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Marcos-BandeiraMarcos Bandeira | marcos.bandeira@hotmail.com

A ausência de barracas dará lugar a praias desertas e sem qualquer aparato de segurança. Indaga-se: quem se aventurará a frequentar as praias nessas condições? O que se colocará em seu lugar? Há algum projeto? Com certeza, nada. É sombrio e desanimador o cenário.

“Quando o Direito ignora a realidade, a realidade se vinga, ignorando o Direito”.

George Ripert

Mais uma vez, vem à tona a possibilidade de a União destruir as barracas de praia de Ilhéus. Trata-se de uma decisão da Justiça Federal que tem prazo para ser executada. Não quero aqui discutir o aspecto da legalidade, da questão da imprescritibilidade e da impossibilidade de se usucapir as terras públicas. Gostaria apenas de refletir e reafirmar que o Direito não se restringe à aplicação fria e cega da lei. O tempo também se encarrega de edificar uma realidade que não pode ser ignorada pelos aplicadores da lei.

Os operadores de Direito, de uma forma geral, foram forjados no âmbito da cultura coimbrã, que sacralizava a devoção às leis. O juiz foi preparado para ser mero aplicador acrítico da lei.

Destarte, nesse cenário, segundo Dalmo Dallari,  as Faculdades de Direito passaram a ser a única fonte de produção do juiz “escravo da lei” e serviçal passivo dos fabricantes da lei. O axioma a ser seguido era “fora da lei não há possibilidade de decisão”.

O juiz, extremamente legalista e formalista, ignorava por completo eventuais valores éticos, postulados de justiça, exigências sociais e tudo que pudesse conduzir para um resultado justo e equitativo do processo. O que importava era a obediência cega à lei estabelecida.

Nesse sentido, o professor Antonio Henrique em sua obra “ Argumentação e Discurso Jurídico”, citando o tricolor Nelson Rodrigues explicita: Nelson Rodrigues disse que, no futebol, o pior cego é o que só vê a bola. Poder-se-ia acrescentar que, no Direito, o pior cego é o que só vê a lei. Sim, a lei há de ser vista, como também há de ser visto o contexto social, as circunstâncias que envolvem a lei, para preservar a dignidade humana.

As leis não possuem as respostas para todos os fenômenos jurídicos, porque o “legislador” não é onisciente e nem onipotente, como se os fatos passados, presentes e futuros, na sua integralidade, não pudessem lhe escapar ao controle, pelo menos em alguma particularidade. O juiz não mais pode ser um defensor intransigente da “regra”, agindo como se fosse um mero autômato e técnico do positivismo jurídico, aplicando o princípio da subsunção de forma acrítica, descontextualizada, sem que possa analisar criticamente o conteúdo da norma e exercer suas preferências axiológicas, no sentido de que possa atingir a justiça em cada caso que lhe é submetido.

A presente decisão de destruir as  barracas de Ilhéus parece se amoldar a essa exegese dogmática-positivista – sed lex dura lex – “ a lei é dura, mas é lei” , como assim dizer, inexorável. Todavia, já superamos filosoficamente o positivismo jurídico e caminhamos sob a égide do pós-positivismo, que se caracteriza pela centralidade dos princípios constitucionais, pela reaproximação da ética com o direito, edificada sob o princípio da dignidade da pessoa humana.

O Direito deve ser entendido como forma de transformação do meio social, devendo o juiz construir a decisão em cada caso concreto,  numa perspectiva principiológica e de hermenêutica constitucional, não mais como um cego aplicador da lei, mas um intérprete, capaz de escolher a decisão mais correta ou justa em cada caso concreto.

É inaceitável, sob todos os aspectos, que uma decisão judicial seja prolatada sem levar em conta os imperativos de justiça social, o contexto e as consequências para os direitos fundamentais de centenas de pessoas. Vivenciamos uma crise sem precedentes no Brasil, com  o aumento do desemprego, fechamento de empresas, aumento da inflação, aumento da criminalidade.

Indaga-se: quais as consequências dessa decisão? Quantas famílias ficarão desamparadas com a destruição das barracas de praias de Ilhéus? Não estou falando somente daqueles donos de barracas que já estão no ramo há mais de 30 anos, sustentando sua prole e vivendo exclusivamente desse comércio. Refiro-me também aquelas pessoas humildes que vendem o queijo assado, o amendoim, o alferes, os artesanatos, a cocada e por aí vai? Quantas pessoas ficarão desempregadas e desemparadas?

Ilhéus, como cidade turística, tem nas barracas de praias sua grande atração, pela proximidade de se degustar um prato de caranguejo, lambretas e outras iguarias próximo do mar, com toda a sensação de segurança proporcionada pela aglomeração de pessoas, garçons, seguranças e frequentadores. Os turistas procedentes de Goiás e Brasília, principalmente, esperam ansiosamente ao  longo de todo o ano para desfrutar das delícias das  barracas de praias de Ilhéus.

A esperança dos donos de barracas e daquelas pessoas que sobrevivem do movimento das barracas é a alta estação, que inicia agora em dezembro e vai até início de fevereiro. Caso se concretize a execução da decisão judicial, será uma perda muito grande para o turismo de Ilhéus, pois as barracas são frequentadas durante todo o ano por pessoas de toda a região, principalmente da vizinha cidade de Itabuna. Logo, a ausência de barracas dará lugar a praias desertas e sem qualquer aparato de segurança. Indaga-se: quem se aventurará a frequentar as praias nessas condições? O que se colocará em seu lugar? Há algum projeto? Com certeza, nada. É sombrio e desanimador o cenário.

O jurista Dalmo Dallari, arremata: “Não basta a existência de leis, pois para que elas se justifiquem e sejam respeitadas é preciso que tenham origem democrática e sejam instrumentos de justiça e de paz.”

Ainda acredito na Justiça, como aquele moleiro de que enfrentou o rei soberano que queria demolir o seu moinho, redarguindo à sua alteza, com serenidade: “ Ainda há juízes em Berlin” . Realidade ou ficção, dizem que o moinho está de pé até hoje. Espero que o juiz que vai analisar esta causa não seja positivista e permita que sua decisão seja permeada pelos valores da ética, das exigências sociais e da JUSTIÇA, mantendo-se as barracas de praias de Ilhéus.

Marcos Bandeira é advogado, professor de Direito da Uesc e ex-presidente da Academia de Letras de Itabuna.

7 respostas

  1. Bom artigo. De fato, o mundo moderno não mais aceita o velho perfil do juiz legalista, firmemente agarrado à “lei seca” como verdade absoluta. O autor lembrou bem que hoje o que se prevê é a centralidade dos princípios e, a partir dela, busca-se o que aprendemos a chamar de “espírito da coisa”. Não creio de maneira alguma que essa medida da SPU venha a ser levada a efeito, mas penso que o susto tenha sua importância porque há mais de uma década os incompetentes que governaram Ilhéus não conseguem executar um tal “Projeto Orla” e aquela extensa faixa de praia continua praticamente oferecendo só o que “Deus ofereceu”. A estrutura das cabanas é, na grande maioria, precária, e a ocupação é de fato desordenada. É preciso, não digo padronizar, mas ao menos organizar e modernizar. Além de tudo isso, vamos pedir aos nobres cabaneiros que revejam a qualidade de seus serviços, pois a maioria também peca muito nisso. A combinação de preços exorbitantes com serviços chinfrins é a nota característica das cabanas de praia de Ilhéus.

  2. Uma praia não precisa de cabanas para receber turistas.

    No Rio de Janeiro, em Florianópolis (SC), em Santos (SP), em Itapema (PR), em Ubatuba (SP) não existem cabanas de praia e elas vivem lotadas.

    Nessas cidades, existem restaurantes e quiosques na calçada da avenida, mas a areia é completamente livre. No Rio, a prefeitura deixa armar barracas padronizadas, que devem ser desmontadas à tarde.

    O barraqueiro fica responsável pela limpeza de toda a área em volta da barraca.

    Salvador perdeu as cabanas mas não perdeu o turismo. As pessoas continuam indo à praia nas mesma quantidade de antes. Em algumas, até aumentou.

    Ainda tem a vantagem de voce não ser obrigado a ser torturado por arrocha e breganejo tocando alto no seu ouvido…

  3. Nessa onda obscurantista em que vivemos no mundo e particularmente no Brasil no século XXI que saudável ler opiniões sensatas e maduras de um ex-juiz de Direito com reconhecida experiência na aplicação da lei em favor da justiça social. Nada há de turvar a inteligência quando em nível nacional se assiste passivamente o surgimento de um judiciário cego e de um ministério público mais cego ainda. Há que se debater a aplicação da lei e sua subsunção a princípios constitucionais.

    Sem deixar de observar a lição de Rui Barbosa “Com a lei, pela lei e dentro da lei; porque fora da lei não há salvação” há que adaptar-se o Direito e a Lei ao presente pensando no futuro sem desconjurar o passado.

  4. Parabéns a Dr. Marcos Bandeira pela excelente matéria com equilíbrio,segurança e Justiça.
    Pedro Jackson Brandão Almeida

  5. Olá Dr. Bandeira, obrigado por voltar às defesas de Ilhéus! Seu artigo deve sensibilizar os aplicadores da lei que também são humanos como todos so beneficiados direta OU indiretamente com as cabanas de Ilhéus. Prcisa-se lembrar que varios empreendimentos imoboliarios foram ou estão sendo erguidos nos entornos das cabanas de praia.

    Amigo Marcos desejo a você e todos os seus o merecido sucesso na vida!

    Grande abraço.

  6. Parabéns professor Marcos Bandeira pelo excelente artigo. Acertou em todos os pontos e com certeza, seus argumentos tem a concordância da maioria esmagadora das pessoas de bom senso. Pena que Marcel Leal queira comparar a nossa realidade social com a de outras regiões onde as pessoas tem muito mais alternativas para prover o sustento suas famílias.

    Para os burocratas e alguns aplicadores das leis, é muito fácil ficar em seus gabinetes, dando suas canetadas e elaborando gigantescas sentenças, carregadas de argumentações tiradas dos seus livros. Dificil é enfrentar a realidade cruel e com tudo isso, tentar viver com dignidade através da labuta diária, e ainda ter que passar por situações torturantes como a que pode ocorrer em Ilhéus

  7. Marcel, quem não gosta de arrocha tem colocar um protetor auricular ao sair. E também, questão de gosto não se discute.Eu pessoalmente detesto, mais fazer o que.
    De vez em quando não mata não.

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