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ONDE O VERSO “CRISTALINO” DE BILAC?

Ousarme Citoaian
Certa vez, falamos que a boa linguagem tem alguma feição “matemática”.  Há uns 300 anos, quando passei pela escola pública, estudava-se uma coisa chamada análise lógica – e é por aí que, mesmo aos trancos e barrancos, caminho: a frase bem feita há de ser lógica, sim, racional, cartesiana, precisa, clara – se possível, cristalina, saindo da oficina sem um defeito, conforme ensinou Bilac (foto). Por isso me chamou a atenção a fala do novo mandatário da cooperativa que administra o Hospital de Base de Itabuna. “A população pode esperar um atendimento extremamente humanizado, porque quando a fatalidade bate à porta não manda avisar”, disse ele – para meu completo espanto.

A CONJUNÇÃO EXPLICATIVA… EXPLICA!

“Porque” é conjunção. Logo, liga ideias que se complementam logicamente: “Não foi ao cinema, porque não tinha dinheiro”. O dirigente poderia ter dito “… porque haverá investimento nesta área”, ou “… porque nós vamos contratar pessoal especializado”, ou “… porque este é um objetivo do prefeito” – e por aí vai, em quase infinitas possibilidades. Mas “… porque quando a fatalidade bate à porta…” não passa de abjeta subliteratura. É quase como um cartola dizendo que o time vai ganhar “porque a torcida merece”. O que leva o time a ganhar não é a vontade da torcida, mas outros fatores (nem sempre lícitos, é verdade). A fatalidade bater ou não à porta não influencia nível do atendimento.

DIFERENÇA ENTRE A PEDRADA E O DESCUIDO

E antes que me esfreguem nas fuças as elipses e outras figuras que costumam acobertar as derrapagens linguísticas, valho-me de um exemplo colhido no próprio autor, na mesma solenidade, e também divulgado pela mídia. Falando de o estado passar a cobrir as despesas do hospital, ele disse, em bom português: “Mas o estado não pode fazer isso, porque o Hospital de Base é do município”. Mais adiante, o mesmo dirigente afirma que a Prefeitura de Itabuna nada pode fazer para melhorar a situação, porque não tem suporte financeiro”. Duas frases que nos fazem pensar que a inicial não foi uma pedrada, mas mero descuido. A lógica chegou atrasada, mas chegou.

BRASIL, DITADURA, REDE GLOBO, COLLOR

As eleições de 1989, após mais de duas décadas de ditadura militar, criaram no brasileiro uma motivação nunca vista antes nem depois. Ainda estávamos sob o efeito da campanha “Eu quero votar pra presidente” (Diretas já), e os eleitores mais à esquerda se sentiam de alma lavada, estrela na lapela e, na ponta da língua, o jingle de Hilton Acioly (Lula lá/ brilha uma estrela/ Lula lá/ cresce a esperança…). Aí, deu Collor, com a luxuosa ajuda da Rede Globo e quase tivemos de começar tudo de novo. Mas, mesmo com a eleição do dito caçador de marajás, “valeu a espera”: o Brasil não mais estava sob as botas do Exército. Dos males, o menor.

ELEIÇÃO COM PRESENÇA DE 22 CANDIDATOS

Foi uma eleição memorável, com embates candentes entre a direita e a esquerda, confrontos em que vários candidatos se sobressaíam. Tudo muito distante desse bom-mocismo a que assistimos, aos bocejos, em 2010. Desta vez, só Plínio de Arruda Sampaio (remanescente da velha escola) queria ver o circo pegar fogo; em 1989, todo mundo levava gasolina para o debate: Brizola, Lula, Covas, Maluf, Caiado, Collor, Ulisses Guimarães, Roberto Freire… Os novos (e não versados em política) dirão que minto. Mas digo e provo que havia nada menos do que 22 candidatos, o mais amplo leque ideológico representado. E (quase) todos tinham propostas.

COVAS “À ESPERA” DE ULISSES GUIMARÃES

Mário Covas dava uma coletiva em Ilhéus, respondia no limite da cortesia a todos que o interrogavam, até que o caldo foi entornado, quando um repórter lhe propôs a seguinte questão: “O candidato Ulisses Guimarães chega à região depois de amanhã, em campanha. O senhor pretende ficar aqui para conversar com ele e acertar algum tipo de composição?” Covas (foto), que tinha intolerância a bobagens, esteve para explodir. Contou até cinco, digeriu a asneira e disse, com seu vozeirão contido: “Dr. Ulisses e eu moramos em São Paulo e conversamos frequentemente. Se eu quiser falar com ele, atravesso a rua e falo. Não preciso ficar aqui dois dias esperando”. E encerrou a coletiva.

UMA ESTRANHA FORMA DE PERNOSTICISMO

Não sei em que circunstâncias, em que livro ou jornal conheci esta avaliação de Aurélio Buarque de Holanda, aquele mesmo (foto): a pior forma de pernosticismo que alguém pode ter é falar errado para ser agradável aos outros. Pois eu conheço gente que pratica a heresia da linguagem incorreta, para parecer “simples”. Quem estudou até a oitava série, pelo menos (e conservou a faculdade de discernir), sabe que, na linguagem, como na vida em geral, ser simples não é ser simplório. E simplicidade, é bom repetir, não é defeito, mas qualidade de escrever e falar. E de viver. Ser simples não é ser rasteiro.

É MUITO FEIO FAZER-SE DE ANALFABETO

A feira livre (um traço importante da cultura brasileira) é o local típico onde homens e mulheres se comunicam eficientemente, numa linguagem estranha à norma livresca. Mas as pessoas que “alisaram os bancos escolares” precisam honrar o investimento que receberam (às vezes um pouco à custa desses mesmos feirantes). E uma forma de responder ao tempo e dinheiro que consumiram na escola é falar corretamente, embora sem afetação e rebuscamento. Deficiência quanto à escolaridade adequada não é bonito – e mais feio ainda é alguém se travestir de analfabeto para atrair simpatia.

IGNORÂNCIA NÃO É DIREITO, É CASTIGO

Dito de outra forma, analfabetismo não é direito de ninguém; é castigo de muitos, patrocinado por governos que, ao longo do tempo, descobriram que a ignorância é poderoso instrumento de dominação. É uma espécie de camisa de força, algo que nos impede os movimentos e nos impele o olhar para o foco que interessa ao sistema. A ignorância das massas é programada pelos mais “sabidos”, ou empiricamente entendida pelo mais bisonho dos governantes como uma ferramenta de trabalho. Pessoas de melhor nível intelectual precisam ser humildes, não manipuladoras.

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SOLITÁRIO, ALMA MAGOADA, VIDA TRISTE

Minha vizinha comprou um aparelho de som (aquilo que nos últimos tempos a galera chama apenas de “um som”). Potente de não sei quantos decibéis. Ela é vidrada numa canção que fala de um homem solitário (parece que a companheira o mandou pastar – e teve lá suas razões), de “alma magoada, vida triste e abandonada” e que está tentando esquecer a sujeita. Mas o inferno são os outros: “Alguém da casa ao lado/ vive com o rádio ligado/e isso faz lembrar você”. É a tragédia do cara: toda vez que ele escuta uma besteira no rádio sente alimentada sua dor-de-cotovelo. Esta pérola, que de tanto escutar já decorei uma parte, chama-se, ironicamente, A casa ao lado.

“VOCÊ SEM MIM TAMBÉM ESTÁ NA SOLIDÃO”

Quis fazer uma notinha sobre este tipo de música, mas os jornalistas Daniel Thame e Ricardo Ribeiro, aqui mesmo no Pimenta, anteciparam o assunto – e eu, além de me recolher quando eles escrevem, vi que seus exemplos eram bem mais agressivos do que o meu. O repertório de minha vizinha, diga-se por motivo de justiça, não tem essa baixaria de botar a B… no pau, a mão naquilo ou aquilo na mão. Com ela é tudo família, puro romantismo, na base do “Você sem mim também está na solidão/ acho que é melhor te procurar”, ai Deus que eu morro! E não reclamem da salada pronominal, pois a um tipo assim ardente de paixão tudo é permitido, até mandar a gramática às favas.

NA ESTRADA, “CADA ESTRELA É UMA FLOR”

Tem emprego, a vizinha, graças a Deus. Assim, só em fins de semana, feriados e dias santificados ela encontra oportunidade de ligar sua potente aparelhagem e desfilar esse rosário de sofrimento amoroso rimando canção com coração. “É preciso cantar para alegrar acidade”, parece ser seu lema, acrescido de “E que tudo o mais vá pro inferno”. Eu, de minha parte, rezo e torço para que ela não perca o emprego, de sorte que venha a perturbar meu silêncio de segunda a sexta-feira. Para a vizinha (em represália), Daniel e Ricardo (em solidariedade), É de manhã, a primeira canção de Caetano (gravada por Betânia, a mana). Aqui, com Elizete, a divina.


(O.C.)

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(O.

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