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A “MASCULINIZAÇÃO” DE DEUS

Ousarme Citoaian
Uma questão raramente tocada, por ser muito “sensível”, é o fato de Deus ser tratado por Ele. Colho a referência no polêmico Deus, um delírio (Companhia das Letras) do ateu Richard Dawkins, professor da Universidade da Califórnia. Masculinizar a divindade – e agora sou eu a conjeturar – indica que o homem a “carimbou” à sua imagem e semelhança, mantendo a mulher fora do processo divinizador. Deus não tem sexo, não é macho nem fêmea, Ele nem Ela. Mas a tal superioridade do homem se fez pesar – além de que nossa língua não possui o gênero neutro. Se o tivesse, por legítima herança do latim, este problema estaria resolvido.

A GRAMÁTICA PEGA O MACHISMO

As igrejas em geral, ao que tudo indica, pregam abertamente o machismo: a mulher tem que seguir o homem. O Código Civil adotou algo semelhante: o homem é o cabeça do casal. A gramática portuguesa seguiu o modelo  e impôs à mulher uma arbitrária superioridade masculina. É o caso de presidenta, já referido aqui. Temos vereadoras, deputadas, senadoras, escritoras, reitoras, mas o alto cargo de presidente é vedado às mulheres. Elas são “a presidente”,  nem que isso fira nossos ouvidos. E o movimento feminista aceita o preconceito, enquanto, alienadamente, gasta energia ao pregar bobagens.

SARNEY, QUEM DIRIA, FOI PRECURSOR

Alguns guetos esboçam tímida reação a esse machismo ao explicitar coisinhas como “todos e todas”. Não creio que invenções deste tipo sejam eficazes para reverter a odiosa tradição gramatical – sem contar que elas não encontram apoio na língua culta. Por esse caminho, o conjunto em que há os dois gêneros exigiria que o falante ou escrevente fosse bem específico: todos e todas, homens e mulheres, eles e elas. É conveniente lembrar quem primeiro utilizou esse caminho: o então presidente José Sarney, com o “brasileiros e brasileiras” que abria seus discursos. Gênese suspeita, portanto.

TODOS E TODAS JUNTOS E JUNTAS

É preciso reformar a linguagem, e não me perguntem como. Só sei que usar expressões do tipo “todos e todas”, me parece, como bandeira de luta da mulher, tão tolo quanto a queima de sutiãs, nos anos 60. Seria divertido “traduzir” para essa estranha língua certas formulações clássicas:  O homem é lobo do homem ficaria O homem e a mulher são lobos do homem e da mulher; o euclidiano O sertanejo é, antes de tudo, um forte seria O sertanejo e a sertaneja são, antes de tudo, uns e umas fortes; e o “hino” da seleção brasileira vai ser entoado como Todos e todas juntos e juntas vamos/pra frente, Brasil, Brasil! Falar bobagens assim ridiculariza o tema, invés de levá-lo à meditação.

FUGINDO DA BRIGA, EM VÃO

“Constantes apagões geram insatisfações…”, diz um dos principais jornais diários de Itabuna, logo na primeira página, como se quisesse me agredir. Passei ao largo. Quando um não quer, dois não brigam. Páginas adiante, numa matéria sobre vacinação contra gripe, outra pedrada do mesmo gênero: “A prevenção com a intensificação da higienização das mãos…” .  Aí, compreendamos, é abusar da paciência do leitor. Trata-se da clássica doença do estilo chamada eco. Qualquer um percebe a incômoda presença dele, com a simples leitura do texto. Em voz alta, se necessário se fizer.

DA PREGUIÇA À DESATENÇÃO

Autoridade em português e latim Napoleão Mendes de Almeida (foto) coloca este caso na categoria dos vícios de linguagem – “construções que deturpam, desvirtuam ou dificultam a manifestação do pensamento, seja pelo desconhecimento das normas cultas, seja pelo descuido do emissor”. Nas redações, erra-se mais por descuido e preguiça do que por desconhecimento de regras elementares. Todo mundo que viveu ao menos um semestre do curso médio sabe identificar as qualidades e os vícios do estilo. Se não segue as regras é, em geral, por falta de cuidado ou amor à transgressão.

UM HOMEOPEDEUTO DE VIEIRA

Na poesia, essa repetição chama-se rima, todos sabemos. Na prosa (só agora sei) tem o estranho nome de homeopedeuto. E fico sabendo que o tal homeopedeuto, em mãos hábeis, dá ao discurso uma sonoridade agradável. No Sermão de Santo Estêvão, Vieira diz que o santo “antes obrava como mestre, agora como mártir”, e em seguida arremata sua oração com este homeopedeuto de rara elegância: “A sapiência invencível falando, e a paciência calando, também invencível.” O velho Antônio, com todo respeito, sabia das coisas! Quem quiser mais Vieira compulse Jorge de Souza Araujo (foto) em Profecias morenas – discurso do eu e da pátria em Antônio Vieira.

DA ARTE DE ESCREVER BEM

A imprensa brasileira já foi muito boa de conteúdo literário. A conclusão me vem não por saudosismo, mas de forma objetiva, ao ver a série de  livros As obras-primas que poucos leram (Editora Record), organizada pela jornalista e escritora Heloísa Seixas (foto). São quatro volumes, dos quais eu tenho os dois primeiros. É coisa publicada na revista Manchete, no começo dos anos setenta, quando a revista tinha colaboradores como Otto Maria Carpeaux, Carlos Heitor Cony, Paulo Mendes Campos, Lêdo Ivo, R. Magalhães Jr., Josué Montello, Ruy Castro (casado com a organizadora), Joel Silveira e José Lino Grünewald.  Diante  da aridez  dos veículos de hoje, parece mentira que o setor já tenha publicado tantos textos de altíssimo nível.

DE GRACILIANO RAMOS A MARK TWAIN

As obras-primas é formada de artigos sobre livros muito citadas e, supõe-se, pouco lidos – sendo o título da coletânea o mesmo da seção da Manchete. Além de romances e contos/novelas (nos dois volumes iniciais), a lista contempla poesia, teatro e ensaio. Lá estão, com suas obras dissecadas e ao alcance do público não especializado (no qual me incluo), Guimarães Rosa, Mark Twain, Tchecov, Eça de Queiroz, José Lins do Rego, Faulkner, Conan Doyle, Stendhal, Heminguay, Monteiro Lobato, Scott Fitzgerald, Flaubert, Victor Hugo, Érico Veríssimo (foto), André Gide, Edgar Allan Poe, Graciliano Ramos – e mais não digo para não encher de água a boca do leitor. Um curso compacto de literatura.

ANOMIA E AGRAMATIZAÇÃO

A professora Olgária Matos (foto), da Universidade Federal de São Paulo, não gostou do Acordo Ortográfico. Por isso, escreveu no site Carta Maior: “A mais recente reforma ortográfica do português no Brasil subordina a língua às contingências do mercado e à agramaticalidade de sua fala oral, rompendo o equilíbrio entre a anomia e agramatização que caracterizam uma língua viva. Expressionista antes da reforma, ‘idéia’ ou ‘ idêia’, a pronúncia diferenciava o português do Brasil e de Portugal, suscitando o metron de seu estranhamento e de seu parentesco, revelador do ethos de um povo. Assim, diferentemente de unificar a palavra escrita, a reforma neutraliza a língua falada, despersonalizando-a”. Bom exemplo de pedantismo acadêmico. Sem ofensas.

ESPERANÇAS ENCONTRADAS

Olgária Matos é professora de Filosofia, com vários livros publicados. O último, Discretas esperanças, é um ensaio sobre Ética, dignidade humana e o papel da imprensa. Trata-se de uma estudiosa com grande respeito no meio acadêmico, devido à profundidade com que aborda os temas que escolhe. Nesse livro, por exemplo, ela mobiliza estudos que mostram ao leitor o valor da Ética, a partir do primeiro registro da palavra, em Homero, com o surpreendente sentido de “morada do homem”, chegando à reflexão e à crítica sobre o sentido atual do termo. Para ela, no escuro da globalização, haveria, como um farol, esperanças. Discretas, é claro.

A GARGANTA COMO INSTRUMENTO

A voz dela é um instrumento musical. É difícil quem leu mais de duas resenhas sobre Billie Holiday, Sarah Vaughan ou Ella Fitzgerald não conhecer esta expressão ou equivalente. Um lugar-comum indispensável. Sarah Vaughan era considerada uma das três jóias do vocal jazzístico moderno. Billie e Ella eram as outras duas, claro. Dizem que há alguns anos ela não era mais uma típica cantora de jazz, pois as gravadoras fazem seus contratados gravar o que (supostamente) vende, sem outras preocupações. E no Brasil não é diferente : Ângela Maria, Cauby Peixoto e Alcione (foto) muitas vezes gravaram irritantes bobagens sonoras.

JAZZ DA CABEÇA AOS SAPATOS

Neste Round midnight, de 1987, Sarah realimenta o lugar-comum.  Numa leitura exclusiva de scats sings (ela usou a mesma técnica com a brasileira Garota de Ipanema), minha vocalista preferida entra num “duelo” arrepiante com Dizzy Gillespie (foto),  e mostra que, afinal de contas, estava certo quem inventou a lenda do gogó que toca. Ela, de verdade, toca a garganta, como se fosse um sax tenor.  Por essa época, dizia-se que a cantora já dera o melhor de si. O vídeo (feito três anos antes da morte, em 1990) desmente os críticos: a divina Sarah Vaughan é uma cantora de jazz, dos cabelos à capa fixa do salto do sapato. E em absoluta forma.
</span><strong><span style=”color: #ffffff;”> </span></strong></div> <h3 style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>E FRED JORGE CRIOU CELLY CAMPELLO!</span></h3> <div style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>No auge do sucesso, em 1965, a música teve uma versão no Brasil, gravada por Agnaldo Timóteo. Como costuma ocorrer com as

PRA VER/OUVIR DE JOELHOS

Round midnight (também título de um filme rapidamente referido aqui), tema de Thelonious Monk, foi gravado (além de Monk e Sarah Vaughan) por Miles Davis, Carmen McRae, Ella Fitzgerald, Anita O´Day, Cootie Williams, Wes Montgomery (foto), Cassandra Wilson, Charlie Parker e mais “n” intérpretes. É possível que alguém não conheça este vídeo. Então, é aproveitar para ter o direito de, mais tarde, dizer aos netos que viu Sarah Vaughan e Dizzy Guillespie tocando juntos. Ele tocava trompete; ela, gogó. Se quiser, pode se ajoelhar. E no fim, bater palmas.

(O.C.)

5 respostas

  1. Antes de mais nada, insta salientar o meu prazer sempre renovado em ler sua coluna aqui neste sítio. Mas creio que pelo afã diuturno que padecem aquelas mentes sempre requisitadas, incorre em equívoco o douto colunista ao afirmar que o Código Civil apregoa ser o homem a cabeça do casal. Assim era no vetusto código de 1916, um monumento ao Direito Civil, gize-se, que em seu art. 233 assim rezava: “O marido é o chefe da sociedade conjugal, função que exerce com a colaboração da mulher, no interesse comum do casal e dos filhos.”. Mas o novex Código Civil de 2002 muda a ideia de pátrio poder, consagrando a de poder familiar, assim dispondo em seu art. 1.631, verbis: “Durante o casamento e a união estável, compete o poder familiar aos pais; na falta ou impedimento de um deles, o outro o exercerá com exclusividade.”

    Nada que desabone esta agradável e elegante coluna, a qual ansiosamente sempre espero ser publicada. Louvo-lhe a maneira subida e escorreita de escrever e informar.

  2. Caro Diego:
    Provavelmente, me expressei mal. Não quis dizer que a figura de “cabeça do casal” ainda vige, mas me referir à intenção, à filosofia que a implantou, como uma forma de servidão feminina. Creio que, além do Código Civil, a Constituição Federal ajuda a limitar esse poder masculino.
    Aliás, pesquisa recente mostra que, ao menos na Bahia, mais da metade das famílias é provida pela mulher – transformada, na prática, em responsável pela família. Isto ajudado pelos programas de transferência de renda, que são dirigidos ao lado feminino do casal (teme-se que, na mão do marido, o Bolsa Família, por exemplo, se transforme em cachaça, não em feijão, farinha e carne). As mudanças estão sendo processadas, sim, embora de maneira muito lenta.
    Meus agradecimentos pelo comentário, absolutamente pertinente, embora os elogios à coluna me tenham feito um pouquinho mais gordo…

  3. Andei pensando sobre isso, acho que é bobagem… me incomoda a todo momento em uma palestra ou reunião “boa tarde a todos e a todas…” chato!! Desnecessário e para mim não quer dizer nada.

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