Tempo de leitura: 5 minutos

PASSE LIVRE E A CONTRADIÇÃO ABERTA

Ousarme Citoaian | ousarmecitoaian@yahoo.com.br
1SimancaOs tipos mais conservadores, que querem tratar os movimentos sociais na pancada, uniram-se aos progressistas, em apoio ao Movimento Passe Livre (MPL), escancarando uma contradição. Coerente mesmo foram as PMs da Bahia e de São Paulo, fazendo o que é da sua tradição fazer: baixar o pau (v. charge de Simanca). Cientistas sociais e palpiteiros em geral estão incertos quanto ao que pretende a massa: vagamente, menos corrupção, mais educação (quase criei uma “palavra de ordem”), mais saúde pública, menos futebol, mais seriedade com o dinheiro público, menos safadeza…  No atacado, todos aprovamos esta pauta, mas falta a ela o varejo, o foco concreto e claro.

________________

Movimento (ainda) simpático à direita
Tem sido uma festa protestar contra tais coisas (e ainda a sogra chata, o vizinho ranzinza e o preço do tomate), mas não me divirto tanto. Entendo ser este um movimento de esquerda (se me permitem usar a velha classificação francesa, para mim ainda válida). E a direita não tarda a tratar essa turma como trata índios, sem-terra e semelhantes, todos incluídos na vasta lista de “baderneiros”. Por menos disso ela já derrubou um presidente e pôs o Brasil em “ordem unida” durante 21 anos, enquanto arrancava as unhas dos descontentes. Freado o aumento das tarifas, o MPL, ao voltar às ruas (espero que volte), deverá focar-se em um dos muitos problemas nacionais.
COMENTE! » |

“DOR DE AMOR DÓI MAIS DO QUE BURSITE”

3Dor de amorO verbo amar transitivo indireto (com a preposição “a”) foi, em tempo que longe vai, exclusivo jargão religioso. “Amar a Deus sobre todas as coisas”, está grafado na tábua. A gramática quer, em relação a coisas e pessoas, o verbo não preposicionado. Amar era também de uso menos extenso: homens amavam mulheres, mulheres amavam homens, homens e mulheres amavam suas mães, estas os amavam sem medidas… Os para-choques repetiam uma frase produzida por alguém de coração dilacerado (ou vítima de crônica subliteratura): “Amor só de mãe!” – ai que me embriago de tanta poesia! Compreende-se. Quem leu Rubem Braga sabe que “dor de amor dói mais do que bursite”.
______________
Velha calça desbotada ou coisa assim
Voltando ao amar transitivo direto, diga-se que ele foi “democratizado”. Amavam-se pessoas, hoje se ama praia, macarrão com queijo, sorvete de coco, carro novo, a velha calça desbotada e, de moto, ama-se o vento na cara. São modismos que o tempo nos traz: conheço uma jovem senhora que ama seu iPhone de recentíssima geração (será isto o chamado sexo virtual que nunca entendi?). A boa linguagem, pela qual poucos na mídia ainda se interessam, recomenda que se goste das coisas citadas acima, sendo vedado amá-las. Se, por acaso, alguém não sabe a diferença entre gostar e amar, que tente beijar uma máquina. Adianto-lhes que não funciona, a não ser que seja uma… “máquina”.
______________
5Batata fritaAdoração ao arroxa e à batata frita
Cartola, em licença poética escreveu: “Não quero mais amar a ninguém…”, e caiu em “erro”, por usar a forma “religiosa” (“Não quero mais amar ninguém”, diz a norma). E quase tudo que foi dito vale para o verbo adorar, que igualmente nos remete à igreja. Adorar só a Deus e signos sagrados, era assim que era. Depois, o povo, que não está nem aí para gramáticas e gramáticos, mudou a regra. Hoje, com todo respeito, adora-se batata frita, novela de tevê, show de arrocha e de dupla “caipira”. Pelo sentido “clássico” do termo, tem-se a ideia de que o maluco se ajoelha diante do pacote de fritas e também genuflectido assiste à novela das nove. Medonhos tempos, estes.

QUEM DERA QUE ESSA RUA FOSSE MINHA!…

As ruas nos falam de dados momentos, lembranças que ficaram. “Se essa rua fosse minha/ eu mandava ladrilhar/ com pedrinhas de brilhante/ só pra ver meu bem passar”, diz o antigo frevo Vassourinhas. Antônio Maria (“o bom Maria”, como o chamava Vinícius, seu colega de quarto), morando no Rio e, ferido de saudades da terrinha, abre seu Frevo nº 3 dizendo: “Sou do Recife, com orgulho e com saudade”, para depois introduzir “Rua antiga da Harmonia,/ da Saudade, da Amizade e da União…/ São lembranças noite e dia”. Em poucos versos, quatro ruas de nomes sonoros, que mexem com os sentimentos da gente: harmonia, saudade, amizade, união.
_______________
7AlceuMachado de Assis fala das ruas do Rio

Meu endereço em Buerarema era Manuel Vitorino, 6 (esquina com Siqueira Campos) – mania que as pessoas têm por vultos estranhos à cidade. Isso mudou um pouco. Já temos na antiga Macuco as ruas Paulo Portela, Manuel Lins, Pastor Freitas – personagens locais e já mortos, comme il faut. Mas eu queria falar era do fascínio que os nomes de ruas exercem sobre mim e, pelo que vejo, em vários autores. Lembro aqui de três deles, tocando o tema: Machado de Assis, Antônio Maria e Alceu Valença. Nos contos de Machado é possível saber muito do velho Rio, pelas ruas que o mestre cita: Larga de S. Joaquim, da Alfândega, do Lavradio, da Quitanda e, naturalmente, do Ouvidor.

________________

Um amor que sumiu nas ruas do Recife

“Sob uma chuvinha miúda, triste e cortante, como no enterro de Brás Cubas, o menino passeia sua melancolia por estas ruas que, transeuntes apressados sequer suspeitam, lhe pertenceram um dia. E chora as mudanças: mudou a cidade, mudaram os tempos, mudou ele, que ficou depressivo e meio adulto, morreu de velha a caramboleira, silenciaram os sabiás e bem-te-vis da infância que se foi” (Antônio Lopes: Luz sobre a memória – Agora Editoria Gráfica/1999). Perdidão da Silva, Alceu Valença parece procurar seu amor sumido nas ruas do Sol, da Aurora, da Matriz, das Ninfas, da Boa Viagem, da Soledade – mas como sempre acontece em casos semelhantes, o esforço é vão.

(O.C.)

Tempo de leitura: 5 minutos

MÚSICA, PODEROSO INSTRUMENTO DIDÁTICO

Ousarme Citoaian | ousarmecitoaian@yahoo.com.br
1PalmatóriaA música é tão poderoso instrumento didático que com as professoras de antanho (em geral, leigas, mas dedicadas), aprendia-se aritmética cantando: “Dois e dois, quatro; quatro e dois, seis…” (se a gentil leitora duvida, pergunte a seu bisavô – e ele cantará, mesmo desafinado). Ressalte-se que quando o sujeito errava, quem “cantava” era a palmatória! Os masoquista diriam, com ar saudoso e olhar perdido no passado: “Bons tempos, aqueles!” Fiz um introito pra dizer que certos versos de mau gosto grudam na gente, sobretudo quando são cantados. E os exemplos são muitos. Lembram-se do “Melhoral, melhoral, é melhor e não faz mal”? Ridículo, como texto, mas grudento feito goma arábica (atenção avós!).

________________

2 Dalva de OLiveiraOs demônios dentro de nós adormecidos

“Mamãe eu quero” (Jararaca-Vicente Paiva) nasceu nos anos trinta e é ouvida até hoje, no seu abobalhado “Mamãe eu quero mamar”– e seria fácil citar outras. Uma de minhas preferidas é a patética Que será?, de Marino Pinto e Mauro Rossi, criada por Dalva de Oliveira (e com  uma regravação dispensável de uma cantora chamada Ana Carolina). A canção carrega no seu mau gosto um questionamento eterno: “Que será/da luz difusa do abajur lilás/se nunca mais vier a iluminar/outras noites iguais?”.  Ah, aquela “luz difusa do abajur lilás”!…  É verso suficientemente eficaz em sua breguice para despertar demônios dentro de nós adormecidos em épocas que (feliz ou infelizmente) jamais voltarão. Não haverá noites iguais àquelas.
COMENTE » |

(ENTRE PARÊNTESES)

Vejo aqui no jornal que um auxiliar do bicheiro Carlinhos Cachoeira, já cansado de andar por aí sem ser molestado, resolveu entregar-se às autoridades. Diz ainda a notícia que um advogado, com a devida procuração em punho, negociou com a Polícia Federal “os termos da apresentação” do referido indivíduo. É curioso o vasto mundo brasileiro: cidadãos, principalmente se integram o grupo dos três “pês” (pobres, pretos e pardos), apanham da polícia por qualquer dá cá aquela palha, enquanto bandidos notórios têm advogados caros, são presos apenas quando querem e ainda exigem “condições” para se entregar. Fico pensando se esta não é mais uma mentira da imprensa, do que o poder tanto se queixa…

QUEM ALISOU OS BANCOS ESCOLARES SABE

“Choveu forte no Rio de Janeiro”, diz um jornal, como para não me deixar esquecido dessa recente salada linguística que a mídia tem patrocinado. Outros setores absorveram a anomalia: “treinar forte” (esportes), “investir forte” (economia) – e por aí vai. Confunde-se adjetivo com advérbio da mesma forma que Corpus Christi com habeas corpus. Todos os que alisaram os bancos escolares (e tiveram professores minimamente preparados) sabem que estas duas categorias são diferentes, com funções diferentes. De forma sumária (falecem-me condições para aprofundar o tema), adjetivo qualifica substantivo; advérbio modifica verbo.
_________________

Compromisso da mídia com a norma culta

Entende-se que chover “pede” advérbio, não adjetivo; por isso, “Choveu fortemente…” seria a forma adequada, em língua portuguesa, deixando-se o “Choveu forte…” para esse dialeto que falam por aí. Pelo mesmo raciocínio, “treinar fortemente”, “investir fortemente” (e “trabalhar arduamente”, “estudar incansavelmente”) etc. Não há de faltar quem esgrima o manjado argumento do dinamismo da língua. E eu lhes direi, no entanto, que esses fenômenos são muito bem-vindos ao coloquial, mas inaceitáveis na chamada norma culta – e é com esta o compromisso da (boa) mídia, pouco importa que seja jornal, rádio, tevê ou blog.
COMENTE » |

QUATRO MÚSICOS QUE SE FORMARAM EM CASA

6 Dizzy GuillespieWynton Marshalis é de 1961, por isso é menino em relação à corrente mais festejada (mainstream) do trompete de jazz (Armstrong, Davis, Chet Baker, Clifford Brown, Gillespie, Fred Hubbard, Arturo Sandoval), mas é um dos mais festejados pela crítica, que o considera responsável pelo retorno do jazz ao lugar merecido. Filho de um músico que mais ensinava do que tocava, ele voltou-se para a arte desde criança, em sua terra natal, Nova Orleans, e mais tarde estudou regularmente numa sofisticada escola de Nova Iorque. Aplicado aluno de primeiro ano, impressionou o baterista Art Blakey e logo foi tocar no celeiro de estrelas que era o Jazz Messengers daquele. Mr. Marshalis, le père, era professor de verdade, tendo formado em casa quatro músicos: Wynton (trompete), Branford (sax), Delfeayo (trombone) e Jason (bateria).
_______________

Um abraço no jazz, outro no clássico

Aos vinte anos, Wynton já tinha seu próprio quinteto e excursionava pelos EUA, tocando em clubes de jazz, festivais e concertos. Seu grupo participou, na época, de homenagem prestada ao pianista Thelonious Monk, em Nova Iorque. Após essa experiência, “faz” a Europa e o Japão, depois regressa a Londres, para gravar seu primeiro disco, de peças clássicas, incluindo Haydn. Wynton Marshalis se manteve fiel à fórmula jazz e clássicos: aos 24 anos torna-se o primeiro músico instrumental a receber dois Grammy ao mesmo tempo – um na categoria jazz e outra na categoria de música erudita, nos dois casos, como melhor solista. Em 1997 tornou-se o primeiro músico de jazz a receber o Pulitzer, pela autoria de Blood on the fields, sobre a vida dos escravos norte-americanos. Foi eleito membro honorário da England´s Royal Academy of Music.
________________

8 Boston PopsViolinos: estranhos no ninho ao jazz

Em 1984, Wynton Marshalis e a não menos famosa Boston Pops Orchestra acompanham a diva Sarah Vaughan na gravação de alguns standards, entre eles o inebriante Autumn leaves, Body and soul e September song. Observe-se na faixa que selecionamos (September song) a discrição com que Wynton se comporta. Arrisco-me a dizer que ele faz suas intervenções com extremo cuidado, evitando que o trompete se saliente. O músico premiado meio que se rende à grandeza da estrela, sem nenhum acorde que nos faça suspeitar de que ele quer roubar a cena. Mas não resisto a dizer, mesmo sujeito a pedradas, que a Boston Pops é, para este caso, inteiramente dispensável: cordas não fazem falta no ninho do jazz, a quem bastam piano, baixo e bateria e um metal de responsabilidade.

(O.C.)