A ROTINA É AMEAÇA AO AMOR E À LINGUAGEM
O CRUEL ABANDONO DO SIMPLES E DO LÓGICO
Há poucos dias, em mais uma podridão exposta de dirigentes públicos, um ex-governador acusou um deputado baiano com nobre pedigree de ter sido “ajudado” durante a campanha eleitoral, recebendo dinheiro indevido. Um dos maiores jornais da Bahia não deixou por menos e tascou em manchete a reposta do acusado: “ACM Neto garante que Arruda mente sobre doações”. Caso típico de emprego abusivo do verbo. Não se pode “garantir” que uma pessoa mente, embora se possa “dizer”, “afirmar”, ou algo semelhante. “ACM disse que…” é o caminho simples e lógico que a mídia parece ter abandonado. É a tal mecanização da linguagem.
GESTORES GARANTEM, GARANTEM, GARANTEM…
Pra não dizer que não falei de flores regionais, recolhi algumas por aqui – e confesso que foi tarefa das mais fáceis. Um semanário, falando do prefeito de Itabuna: “Ele garante que fará um governo de união”; esta, do noticiário oficial: “Capitão Azevedo garante reforma de praças”; outra, de um blog: “Azevedo é candidato à reeleição – Burgos é quem garante”. Na mesma linha andou o alcaide de Ilhéus: “Newton Lima garante apoio à reeleição de Ângela Souza”; ainda de Ilhéus: “Parceria garante transporte escolar para alunos do ensino médio da zona rural”. Em nenhum caso existe garantia efetiva do que se afirma.
CONSTRUÇÕES QUE CONSAGRAM… A SANDICE
A COLONIZAÇÃO E O “PLURAL APOSTROFADO”
CASTRO ALVES VIROU EXEMPLO DA EXCEÇÃO
Em tempos idos, era um festival de cinqüent´anos (então, com trema) su´alma, grand´homem, d´Oliveira,Sábado d´Aleluia e outros, sendo Castro Alves o campeão da modalidade. Tanto assim que sua poesia foi base para a exceção desse sinal gráfico, quando se quer beneficiar a métrica. Abro minha edição fac-similar da príncipe de Os escravos (Edições GRD/1983) e revejo “´Stamos em pleno mar!” – verso de O navio negreiro, que todos conhecem – e topo, ainda no primeiro canto, com “Bem feliz quem ali pode nest´hora/sentir d´este painel a majestade”. Como CD e DVD nada têm a ver com Castro Alves, deixe-se em paz o apóstrofo, grafando os plurais assim: CDs e DVDs. Sem descabidas concessões ao genitivo dos gringos.
NO JORNAL, A RIQUEZA DAS FRASES FEITAS
A MPB CONSOLIDA A LÍNGUA “BRASILEIRA”
DA “CENA DE SANGUE” À “VOLTA POR CIMA”
Paulo Vanzolini (foto) é de um nível cultural poucas vezes encontrado na MPB: além de médico (Universidade de São Paulo), é Doutor em Zoologia (Universidade de Harvard), sendo conhecido internacionalmente como especialista em répteis e em fauna da Amazônia, região que visitou várias vezes. Grande nome do samba de São Paulo (ao lado de Adoniran Barbosa), ele compôs cerca de 60 músicas, sendo que duas delas viraram clássicos: Ronda e Volta por cima. Esta última popularizou a expressão usada pelos brasileiros quando querem falar sobre a superação de uma crise: “levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”.
OBRA-PRIMA DE REGIONALISMO BRASILEIRO
Redescobri recentemente, com Renato Braz (e Bré na percussão), um tema de Vanzolini de que gosto muito, e que tem uma história curiosa: em 1967, o artista plástico Arnaldo Pedroso Horta, observando a “baianidade” do argentino Carybé (foto), que divulgava a capoeira em São Paulo, desafiou Vanzolini, dizendo que ele estava perdendo para o “gringo”, pois nunca fizera uma música de capoeira. “Amanhã te trago uma”, respondeu o compositor. Naquela mesma noite, Vanzolini fez “Capoeira do Arnaldo”, a bem-humorada saga de um retirante em busca da cidade grande, obra-prima de regionalismo brasileiro, com um tom nordestino jamais visto num músico paulista.
(O.C.)