uma terceira – com sentido ridículo ou inconveniente. Se hoje ele não é mais caçado a pauladas, em feitio de cachorro azedo, ainda é de bom alvitre tomar cuidado para evitá-lo: nas estradas há avisos do tipo “Controlada por radar”; um jornal se permitiu escrever “azeite da marca Galo”; A Tarde (não digo o A Tarde nem sob tortura no pau-de-arara!) publicou “Lavrador morre atingido por raio”; o presidente do PT, zangado com César Borges, vingou-se, dizendo que “por razões próprias, o PR encerrou as negociações”; na Amélia Amado, uma loja anunciava em letras sanguíneas e garrafais que tinha à venda, em suaves prestações, “máquinas para descascar alho”. A empresa fechou – e eu não sofri saudades.

CAFU DEU A BOLA E NENECA… GOL!

O professor Cláudio Moreno (foto), mestre em língua portuguesa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), recolheu um cacófato pavoroso, anotado pelo seu colega Sérgio Nogueira (mestre em língua portuguesa pela mesma UFRGS). Na transmissão de um jogo Brasil e Coreia, ele ouviu do narrador da tevê: “Fábio Conceição pediu a bola e Cafu deu”. Em seguida, como se fosse pequena essa pedrada, o cara nos mandou outro carrinho por trás: “Chuta Neneca, gol!”. O povo define isto com uma expressão saborosa: “além de queda, coice”. Todos nós, ao falar ou escrever, estamos sujeitos a tais acidentes. Ou seja, o cacófato está vivinho dos santos, e se finge de morto para ser visitado.  

O ERRO A SERVIÇO DO HUMOR 

Camões (foto), quem diria, também foi vítima, ao cometer o verso “Alma minha gentil que te partiste”. Devido a essa “maminha”, os gramáticos quase arrancam ao vate lusitano o olho bom que lhe restava. Mas o cacófato, no lugar certo, gera interessante clima de humor. Veja-se o folclórico A flor do cume, recheada deles: “No alto daquele cume/eu plantei uma roseira,/o vento no cume bate,/a rosa no cume cheira;/ Quando vem a chuva fina,/salpicos do cume caem,/formigas no cume entram,/abelhas do cume saem;/ Mas se vem a chuva grossa,/a água do cume desce,/a lama do cume escorre,/o mato no cume cresce;/ E logo que cessa a chuva,/no cume volta a alegria,/pois torna a brilhar de novo/o sol que no cume ardia”.

“SOU DAQUELES QUE SOU A FAVOR”

Em sessão na Câmara Federal, na semana passada, o deputado baiano Colbert Martins (foto) deu importante contribuição ao besteirol que fustiga a língua portuguesa. “Sou daqueles, primeiro, que sou a favor” (!) – e por essa cacetada inicial e eu percebi que uma chuva de granizo estava a caminho. Não deu outra: “segundo, sou daqueles que votou; terceiro, sou daqueles que vai votar; quarto, sou daqueles que quer negociar a aprovação dessa PEC”. Fosse eu autoridade, proibiria a Câmara de cometer erros de concordância durante três meses, pois nosso representante já gastou toda a quota disponível. Tentarão creditar os erros ao improviso. Bobagem: eles foram repetidos no blog, havendo muito tempo para a correção, que não foi feita.

FERNANDO SABINO E O DEPUTADO

O verbo vai para o plural. O sentido: “Estou entre aqueles que votaram, que vão votar, que querem negociar etc. Há uma crônica de Fernando Sabino (foto) – “Eloquência singular”, no livro A companheira de viagem/Editora do Autor – que nos sugere uma relação muito próxima desse episódio. É a história de um parlamentar que começa o discurso dizendo “Senhor Presidente, não sou daqueles que…” – e é assaltado pela dúvida: o verbo vai para o singular ou o plural? O nobre deputado começa a fazer perigosas digressões (enquanto a cabeça anda à roda das regras gramaticais) e nenhum aparte salvador o vem interromper. Mais feliz foi Colbert, que, inconsciente, disse suas bobagens com ar doutoral, sem o assalto da dúvida.

DA ARTE DE ESCREVER BEM

No rádio e na tevê os textos sobre futebol contribuem para aviltar a língua portuguesa. No jornal, são um monumento à mesmice. Termos repetidos, lugares-comuns, nem sempre controladas as paixões do autor. Melhor ir pelas exceções: Armando Nogueira e Nelson Rodrigues (foto) renovaram o gênero, dando-lhe qualidade literária. Armando, muito respeitado no meio lítero-esportivo (!), morreu recentemente, recuperando seus muitos minutos de fama. De Nelson Rodrigues, para mim o suprassumo (em jornal e tevê), do fim dos anos cinquenta aos setenta, poucos se lembram. São dois criadores desse gênero, que teve pioneiros, como Mário Filho, não por acaso irmão de Nelson.

TOSTÃO CONHECE AS TÉCNICAS

Modernamente, há esforços para oxigenar a crônica esportiva. José Roberto Torero (foto), com seu Os cabeças-de-bagre também merecem o paraíso (Objetiva), é um deles. Texto inventivo, inteligente e bem-humorado, tendo por motivo o futebol. Torero escreve na Folha de S. Paulo, além de ter vários livros publicados. Mas confesso minha preferência por Tostão e sua crônica semanal divulgada em cadeia de jornais, incluindo A Tarde (nunca o A Tarde!). Não precisa ser “especialista” em futebol para ler e entender Tostão – basta ter bom gosto. Ele, além de didático, domina as técnicas do “esporte bretão” e da escrita.

ARMANDO E NELSON ASSINARIAM

A crônica esportiva atinge o status de crônica literária. José Roberto Torero, obra citada: “Pavão foi o mais refinado avante que já surgiu nas terras entre Piancó e Itaporanga. Ele dava dribles humilhantes e ria com prazer de cada adversário que deixava no chão. Mais que ria, gargalhava. Até que um dia seu corpo foi achado na linha do trem. E sem as pernas. Suspeita-se seriamente de uma quadrilha de zagueiros vingativos”. Tostão, falando de Garrincha (foto): “Quando um menino constrói um castelo ele não sonha em ser rei. Ele é rei. Quando Garrincha brincava [de driblar], ele não sonhava em ser um menino, um passarinho, ele era um menino, um passarinho, um garrincha”. Jóias que Armando e Nelson assinariam.

VERSOS, VERSOS À MANCHEIA

Em edição da Editus/Via Litterarum, está na praça o pequeno e importante livro Diálogos – Panorama da nova poesia grapiúna, uma antologia preparada por Gustavo Felicíssimo (foto). O organizador é bem-sucedido no esforço de aprisionar em apenas 104 páginas uma mostra representativa da poética regional. A nomes conhecidos, como Piligra, Daniela Galdino, Heitor Brasileiro, Rita Santana e George Pellegrini, juntam-se outros de menor divulgação – mas todos unidos no mister de produzir na aldeia uma poesia que, no dizer de Ildásio Tavares (que assina o prefácio) “aspira a universalidade”. De Heitor Brasileiro, que também (e bem) transita na prosa, este belo haicai atípico, Crack, que remete a Drummond:

Não havia mais

caminho

uma pedra.

HERANÇA DO MODERNISMO

Ao todo, em ordem alfabética, os poetas antologiados são: Daniela Galdino (foto), Edson Cruz, Fabrício Brandão, George Pellegrini, Geraldo Lavigne, Heitor Brasileiro, Mither Amorim, Noélia Estrela, Piligra e Rita Santana. Segundo Gustavo, a coletânea traz “frescor no vocabulário e na sintaxe” dos dez poetas. É um “diálogo” diversificado, “partindo do verso livre, passando pelo minimalismo do haicai, chegando ao octossílabo e ao verso alexandrino com uma coloquialidade certamente herdada do modernismo e tão bem assimilada, não deixando a poesia cair na banalidade, como fizeram poetas demasiadamente influenciados pelas vanguardas”. Enfim, é urgente poetar, nesse mundo maluco.

NUMA PALAVRA, TUDO: ARMSTRONG

O crítico Ari Vasconcelos, no livro Panorama da Música Popular Brasileira (coisa antiga, só encontrável em sebos) diz mais ou menos isto (cito de memória, pois meu livro foi comido pelas traças e as mudanças): “Se você for falar de MPB e tiver espaço para apenas uma palavra, escreva Pixinguinha (foto)”. Imagino que, nessa linha de raciocínio, se o assunto é jazz, a palavra é… Armstrong. Mesmo quem alega de nada saber sobre a grande música negra, já ouviu falar do velho Satchmo, certamente um símbolo do jazz de todos os tempos. É claro que a mídia não fala mais em Louis Armstrong, mas aí já não é comigo.

CAETANO E A SUBMÚSICA

O mundo não está de cabeça para baixo (se estivesse, a gente saberia de que lado está a cabeça). Está confuso, misturado, e ficam os valores todos. A arte, é óbvio, foi junto. Quando alguém do nível de Caetano Veloso sai em defesa do pagode e outras manifestações submusicais baianas percebe-se que alguma coisa anda fora dos trilhos, e não é o trem. Voltemos, pois, à seriedade: não vou falar de Armstrong – se você precisa que alguém faça isso é porque está lendo a coluna errada. Em meio a 30 discos (cerca de 450 músicas), como escolher? Vá a esperançosa e otimista What a wonderful world (feita por Bob Thiele e George Weiss, especialmente para Armstrong.
 
(O.C.)
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