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Bárbara Andrade | barbarpsi@gmail.com

Os transtornos alimentares não são meramente desvios de conduta alimentar. Eles mostram o quanto comer e ser são inseparáveis. A recusa da relação com o alimento e via de consequência com o vínculo afetivo com o outro (anorexia nervosa), a relação ambivalente com o alimento e com afeto (bulimia nervosa), são todas modalidades de existir.

Antes de iniciar meu texto, gostaria de pontuar que o conceito de corpo aqui explanado vai além do conceito de corpo físico. Ele se conjuntura no conceito dado pela psicanálise – como sendo corpo psíquico que faz linguagem, de identificação, identidade, comunica-se e estabelece enlace com o social. Na origem do psiquismo encontra-se o corpo, como afirmou Freud em 1923. Desse conceito, veio o meu título a que a pergunta não se faz ao corpo físico, mas ao corpo psíquico, esse corpo do inconsciente em que o sujeito transforma suas angústias sufocadas no corpo psíquico em ‘forma de falar’ para corpo físico.
O corpo carrega em sua apresentação a marca de uma época, de uma cultura, de um social. Nos dias atuais, o corpo reduz o valor do Eu à pura aparência, em que o “prazer” é instantâneo, descartável e efêmero. A mídia, por exemplo, exibe exaustivamente o padrão atual de beleza, de corpo perfeito. Esta busca seria um dos pontos que podem vir a gerar consequências sérias e contribuir para o desenvolvimento de transtornos alimentares.
Um dos pontos característicos dos processos de subjetivação atuais é a sua consequência em termos de corporificação do mal-estar psíquico. Esses ‘novos sintomas’ (aqui me deterei apenas em pacientes com transtornos alimentares), emergem como patologias do ato. Para estes pacientes, o corpo funciona como uma forma de simbolização, de poder falar de suas angústias.
Os sintomas corporais falam pelo sujeito, espelhando sua necessidade, por vezes, de se utilizar dos desconfortos corporais para se sentir vivo, seja por viés da fome (anoréxica) ou pela vontade de comer e logo vomitar (bulimia). As pessoas com estes transtornos só conseguem contar a própria história e atravessar os conflitos sob a forma de marcas no corpo.
A anorexia é caracterizada por uma perda intensa de peso decorrente de uma dieta alimentar rígida, proporcionando um corpo sempre extremamente magro. As pessoas que possuem esse transtorno chegam a ficar muito abaixo do peso. Porém, diante do espelho se veem de forma dismórfica. Ou seja, acima do peso. O corpo anoréxico é marcado por um emagrecimento infinito, sem limites. Essas pessoas se alternam entre jejuar e comer compulsivamente, provocando vômitos logo em seguida.
É interessante notar que as crises bulímicas ocorrem nas caladas da noite, quando ninguém as (os) olha. O controle da fome e da forma é o recurso encontrado na anorexia para fazer barreira a um excesso do outro. Estes pacientes se alienam de seu próprio corpo e o admira silenciando seus desejos – de sede, de fome, de cuidados, de sexo, de amor, além de não enxergar o transtorno como um problema e, sim, como uma solução, o que torna difícil a adesão dessas pessoas às terapias psicológicas e psiquiátricas.
Na bulimia, a pessoa transita no universo da vergonha, também recebe sua marca de excesso, uma vez que os métodos compensatórios são marcadores desse descontrole, de um corpo onde o sujeito não se sente com seu corpo. O excesso, marca da compulsão, é o retrato dos limites vacilantes do corpo na bulimia. O vai e vem do engorda e emagrece desse transtorno mostra o aprisionamento do corpo bulímico num ritmo de alternância que marca, por meio do corpo, o que o corpo psíquico não deu conta de inscrever, de elaborar. Assim, o corpo se enche tentando preencher uma falta e depois se esvazia numa mostra física da busca pelo limite corporal.
Cada um desses transtornos apresenta particularidades inerentes à maneira como esses indivíduos foram constituídos. Há que se olhar para a história de cada um – e para os respectivos processos de subjetivação. Em comum a todos, a compulsão, a dificuldade com os limites e a marca do excesso.
Os transtornos alimentares não são meramente desvios de conduta alimentar. Eles mostram o quanto comer e ser são inseparáveis. A recusa da relação com o alimento e via de consequência com o vínculo afetivo com o outro (anorexia nervosa), a relação ambivalente com o alimento e com afeto (bulimia nervosa), são todas modalidades de existir. O funcionamento imediatista de satisfação e de tamponamento de uma realidade que causa desconforto faz da comida, ou da falta dela, um alívio, de um prazer, de uma fuga.
No tratamento psicanalítico, a atualização dos processos primários exalta o lugar da oralidade alimentar e da imagem. É a constituição de um espaço interior que, finalmente, vem assegurar as condições de uma nova imagem narcísica. É pelo viés terapêutico psicológico que o sujeito com transtornos alimentares pode se deleitar em suas angústias e sofrimentos, assim os elaborando e ressignificando.
Bárbara Andrade é psicóloga e atua nas áreas social, clínica e de saúde, e edita o Descortine-se.

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