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A MÍDIA TEME ENTERRAR AS ALMAS

Ousarme Citoaian
Em tempos imemoriais, quando a tuberculose era doença gravíssima, bastava alguém ter uma simples tosse que logo surgia um engraçadinho, com a piada manjada: “Trate da alma, pois o corpo não tem mais jeito”. Toda a turma de aposentados da pracinha já ouviu esta bobagem – que, de uns anos para cá, me tem sido lembrada, quase sempre que a mídia noticia um sepultamento: atualmente, na visão dos nossos redatores, já não se enterram pessoas, enterram-se corpos. Como corpo e alma são entidades dicotômicas, ficamos com a impressão de que nos querem dizer que a alma do penitente não desceu à cova, mas apenas o corpo. Então, tá.

POETA FOI SEPULTADO EM JUNHO

Uma tragédia que se abateu sobre (pelo menos) duas famílias em Itabuna, no mês passado, alimentou a má construção de textos na mídia: poucos veículos deixaram de mencionar que “os corpos foram enterrados”. Mas a boa linguagem fornece muitos exemplos no sentido contrário. A Rádio Notícias deu, em 2005, a seguinte nota: “O Papa João Paulo II foi sepultado esta sexta-feira, na cripta da Basílica de São Pedro…”, o jornal Voz da Rússia noticiou que “O poeta Andrei Voznessenski (foto), que faleceu no dia 1º de junho, foi sepultado no Cemitério Novodevitchie de Moscou” – sem especificar que os enterros foram dos corpos. Nem precisava. Não se enterra a alma.

JK FOI ENTERRADO AO LADO DO AMIGO

Os exemplos são legião. Num artigo sobre personagens históricos fico sabendo que “Ciro foi sepultado em uma simples tumba de pedra”, em referência ao rei Ciro I (559-530 a. C.), do Império Persa; na Bíblia, relata-se que “Sara, Abraão, Isaque, Rebeca, Lia e Jacó foram enterrados em Hebrom, numa caverna denominada Cova de Macpela”; retornando ao Brasil, em texto do jornalista Francisco Basso Dias, Os anos JK, anoto que “JK foi enterrado ao lado do amigo Bernardo Sayão, engenheiro e principal executor da construção de Brasília” – na foto, Juscelino Kubitscheck com Fidel Castro, em 1959. Vejam que nos três exemplos menciona-se o enterro (ou sepultamento) das pessoas, não dos seus corpos.

BOBAGEM QUE JÁ FOI CONSAGRADA

Adianto-me às vozes que vão defender tal escolha: sei que o emprego de “enterrar o corpo de Fulano” (em vez de, mais simples, enterrar Fulano) está sedimentado, certamente com a ajuda daqueles que, nas redações, se limitam ao processo de repetição, decretado o fim do trabalho de pensar. Alguém escolhe uma fórmula, outros vão atrás e, quando menos se espera, a coisa está “consagrada pelo uso”. É o caso: variados meios utilizam esse incômodo “corpo”, sempre que noticiam um sepultamento. Esquecendo que a simplicidade é uma qualidade do estilo, esses novidadeiros fazem questão de dificultar o que é fácil.

TELMO PADILHA E A TRAGÉDIA DA SOLIDÃO

Se não há montanhas,
como escalá-las?
Se não há florestas,
como embrenhar-me
em sombras
que não estas?
Se não há o mar,
como falar-te de águas
e horizontes?

Sou o cantor
desta planície,
e me abismo
em mim,
e desço aos outros
de mim,
e sofro os outros
de mim.

“A MORTE, A NOITE, O NADA, O TEMPO”

Em “Itabuna” (com foto de Waldyr Gomes), acima, Telmo Padilha (1930-1997) justifica o crítico Fausto Cunha, que identifica um lado “estranhamente trágico” na produção do poeta itabunense. Esta página, bebida em O anjo apunhalado (1980), confronta o cantor com a impossibilidade do canto (como cantar as águas e os horizontes, se não há mar?). Esse sofrimento diante do imutável parece ser a essência do trágico no autor de Canto rouco. Poeta universal, Telmo Padilha (foto), ao longo de sua obra, com cerca de 35 títulos, foi fiel aos temas que inquietam o ser humano, desde que este se descobriu na terra, lembrados na crítica que lhe fez Augusto Frederico Schmidt: “a morte, a noite, o nada, o tempo” – a tragédia da vida vivida, enfim.

BOM PARA ELES, “BOM” PARA O BRASIL

Sei que vou mexer em casa de maribondos, mas devo dizer que abomino a pronúncia anglicizada “raicai” – para aquele pequeno poema japonês que o Vocabulário Ortográfico denomina haicai. Já ouvi tal pronúncia vinda de alguns intelectuais, mas sempre imaginei tratar-se de mero descuido, pois eles são obrigados a saber, mais do que eu, que o H português/brasileiro não tem e não teve jamais som de R. Logo, haicai (com H mudo) é a escolha, não importa que alguns autores, muito receptivos ao que nos vem da América do Norte (“O que é bom para os Estados Unidos é bom para o Brasil”, dizia um ex-governador baiano), desejem “consagrar” a deplorável forma “raicai”.

O “REXA” DO BRASIL FOI ADIADO PARA 2014

Como haicai é dicionarizada, chamá-la “raicai” cria uma exceção injustificável. A não ser que passássemos a falar “rábito” (hábito), “rabitar” (habitar), “Raiti” e “raitiano” (Haiti e haitiano), e em vez de hastear a bandeira, a “rastearíamos”. Lembremo-nos de que o H seguido de outras vogais que não o A dos exemplos anteriores, formaria excrescências prosódicas interessantes: “rolístico” (em lugar de holístico), “Rélio” – para azar de Hélio Pólvora (foto), “ríbrido” (híbrido) etc. Os brasileiros passariam a sonhar com o “rexa” (novo nome para o hexacampeonato) e aquele bichinho que ri, não se sabe de quê, sairia no lucro: seria chamado “riena”, ganhando um nome apropriado.

SUMIDADE JURÍDICA DIANTE DO ESPELHO

E imagino não estar tão distante o dia em que, pela macaquice que brasileiro alimenta com a língua inglesa, será criado esse H aspirado que parece tanta falta fazer a essa gente. É que, além de “raicai”, já ouvi um douto jurista (ao menos, ele assim se vê no espelho) referir-se ao Código de “Ramurabi”, quando todo mundo que passou pela aula de História sabe tratar-se do Código de Hamurabi). Acreditem em mim: também vi um religioso judeu ser tratado em página de jornal como “habino”, em lugar do óbvio rabino. E aí já é mais grave, pois o H e o R fizeram um caminho surpreendente, de sorte que a pronúncia correta (rabino) contaminou a escrita (“habino”). E ainda mexeram com o judaísmo.

FORD, BLUES, LENDAS E FATOS

Todo mundo já ouviu por aí que William Christopher Handy (o WC Handy) inventou o gênero blues, com Saint Louis blues. São lendas que alimentam a música negra norte-americana. Pouco importa que o próprio Handy tenha feito Menphis blues dois anos antes (Saint Louis blues é de 1914), e que seu pioneirismo seja contestado por dez entre dez especialistas. Outro americano (John Ford, no filme O homem que matou o facínora) já sugeriu que quando a lenda é mais interessante do que o fato, deve-se publicar a lenda. A invenção do blues é pura lenda; fato é que WC Handy fez várias canções, mas se tivesse parado em Saint Louis blues já estaria “clássico”.

O BLUES ADOTADO “NA RAÇA”

O tema foi gravado por Besse Smith, Billy Eckstine, Armstrong, Velva Midleton, Cab Calloway, Harry James, Glenn Miller, Nat King Cole, Billie Holiday, Dave Brubeck e Ella Fitzgerald, só os poucos de quem me lembro. A brasileira Rosa Maria (foto), aquela do California dreams, também gravou St. Louis blues. A verdade é que WC Handy se tornou “Pai do blues” porque ele mesmo se apropriou do título, com o livro The father of the blues, lançado em 1941 (como o filho estava órfão, ele se adiantou com o processo de adoção). Diz a lenda que Handy, já em criança, tinha um ouvido incrível, a ponto de anotar em notas musicais o assovio dos pássaros, o apito dos barcos e o barulho das águas do rio Tennessee.

MÚSICA NASCIDA NO SOFRIMENTO

Gerado nas work songs (canções de trabalho) dos negros colhedores de algodão, o blues rima bem com tristeza. O Brasil até usava, há decênios, uma gíria americana, numa estranha forma singularizada de blues: “Fulano está blue”, dizia-se, para identificar alguém jururu, de crista baixa. St. Louis blues fala de um indivíduo solitário, esmagado pela cidadezinha, roendo saudades da mulher querida que foi embora. As que ficaram, cheias de jóias, dominadoras, arrastam seu homem por aí, pelos cordões do avental (by her apron strings), não lhe servem, é claro. Sem perspectivas, ele diz que vai fazer as malas e dar o fora. O tema é recorrente, mas, na composição de Handy (foto), se mantém vivo há 96 anos.
</span><strong><span style=”color: #ffffff;”> </span></strong></div> <h3 style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>E FRED JORGE CRIOU CELLY CAMPELLO!</span></h3> <div style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>No auge do sucesso, em 1965, a música teve uma versão no Brasil, gravada por Agnaldo Timóteo. Como costuma ocorrer com as

BRANCO E PRETO, LIGHT E VISCERAL

O St. Louis blues já beirava os 70 anos, quando nasceu Peter Cincotti, em Nova Iorque. Hoje, o artista está com 27 (nasceu em 1983) e administra uma carreira de talentoso cantor e pianista de jazz. O fato de um artista de tão pouca idade se deixar empolgar por uma canção popular antiga é sintomático do gosto dele e da qualidade dela. O arranjo, cheio de swing, desdenha a tristeza típica do gênero, mas é justo dizer-se que Cincotti não está nada mal, para um jovem branquelo descendente de italianos. Em seguida, Nathalie Cole (com luxuosa participação “tecnológica” do próprio Handy) mostra a diferença entre cantores negros e brancos: ele é light; ela, visceral.

(O.C.)

Uma resposta

  1. Caro pimenta em resposta a ao titulo (A MÍDIA TEME ENTERRAR AS ALMAS)
    veja o que a bíblia diz sobre alma e corpo, “Então o Senhor Deus formou o homem [‘adam’, hebraico] do PÓ DA TERRA [‘adamah’, hebraico] e soprou em suas narinas O FÔLEGO DE VIDA, e o homem se tornou UM SER VIVENTE [‘ALMA’, hebraico]”. Gênesis 2:7, agora veja o que acontece quando morremos,”O PÓ volte à terra de onde veio, e o ESPÍRITO [fôlego de vida] volte a Deus, que o deu”. Eclesiastes 12:7 então a mídia está correta não se enterra almas e sim corpos.

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