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A ROTINA É AMEAÇA AO AMOR E À LINGUAGEM

Ousarme Citoaian
Um dos perigos que rondam o texto jornalístico é a mecanização da linguagem – expressão cunhada aqui e agora, creio.  Expliquemos, como Freud o faria: de tão repetido, o ato de redigir passa a ser feito sob fórmula, com quase as mesmas palavras. A linguagem, da mesma forma que o amor, detesta a rotina. Quem lê notícias com olhos críticos já observou com que freqüência determinados veículos repisam termos iguais (não confundir com estilo, que é coisa bem diversa de indigência vocabular). Um exemplo que grita é o verbo garantir. Atire a primeira pedra quem leu um noticiário hoje e não topou com esse verbo mal empregado.

O CRUEL ABANDONO DO SIMPLES E DO LÓGICO

Há poucos dias, em mais uma podridão exposta de dirigentes públicos, um ex-governador acusou um deputado baiano com nobre pedigree de ter sido “ajudado” durante a campanha eleitoral, recebendo dinheiro indevido. Um dos maiores jornais da Bahia não deixou por menos e tascou em manchete a reposta do acusado: “ACM Neto garante que Arruda mente sobre doações”. Caso típico de emprego abusivo do verbo. Não se pode “garantir” que uma pessoa mente, embora se possa “dizer”, “afirmar”, ou algo semelhante. “ACM disse que…” é o caminho simples e lógico que a mídia parece ter abandonado. É a tal mecanização da linguagem.

GESTORES GARANTEM, GARANTEM, GARANTEM…

Pra não dizer que não falei de flores regionais, recolhi algumas por aqui – e confesso que foi tarefa das mais fáceis. Um semanário, falando do prefeito de Itabuna: “Ele garante que fará um governo de união”; esta, do noticiário oficial: “Capitão Azevedo garante reforma de praças”; outra, de um blog: “Azevedo é candidato à reeleição – Burgos é quem garante”. Na mesma linha andou o alcaide de Ilhéus: “Newton Lima garante apoio à reeleição de Ângela Souza”; ainda de Ilhéus: “Parceria garante transporte escolar para alunos do ensino médio da zona rural”. Em nenhum caso existe garantia efetiva do que se afirma.

CONSTRUÇÕES QUE CONSAGRAM… A SANDICE

Se gostam dos exemplos, vamos ao governador – compreensivelmente o maior “garantidor” de todos – com amplo direito de aparecer mal no texto. Aqui, uns poucos exemplos desse abuso: “Wagner garante qualidade da educação”, “Wagner garante Mundial de Judô em 2012, aqui na Bahia”, “Wagner garante apoio ao Polo de Informática de Ilhéus”. E mais uma, para não perder a mão (desta vez não o governador ou o prefeito, mas uma entidade pouco mais impalpável): “Estado garante a construção da nova ponte Ilhéus-Pontal”. Não há de faltar quem defenda esta linguagem como “consagrada”. Só se for a consagração da sandice.

A COLONIZAÇÃO E O “PLURAL APOSTROFADO”

Temos encontrado na mídia regional, mais vezes do que pode agüentar a nossa santa paciência, uma estranha forma de plural para CD (aquele disquinho de música), abuso que vale também para seu primo rico, o DVD, mesmo que ambos venham com o olho tapado que identifica os salteadores dos sete mares: CD´s e DVD´s – um plural apostrofado (vou registrar copirraite para esta expressão), fórmula que imagino vir do inglês – “colonização” que se exerce sobre dez entre dez brasileiros mal informados. É uma saída meio rodrigueana, se me permitem o lugar-comum: bonitinha, mas ordinária. Apóstrofo, sinal gráfico comum em inglês e francês, só empregamos em português em poucos casos.

CASTRO ALVES VIROU EXEMPLO DA EXCEÇÃO

Em tempos idos, era um festival de cinqüent´anos (então, com trema) su´alma, grand´homem, d´Oliveira,Sábado d´Aleluia e outros, sendo Castro Alves o campeão da modalidade. Tanto assim que sua poesia foi base para a exceção desse sinal gráfico, quando se quer beneficiar a métrica. Abro minha edição fac-similar da príncipe de Os escravos (Edições GRD/1983) e revejo “´Stamos em pleno mar!” – verso de O navio negreiro, que todos conhecem – e topo, ainda no primeiro canto, com “Bem feliz quem ali pode nest´hora/sentir d´este painel a majestade”. Como CD e DVD nada têm a ver com Castro Alves, deixe-se em paz o apóstrofo, grafando os plurais assim: CDs e DVDs. Sem descabidas concessões ao genitivo dos gringos.

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NO JORNAL, A RIQUEZA DAS FRASES FEITAS

Jornal de Itabuna, falando em mudanças de comportamento do prefeito do município, afirma em editorial: “Ele sente que chegou o momento de dar a volta por cima”. Congênere de Salvador, noticiando o retorno de Adriano ao Brasil, criou este título de ótimo gosto: “A volta do boêmio”. Essas frases feitas colorem, enriquecem e embelezam a linguagem. Consagradas, mas ainda fora da relação de lugares-comuns, facilitam o entendimento da mensagem, ao fortificar uma das qualidades fundamentais do estilo, a simplicidade. As duas, como tantas outras, nasceram da MPB: a primeira é de Paulo Vanzolini (1924); a outra, de Adelino Moreira (1918-2002).

A MPB CONSOLIDA A LÍNGUA “BRASILEIRA”

Noel Rosa imortalizou “com que roupa”, para resumir uma situação de impossibilidade; “palpite infeliz”, que nos acode à mente, diante de algumas bobagens ouvidas, e “o x do problema”, largamente empregada diante de uma questão a resolver, um nó a desatar. Chico Buarque nos deu “roda viva”, simbolizando a rotina o dia a dia; Zé Dantas criou a imagem de que a esmola ao homem são o envergonha ou vicia; e não são poucas as vezes em que alguém se refere ao País, em tom irônico, como “Meu Brasil brasileiro” – isto é Ari Barroso. Estas poucas expressões saídas da memória mostram a MPB como importante componente da nossa cultura.

DA “CENA DE SANGUE” À “VOLTA POR CIMA”

Paulo Vanzolini (foto) é de um nível cultural poucas vezes encontrado na MPB: além de médico (Universidade de São Paulo), é Doutor em Zoologia (Universidade de Harvard), sendo conhecido internacionalmente como especialista em répteis e em fauna da Amazônia, região que visitou várias vezes. Grande nome do samba de São Paulo (ao lado de Adoniran Barbosa), ele compôs cerca de 60 músicas, sendo que duas delas viraram clássicos: Ronda e Volta por cima. Esta última popularizou a expressão usada pelos brasileiros quando querem falar sobre a superação de uma crise: “levanta, sacode a poeira e dá a volta por cima”.

OBRA-PRIMA DE REGIONALISMO BRASILEIRO

Redescobri recentemente, com Renato Braz (e Bré na percussão), um tema de Vanzolini de que gosto muito, e que tem uma história curiosa: em 1967, o artista plástico Arnaldo Pedroso Horta, observando a “baianidade” do argentino Carybé (foto), que divulgava a capoeira em São Paulo, desafiou Vanzolini, dizendo que ele estava perdendo para o “gringo”, pois nunca fizera uma música de capoeira. “Amanhã te trago uma”, respondeu o compositor. Naquela mesma noite, Vanzolini fez “Capoeira do Arnaldo”, a bem-humorada saga de um retirante em busca da cidade grande, obra-prima de regionalismo brasileiro, com um tom nordestino jamais visto num músico paulista.

(O.C.)

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