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É PRECISO PACIÊNCIA COM MAUS REDATORES

Ousarme Citoaian
Falamos aqui da condenação do artigo indefinido, do qual os plumitivos (dicionário, urgente?) abusam tanto quanto os políticos da nossa paciência. Exemplos dados, não serão repetidos, por desnecessários. Mas ficamos devendo uma referência a abusos com os artigos definidos, que, igualmente àqueles, não melhoram a linguagem.  Ao contrário, conspurcam-na. E aqui estão alguns “abonos” que, para evitar que a coluna seja acusada de injuriosa, maledicente e difamatória, foram colhidos na mídia impressa regional. Antes (quem avisa, amigo é) uma advertência: se houver pronome possessivo por perto, redobre seus cuidados com os artigos definidos, porque, juntos, eles são uma mistura indigesta. Dito o que, vamos à colheita.

FRASE NÃO QUER CORREÇÃO, QUER ESPONJA

Um articulista ensina que “todo mundo tem a sua própria opinião”; numa coluna sobre política partidária descubro que “Alcides Kruschewsky reassumiu o seu posto na Câmara”; perspicaz, um analista conclui que “é necessário ter coragem de exibir a sua opinião”; outro, na mesma linha doutoral e perdulária, disserta sobre a conveniência de  “compartilhar a sua ideia”. Não entendo a razão de não se escrever (com notável economia, e sem prejuízo da clareza) ”exibir sua opinião”, “compartilhar sua ideia” e que o vereador “assumiu seu posto na Câmara”, com varrição radical dos artigos inúteis. Sobre a primeira frase, digo como aquele ministro da ditadura: “Nada a declarar”. É passar-lhe a esponja e construir outra.
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CINCO LIVROS E A REVELAÇÃO DE UMA VIDA

O crítico Hélio Pólvora foi submetido a uma prova que não me dá inveja: ditar, para Gabriel Kuak (presidente da União Brasileira de Escritores) a lista dos cinco livros que mais pesaram em sua formação. Apenas cinco, e é isto que faz espinhosa a tarefa. Creio que os leitores (para quem esta notícia seja nova) tenham curiosidade em saber a preferência do autor de O grito da perdiz, por isso antecipo os escolhidos, na ordem em que foram citados (Hélio se ateve apenas aos brasileiros): O Guarani (José de Alencar), Dom Casmurro (Machado de Assis), Angústia (Graciliano Ramos), Fogo Morto (José Lins do Rego) e O Continente (parte de O Tempo e o Vento, Érico Veríssimo). Lista inesperada, à exceção de Machado de Assis.

SEM CLARICE LISPECTOR E GUIMARÃES ROSA

Hélio parece temer que a originalidade lhe custe caro. “Corro o risco de bordoadas dos fãs de Clarice Lispector e João Guimarães Rosa”, reconhece, mas defende sua escolha de cinco livros que não vão para a ilha deserta nem ficam à cabeceira, ao alcance da mão. “Preferem o leito da memória, onde ardem ou palpitam sob cinzas”. De minha parte, tentei antecipar alguns votos e errei feio. Mas acertei com Dom Casmurro, sabendo que Hélio Pólvora é um dos especialistas no mais célebre triângulo amoroso da literatura brasileira – até escreveu um ensaio “provando” que a traição de Capitu a Bentinho, discutida há mais de um século, ocorreu de fato. Minha “previsão” incluiu Guimarães Rosa e Graciliano Ramos. Passei longe de um, raspei o outro.

EM ANGÚSTIA, O NASCIMENTO DO ESCRITOR

Imaginava que Hélio incluiria São Bernardo ou Vidas Secas, quando ele preferiu Angústia. Imagino que não me equivoquei de todo. O ensaísta explica que Angústia lhe deu “um estalo”, com a arte de escrever a roçar-lhe o rosto, “qual leve asa de pássaro”, e afirma que o livro “talvez perca, em estrutura, para São Bernardo e Vidas Secas, mas revela uma intimidade cúmplice que acentua a comoção”. Mais adiante, na hipótese de uma relação de dez livros, ele lembra Os Sertões (Euclides da Cunha), Minha Formação (Joaquim Nabuco), Capítulos de História Colonial (Capistrano de Abreu), Jubiabá (Jorge Amado, na rede) e Dora, Doralina (Rachel de Queiroz). E encerra com extrema elegância: “Perdão Pompeia, Lygia, Adonias e Autran Dourado”.

ENTRE ERRO E LICENÇA POÉTICA, O ABISMO

Dentre os truques com que tentamos justificar erros de linguagem está um, chamado licença poética. É preciso atenção do leitor para não confundir as duas categorias. Apenas tangenciando o assunto (não sou professor, nem isto aqui é aula de português), é bom lembrar que licença poética é a permissão para se fugir da chamada norma culta da língua, não um salvo-conduto para a ignorância, conforme alguns autores parecem entender. É uma forma de libertar o escritor de amarras gramaticais que o impeçam de tornar sua mensagem clara a esse animal em extinção chamado leitor. Portanto, a licença poética tem tempo e lugar adequados à sua prática.

A PRINCESA, O REVOLUCIONÁRIO E O BODE

Muito citado para identificar algo confuso, O samba do crioulo doido, de Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto), me parece um atípico caso de licença poética – em que a manipulação não é da gramática, mas da história: a abertura (“Foi em Diamantina/onde nasceu JK”) guarda fidelidade histórica – o sorridente Juscelino (foto) nasceu naquela cidade mineira, em 1902 – mas em seguida o letrista parece “endoidar de vez” e não fala mais coisa com coisa: a princesa Leopoldina “arresolveu” se casar, mas Chica da Silva entra pelo meio e mistura a princesa com Tiradentes! E o refrão? “Lá iá, lá, iá, lá, iá/o bode que deu vou te contar”. Só podia dar bode.

CAOS TOTAL: “PROCLAMARAM A ESCRAVIDÃO”

 
Está implantado o caos irremediável: “Joaquim José/que também é (breque!)/da Silva Xavier/queria ser dono do mundo/e se elegeu Pedro II”.  Depois, mancomunados, Dom Pedro e Anchieta proclamam a escravidão, “Dona Leopoldina virou trem/ e Dom Pedro é uma estação também”. Fechando esse pacote tão insano quanto saboroso, um refrão anárquico: “Ô, ô, ô, ô, ô, ô/o trem tá atrasado ou já passou”. Além de nada bater com o que ouvimos na escola, a falta de lógica é absoluta: dizer que Tiradentes “se elegeu Pedro II” é de uma desordem inconcebível, um “desrespeito” com a história que deixou muita “otoridade” em pé de guerra naquele plúmbeo 1968.

BOM HUMOR CONTRA A BURRICE VERDE-OLIVA

Sucesso imediato, o samba se fez clássico. Mas Martinho da Vila o detesta, achando-o “preconceituoso”. Eu discordo. Sérgio Porto nunca deu sinais de discriminar quem quer que fosse: conhecedor de jazz, ele se referia ao gênero como “jazz tocado por negros”. E “crioulo” não tinha o ar pejorativo de hoje. A propósito, João Saldanha frequentemente  chamava Pelé de “o crioulo” – e  nunca ninguém o enquadrou na Lei Afonso Arinos. Samba…  é uma canção política: insurge-se, com bom humor, contra a ditadura, que exigia louvações a vultos históricos no Carnaval. O “crioulo” era a vítima. Aqui, a gravação original (Quarteto em Cy, com abertura do autor).

(O.C.)

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