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A Nissan soltou no ar mais uma propaganda polêmica. “Você quer uma picape que tenha cavalos ou pôneis?”, indaga uma voz, fazendo direta associação entre motor “de verdade” ou “sem potência”.
Desta vez, a montadora japonesa é acusada de associar um ícone infantil (pônei) com algo que cheira a enxofre (a palavra maldito) com a campanha Pôneis Malditos.
O conselho de autorregulamentação da propaganda no Brasil, o Conar, recebeu, pelo menos, 30 reclamações contra o comercial, segundo o Estadão. O vídeo foi visto mais de cinco milhões e seiscentas mil vezes só no YouTube.

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ESPERO QUE OUVIDOS ANÔNIMOS ME OUÇAM

Ousarme Citoaian

Dentre as explicações para o escrever (vimos aqui algumas de escritores famosos), me sinto identificado com o mineiro Lúcio Cardoso (1912-1968): “Escrevo para que me escutem – quem? Um ouvido anônimo e amigo perdido na distância do tempo e das idades. Para que me escutem se morrer agora. E depois, é inútil procurar razões. Sou feito com estes braços, estas mãos, estes olhos e assim sendo, todo cheio de vozes que só sabem se exprimir através das vias brancas do papel, só consigo vislumbrar a minha realidade através da informe projeção deste mundo confuso que me habita. E também escrevo porque me sinto sozinho”.

O ESCREVER SE PRESTA A ACORDAR MENTES

Por não ter talento de ficcionista, sou jornalista de planície e batente, com mais tempo de trabalho do que a sensatez recomenda. Sinto que dentro de mim mora um foca adolescente – daqueles que, tomados pela insolência comum à nossa profissão, faz cada texto como se com ele fosse transformar o mundo. Então, é isto: escrevo para mudar a realidade, não apenas para que me saibam vivo. Gosto de pensar que o jornalismo é um serviço ao público, uma forma de acordar mentes, provocar pensamentos, motivar as pessoas a reagir às variadas modalidades de desprezo e agressão que nos cercam. E, eventualmente, pagar o supermercado.

ESCREVER É TAMBÉM UMA FORMA DE SONHAR

Imagino que, às vezes, atinjo aquele leitor que, solitário e pequeno diante dos malefícios da vida, não se entrega e, em tocante tributo, debruça-se sobre meu pobre texto e reconhece: “É isto que eu queria dizer”. Não sei se, seguindo a receita de Bandeira (foto), escrevo como quem chora, ou se, na de Jorge Medauar, como quem vive. Talvez seja a igual distância da vida e da morte, da esperança e do desengano, do gozo e do sofrimento. Vivemos num tempo sem ética (e não me refiro só à ética dos governantes, mas à das pessoas “comuns”), num mundo desigual e injusto. Pensando bem, acho que escrevo como quem sonha.

VOTAR É FÁCIL; DIFÍCIL É O VERBO VOTAR

“Eu voto Serra!”; “Eu voto Dilma!” – disseram marido e mulher, antes que o ódio os juntasse em luta, em nome dos superiores interesses da Pátria. Setores da nossa sociedade costumam afirmar que brasileiro não sabe votar, repetindo a asneira criada por famoso jogador de futebol. De acordo com essa filosofia calhorda, exumada na última eleição presidencial, sabe votar quem escolhe os candidatos da preferência de quem diz que o povo não sabe votar. De minha parte, acho que mais difícil do que eleger dirigentes públicos é dominar as muitas regências do verbo votar – não estando entre elas as construções acima, criadas pela propaganda e absorvidas por parte da mídia.

“VOTAR ALGUÉM” TRAUMATIZA A LINGUAGEM

Compulso o dicionário e vejo usos vários do verbo: votar em, votar a favor, votar contra, votar por, consagrar-se (Votou-se a Deus), aprovar por meio de voto, eleger pelo voto, manifestar opinião com emprego do voto, dedicar-se (Votou ao trabalho toda sua vida), entregar-se (Votara-se a uma pobreza voluntária). Não conheço registro da estranha forma “votar Fulano”, mencionada no tópico anterior, muito usada no marketing político, sendo, portanto, traumatizante da linguagem culta. A melhor construção, neste caso, seria “votar em …” (verbo transitivo indireto), recusando-se também “votar para… ” (válida quando se refere ao cargo, não ao candidato).

O POVO É O SOBERANO CRIADOR DA LÍNGUA

Supõe-se que formulações desse tipo sejam geradas com apoio na lei do menor esforço (é mais fácil dizer “votar Fulano” do que “votar em Fulano”). Até aí, tudo bem, pois o povo é o soberano criador da língua e, em longo prazo, termina impondo sua preferência. Além do mais, num país que se esmerou durante muitos séculos em sedimentar seu número de analfabetos, é ocioso querer que a população iletrada conheça minúcias de gramática normativa. Logo, essas observações são dirigidas aos comunicadores. Se ao povo é permitido pensar que gramática é alguma coisa de comer, o mesmo não se pode perdoar aos profissionais do texto (quer seja escrito, quer seja ou oral).

REPÓRTER EXUMA “POMPA E CIRCUNSTÂNCIA”

Se querem saber, tive toda uma tarde de televisão no primeiro dia do ano, quando assisti de cabo a rabo à solenidade de  posse da presidenta Dilma. Ótimo exercício para quem, como eu, acha que há formas mais racionais de empregar o tempo do que gastá-lo diante da telinha. Mas lhes digo e provo que valeu a pena ter persistido: ouvi uma repórter dizer que a posse tinha “muita pompa e muita circunstância”, o que quase me faz desistir dessa incursão pela máquina de fazer doido (a expressão foi cunhada pelo colunista Stanislaw Ponte Preta – e tenho a impressão de que sou o único indivíduo sobre a terra que ainda a usa em relação à tevê).

PARA FALAR PORTUGUÊS, OUSADIA É PRECISO

Ouvi também uma discussão sobre presidente/presidenta, com um repórter dizendo que “ousaria” chamar a nova mandatária de presidenta, até que seu diretor de redação lhe puxasse as orelhas. Pois a outra banda da história, uma repórter, disse considerar a palavra presidenta “muito feia”, por isso preferia dizer “a presidente Dilma”. Ora, por quem me tomam? Então, é preciso “ousadia” para se falar português na tevê? Mas houve compensações, do ponto de vista da linguagem: descrevendo a multidão que enfrentava a chuva, Christina Lemos (foto), disse que o povo tomava “um banho de democracia”. Entusiasmado, quase bati palmas a trocadilho de tamanho bom gosto.

FOI MUITO BOM ESTAR VIVO PARA VER ISTO

Além do mais, fiz algumas descobertas. O texto do juramento poderia ser melhorado com um conectivo (se alguém quiser, a gente discute o caso), Sarney é desafinado. E a vice-primeira dama, hein? Afinadíssima! Dilma citou dois textos como “de um poeta da minha terra”, quando nada custava ter dito o nome do autor de Sagarana, o mestre João Guimarães Rosa. Ela chorou pouco; eu, muito. Ela chora para dentro; eu, para fora, decididamente. Vê-la passar em revista os representantes das forças que, em outra época, a perseguiram, prenderam e lhe arrancaram as unhas marcou um daqueles momentos que justificam o lugar-comum “Foi bom viver para ver isto”. Senti-me, sem intenção de concorrer com Christina Lemos, de alma lavada.

CHORO PELOS QUE TOMBARAM PELO CAMINHO

Também gostei muito da menção (duas vezes) aos “companheiros que tombaram pelo caminho”, a exemplo do jornalista Vladimir Herzog (foto). “Passar as tropas em revista”, creio, é só um ato simbólico, pois a presidenta (como, em geral, todas as autoridades civis) nada entende de disciplina militar. A “revista” serve apenas para mostrar que existe uma submissão das forças armadas à autoridade constituída, que tais forças estão sob o comando desta autoridade. Dona Dilma, que sobreviveu ao pau-de-arara, ao choque elétrico e a outras infamantes formas de tortura, é a nova comandante suprema das forças armadas brasileiras. Como nosso povo sofrido gosta de dizer, nada como um dia após o outro. Mas ainda há torturadores à solta.

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NO TEMPO DO SACI E DA MULA-SEM-CABEÇA

A publicidade brasileira tem sido responsabilizada por muitos crimes contra a linguagem e Deus sabe que nenhum tribunal seria suficientemente bondoso para absolvê-la da maioria deles. As acusações: abastardou a língua portuguesa, transgrediu as regras (mormente quanto à acentuação gráfica), enredou-se no objetivo do lucro capitalista e tudo transformou em mercadoria, tudo submeteu ao mercado e, com a conivência da mídia pouco pensante, promoveu intrusos, a exemplo do Halloween, hoje um alienígena integrado à cultura brasileira. Aproveito para dizer que venho do tempo da mula-sem-cabeça e do saci-pererê. Ou: brasileiro, profissão esperança.

MILILITRO FOI DEMITIDO SEM JUSTA CAUSA

Uma das invenções mais notáveis das agências foi o eme-éle em lugar do mililitro. A coisa nasceu de uma propaganda de refrigerante, que oferecia “tantos eme-éles a mais do que o concorrente”, criando-se essa excrescência hoje absorvida. Nada haveria de condenável, se chamássemos centímetro de cê-eme, quilo (quilograma) de cá-gê, e assim por diante. Mas como nenhuma pessoa de juízo se expressa dessa forma bizarra, a exceção que manda chamar mililitro de eme-éle se torna inteiramente fora de propósito, algo a ser usado pelas “vítimas” da mídia macaqueadora. Mas a propaganda também registrou momentos que estão na memória do público.

VARIG: ESTRELA BRASILEIRA NO CÉU AZUL

Tivemos o tio da sukita (quem se lembra?), o eterno Carlos Moreno (foto), da Bombril, a palavra brastemp como sinônimo de coisa boa, o primeiro sutiã que ninguém esquece (Valisère), a escovinha que quer ter um limpador de língua quando crescer (Colgate), João Gilberto cantando para a Brahma, a “vingança” do tio e tantos outros trabalhos memoráveis. Com saudades da Varig, lembramos aqui alguns desses momentos que fizeram a propaganda brasileira ser considerada uma das mais criativa do mundo, ao lado da americana e da inglesa. É pena que, com frequência, se descuide da norma culta da língua. Clique.

(O.C.)