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Eduardo Estevam | eduardoestevame@hotmail.com
O último 28 de julho marcou abriu a contagem para o centenário da cidade de Itabuna. Até o próximo ato comemorativo, muitas produções escritas ainda estão por vir: textos jornalísticos, trabalhos científicos, ensaios, artigos, debates, curiosidades e matérias especiais. No entanto, creio que nenhuma dessas produções atentará para um fato histórico singular da cidade: a existência de um Remanescente Quilombola.
A Constituição de 1988, no artigo 68 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, conferiu direitos a todas as Comunidades Quilombolas reconhecidas pela Fundação Cultural Palmares (órgão ligado ao Ministério da Cultura), sendo o principal deles o título de posse das terras.
Estudos científicos de matrizes cartográfica, histórica, arqueológica e geográfica, realizados pelos mais diferentes pesquisadores e instituições, conferiram à Itamaracá o estatuto de Quilombo no século XIX, e, na história recente, a condição de Remanescente Quilombola. Silva Campos, que realizou uma das mais vastas pesquisas sobre Ilhéus e a região, já mencionava, em “Crônicas da Capitania de Ilhéus”, os “ataques” realizados por Quilombolas na comunidade de Ferradas. Atualmente, Rafael Sanzo, pesquisador da Universidade de Brasília, e o grupo de estudos Geografar, da Universidade Federal da Bahia, caracterizam Itamaracá como Remanescente Quilombola.
Por meio de pesquisas que realizei no campo da memória e da pós-memória, na comunidade de Itamaracá, em 2003, foi possível evidenciar, através de relatos orais de alguns moradores, a existência de vestígios materiais de engenho de farinha e, até mesmo, as lembranças dos cantos em língua bantu que netos ouviam de seus avós negros, no cotidiano das atividades domésticas.
A cidade de Itabuna teve sua emancipação política em 1910, vinte e dois anos após a abolição oficial da escravatura, em um período de plena efervescência da produção cacaueira. Nesses anos, já não era mais socialmente “moral” advogar ou admitir que houve mão-de-obra escravizada na lavoura cacaueira no século XIX. A elite coronelística e produtora de cacau
sempre procurou negar o uso do trabalho escravo em suas fazendas.
Nas Américas, o Brasil foi o país que mais importou africanos na condição de escravizados. Esses sujeitos povoaram e participaram do processo de colonização em todo o território brasileiro, ao contrário do que ocorreu nos Estados Unidos, onde os africanos se concentraram apenas em sua parte meridional.
No Brasil, onde houve escravidão, houve resistência escrava. A resistência resultou na criação de espaços para viver, brincar, dançar, produzir, comercializar, jogar capoeira, enfim, reproduzir os modos de vida dos escravizados, e esses territórios ficaram conhecidos como
Quilombos.
A experiência histórica de Itamaracá não é apenas atinente aos afrodescendentes, mas ao conjunto social da sociedade itabunense, pois tem em sua formação a presença ativa de negros e negras refugiados do sistema escravista, construindo um território negro que dialogava com a cidade, repleto de significado político e cultural.
Enfim, desde a década de 80, estudos minuciosos colocam Itamaracá no rol dos territórios quilombolas que exerceram forte influência no contexto regional. Desde então, há um grande silêncio na imprensa local e nos trabalhos acadêmicos. Se, do ponto de vista político das relações étnico-raciais, tais evidências históricas apontassem para a existência de uma colônia de imigrantes europeus, será que esse mesmo silêncio se perpetuaria?
Relacionar Itamaracá ao conjunto do processo histórico da formação de Itabuna, em seus aspectos urbanizador e étnico, significa aceitarmos a presença social de negros e negras refugiados da escravidão, e, ao mesmo tempo, desmistificar a centralidade de sergipanos e cacauiltores na história social da cidade de Itabuna.
Ademais, não se deve apenas reconhecer a sua importância histórica. Ações políticas precisam ser feitas para romper de vez com o isolamento social que as sucessivas administrações públicas dedicaram à Vila. O reconhecimento oficial da Vila de Itamaracá como Remanescente Quilombola constitui um direito sócio-étnico-racial dos afrodescendentes itabunenses.
EDUARDO ANTONIO ESTEVAM SANTOS é mestre em História Social, coordenador do Núcleo de Estudos Afrodescendentes e Indígenas da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e professor das redes estadual e municipal de ensino público.