Tempo de leitura: 2 minutos

Pilhado, o sujeito foi a Otávio Moura, editor do Diário da Tarde, e disse para falar com Alberto Hoisel que o respeitasse, que era reserva moral da cidade e que não admitiria tal falta de respeito. Se o epigramista continuasse, ele iria responder. O editor apavorou.

 

Carlos Pereira Neto Siuffo

Alberto Hoisel foi o melhor epigramista que Ilhéus já teve. Era quase um gênio. Um dia chegou na cidade um sujeito que se achava muito importante e espalhou que era candidato a prefeito. Alberto publicou no Diário da Tarde: “Em Ilhéus qualquer sujeito/que quer ter notoriedade/espalha pela cidade/que é candidato a prefeito”.

Pois bem, na cidade, tinha um professor muito querido que, em toda eleição, anunciava que seria candidato. Às vezes desistia no meio do caminho. Noutras era lanterninha. A turma da maledicência procurou o lente e o convenceu que a quadrinha era para ele.

Pilhado, o sujeito foi a Otávio Moura, editor do Diário da Tarde, e disse para falar com Alberto Hoisel que o respeitasse, que era reserva moral da cidade e que não admitiria tal falta de respeito. Se o epigramista continuasse, ele iria responder. O editor apavorou. Esse era o grande problema. As palestras do professor levavam quatro horas, um latinídio só, e todo mundo dormia. Seus artigos ocupavam todas as páginas do jornal, que encalhava.

Otávio Moura procurou Alberto, contou o ocorrido e pediu para parar. Surpreso, o autor disse que o epigrama não havia sido feito para a ilustre figura, mas, se a carapuça tinha servido, o problema era dele. Aí publicou outro epigrama: “Essa gente que desista/seus gritos não fazem eco/em Ilhéus ninguém é paulista/para votar em Cacareco”. Cacareco era o nome da rinoceronte que, em 1959, recebeu quase 100 mil votos para a vereança na cidade de São Paulo.

O professor cumpriu a promessa e escreveu um artigo de seis laudas. Ocupou todas as páginas do diário, inclusive a manchete. Otávio falou para Alberto: “Eu não disse!”. De quebra, o epigramista lascou os últimos versos:  “Arrependo-me se peco/para que o céu me abençoe/se eu ofendi Cacareco/Cacareco me perdoe.”

Ao final, a pessoa a quem eram direcionados os epigramas desistiu da candidatura, e o nosso querido professor foi candidato. Novamente, ficou na lanterninha.

Carlos Pereira Neto Siuffo é professor da Uesc.

Tempo de leitura: 5 minutos

DA IMPENSADA VANTAGEM DE NASCER ADULTO

Ousarme Citoaian | ousarmecitoaian@yahoo.com.br

Volto à leitora não atendida. Afinal, quem é Ousarme Citoaian? – ela pergunta. E eu riposto: sou uma criação meio insana de jornalista desempregado, uma inutilidade que deu certo. Feito personagem de ficção, já nasci adulto, de barba na cara, o que foi um golpe de sorte, pois não sofri os achaques típicos: sarampo, catapora, acne juvenil, adolescência e outras mazelas, como bilu-bilu de senhoras ociosas. A criação não recebeu incenso e mirra (que querem?), mas ganhou tantos elogios que quase fica irremediavelmente estragada. O criador teve de puxar-lhe as orelhas (em sentido figurado, é óbvio, que a Lei da Palmada não é graça!), a fim de lhe dar uma pitada de juízo e modéstia.

________________

Para os realistas, a Fênix é só um mito

Você saiu de um hino… Deve ser a prova provada da doce insanidade do meu “pai”, que se gaba de umas tinturas francesas. Sou a pronúncia figurada de Aux armes, citoyens! (Às armas, cidadãos!) – grito de guerra tirado d´A Marselhesa. Quer dizer que seu criador é um guerreiro, um incendiário? Menos, menos. Ele se define como um cangaceiro domesticado, mas é, aqui pra nós, um romântico. Tanto isso é verdade que, às vezes, deseja tocar fogo no mundo, na doce ilusão de que das cinzas será possível nascer algo que preste. Eu, mais realista, sei que a Fênix é só um mito. Afinal, Ousarme Citoaian é pseudônimo ou heterônimo? Até parece que eu mergulho a profundidades tais…

________________

Duas escritas e uma só crítica no mundo

Mas creio que minha escrita é outra: também crítica do mundo, porém mais cuidada, mais “erudita”, mais (se posso dizê-lo) elegante. Visto assim, sou um heterônimo, pois faço uma “literatura” diferente dele. Como eu disse, sou seu “outro eu”, um tantinho metido a gato mestre, sem esconderijo de falso nome, o que, de resto, não é novidade. Vasta é a linhagem de pseudônimos/heterônimos identificados: Stanislaw Ponte Preta (Sérgio Porto), Aloísio de Carvalho (Lulu Parola), Alberto Hoisel (Zé… ferino e outros), Alceu Amoroso Lima (Tristão de Ataíde), Aurore Dupin (George Sand) e, encerrando minhas lembranças, Fernando Pessoa (Ricardo Reis, Álvaro de Campos e vários outros).

COMENTE » |

TITULAR É REUNIR TERMOS INCOMPATÍVEIS

Falamos aqui há dias da “arte” de combinar palavras para obter o efeito desejado. Mas deixamos de mostrar exemplos, o que fazemos agora, lembrando alguns títulos de livros. Bons títulos parecem, na maioria das vezes, associações de termos incompatíveis à primeira vista – e talvez por isso causem belo efeito. Aqui está uma listinha modesta, a que a gentil leitora e o atento leitor (se cultivam essa já quase extinta paixão pelos livros) acrescentarão os de sua preferência. Vamos à “mistura”: Telmo Padilha denominou sua primeira publicação (1956) de Girassol do espanto; Jorge de Souza Araújo ganhou importante prêmio nacional com Floração de imaginários, Cyro de Matos é autor de O mar na rua Chile.

“As luas obscenas” de Hélio Pólvora

Titulação é arte. Euclides Neto, bom escritor, titulava mal – o que explica um romance chamado Machombongo. Marcos Santarrita fez Danação dos justos (vale citar também A solidão do cavaleiro no horizonte), Hélio Pólvora estreou em romance com Inúteis luas obscenas. O “gringo” Raduan Nassar escreveu poucos livros, mas é mestre em títulos: Lavoura arcaica e Um copo de cólera. Um estudo de Monique Le Moing sobre as deliciosas memórias de Pedro Nava chamou-se A solidão povoada, o espanhol Carlos Ruiz Zafón escreveu o best-seller A sombra do vento, e os leitores desta coluna, todos, leram Cem anos de solidão, de Garcia Márquez. Penso que estas poucas referências são suficientes para chegar ao nosso cqd.

COMENTE » |

GUIMARÃES ROSA E SUA INFLUÊNCIA NA MPB

Descobri Luiz Cláudio, cantor, compositor e pesquisador das coisas de Minas, lá pelos anos setenta e fiquei abismado com a “parceria” dele e Guimarães Rosa:
“O galo cantou na serra/ da meia-noite pro dia/ o touro berrou na vargem/ no meio da vacaria/ coração se amanheceu/ de saudade que doía”. O galo cantou na serra só era novidade para minha ignorância. Em 2008, a historiadora Heloísa Starling (da Universidade Federal de Minas Gerais), após longa pesquisa, afirmou que o autor de Sagarana talvez seja o escritor de maior influência sobre a canção brasileira. “Há música espalhada por toda a obra de Rosa”, diz a professora.

_____________

“O capeta tocando viola rio abaixo”

Para Heloísa Starling, essa musicalidade de JGR vem do próprio sertão, dos sons da natureza, do silêncio “e até do capeta tocando viola rio abaixo”, além do uso que ele faz da linguagem. Em Rosa, as palavras não têm apenas significado, mas sons e ritmos. Canções com influência roseana são muitas, nem sempre explícitas à primeira audição. Heloísa cita, além de O galo cantou…, Assentamento (de Chico Buarque para o MST), Travessia (Milton Nascimento-Fernando Brant), A terceira margem do rio (Caetano Veloso-Milton Nascimento), Sagarana (João de Aquino-Paulo César Pinheiro), Língua (Caetano Veloso) e Matita perê (Tom Jobim-Paulo César Pinheiro).

Um sujeito bom como cheiro de cerveja

Não encontrei menção da pesquisadora a Desenredo, a minha preferida nessa “parceria” de Rosa com a MPB. É letra do grande Paulo César Pinheiro, com melodia de Dori Caymmi, baseada no conto revolucionário, renovador do gênero, que tem este nome (está em Tutameia – Terceiras estórias). É a história de amor de Jó Joaquim, um sujeito “quieto, respeitado, bom como o cheiro de cerveja”. No vídeo, não sei o que mais me umedece os olhos: o ousado arranjo vocal (como sempre) do Boca Livre, a beleza suave, doce e dolorosamente jovem de Roberta Sá em harmonia com os “velhinhos” do grupo, os lindos versos ou a melodia compatível. Talvez, o conjunto da obra.

(O.C.)

Tempo de leitura: 5 minutos

LÍNGUAS BLINDADAS CONTRA OS BÁRBAROS

Ousarme Citoaian | ousarmecitoaian@yahoo.com.br

Com o crescimento da informática, o inglês expandiu-se, consagrando seu império com a invasão de línguas indefesas como o português do Brasil. Se a gentil leitora pensa que isto é regra mundial, não vá pensando, pois não é. O francês e o português de Portugal (não sei de outras ocorrências, mas suponho que as há) usam uma espécie de blindagem contra os bárbaros: seus vocabulários não têm a tolerância da Casa d´Irene, onde qualquer palavra estrangeira entra sem pedir licença. Ouvi de um linguista dos mais novidadeiros que toda língua sem as portas abertas a tais contribuições está condenada à morte. Duvido. Se fosse assim, o português de Camões já teria batido as botas, de braço dado com o francês de Gustave Flaubert.

________________

Mouse é “rato” em Portugal e na França

O termo online não foi absorvido por aquelas línguas, como ocorreu aqui: o francês diz “em linha” (en ligne); o português, também.  Outro exemplo: mouse, em Portugal, virou rato; na França, souris (rato); o inglês site é, em terras d´além-mar, sítio; entre os franceses, idem (site). Uma lembrança anterior à informática me sopra a palavra nylon: o francês conservou a grafia, mas adaptou a pronúncia para… nilón! São línguas que se respeitam e se defendem. Tivemos aqui, lá pelo início dos oitenta, discussão a propósito de falarmos Sida (Síndrome de imunodeficiência adquirida) ou Aids (Acquired immune deficiency syndrome), venceu a segunda, de goleada. Colonizados acham que até doença fica chique, desde que in English.

Os jogos de 2016 serão “paraolímpicos”

Há poucos anos, o governo resolveu chamar a Petrobras de Petrobrax, tontice abortada a tempo. Agora, o Comitê Olímpico Internacional (COI) inventou o termo paralímpico, em substituição a paraolímpico, mas o ministro Aldo Rebelo, dos Esportes (ardoroso defensor da língua portuguesa), subiu nas tamancas e convenceu a presidenta Dilma a não adotar essa bobagem, de sorte que em todos os documentos e peças publicitárias para 2016 o governo grafará Jogos Paraolímpicos, e não Paralímpicos, como querem os novidadeiros. João Ubaldo Ribeiro também desceu a ripa em paralímpico, mas, mesmo assim, é possível que a coisa pegue, pois a TV Globo (que criou o récorde) parece que já adotou a nova moda. Eu, sem brilho, mas sem medo, sou contra.

A PREMONIÇÃO DE FERNANDO LEITE MENDES

Tocam a campainha na casa de Fernando Leite Mendes, no Rio, ele vai atender. Era um fotógrafo do Correio da Manhã, confuso e, pelo sotaque, português: “– O senhor Júlio está?” “– Aqui não mora nenhum Júlio”. O homem saiu, e logo voltou. “– Perdoe-me a insistência, mas eu qu´ria falar com o senhor Júlio de Castilhos…”  “– Ah, o doutor Júlio de Castilhos não sabia que o senhor viria procurá-lo e morreu há exatamente 60 anos, em 1903. Se soubesse, talvez tivesse esperado”.“– Ora, pois, então esta não é a Rua Dr. Fernando Leite Mendes?” “– Ainda não, mas deverá ser daqui a 60 anos”. Fernando virou nome da rua, 48 anos depois (a história é contada pelo jornalista Sebastião Nery).

______________

Alberto Hoisel: “Lei, te emendes!”

Em não identificado momento dos anos sessenta, Alberto Hoisel, grande poeta satírico e boêmio juramentado de Ilhéus, está “fazendo o Rio de Janeiro”, em companhia do amigo e não menos boêmio Fernando Leite Mendes. Na boite Night and Day (1º andar do Hotel Serrador),  então o endereço dito obrigatório da boemia de bom gosto, Alberto, entre um gole e outro, anota num guardanapo esta bela quadrinha, com um trocadilho que é um achado: “Lei! Tu sempre foste errada,/ Por isso ninguém te entende…/ E sem que faça piada, / Eu te digo: ´Lei, te emendes!…´” (a história está em Solo de trombone – ditos & feitos de Alberto Hoisel, de Antônio Lopes). Faltou dizer que FLM é nome de rua também em Salvador, onde nasceu.

A FALTA QUE FAZ O DICIONÁRIO “POÉTICO”

Uma amiga me inquire a respeito de palavras “poéticas” – se há termos adequados para escrever poesia. Pelo que entendo, não. Dizer que sim seria admitir a existência de um dicionário apropriado para os poetas, de sorte que bastaria adentrar a livraria, comprar a última edição revista, atualizada e ampliada, depois sair por aí desembestado a escrever sonetos, elegias, odes, éclogas, epopeias, versos concretos, abstratos, brancos, pretos (ou afrodescendentes?) e o que mais nos desse na telha. Isto já nem seria um dicionário, mas uma usina de talentos, fabricando, como em desenfreada linha de montagem, drummonds, camões, cecílias, florbelas e bilacs à mancheia (para fazer o povo pensar).

As palavras estão à nossa disposição

Na falta desse livro mágico, é tratar de combinar palavras, extraindo-lhes ritmo, imagem, som e, às vezes, fúria. Vejam que elas são as mesmas à disposição de todos, e apesar disso não há em cada esquina um Castro Alves. É questão de saber usá-las. Algo parecido acontece com as notas musicais: são apenas sete (se abstrairmos os bemóis e sustenidos), mas sua combinação oferece os mais surpreendentes efeitos: de tão poucos recursos é possível fazer arrocha, “música baiana”, jazz, samba, Tom Jobim e a Quinta Sinfonia de Beethoven, para não citar muitos exemplos. A Quinta, aliás, me soa adoravelmente simples, ao menos no início do primeiro movimento – a parte que todo mundo conhece.

O destino (ou a morte) batendo à porta

A anedota de que as quatro notas que abrem a peça (tente sol-sol-sol-mi) significariam o destino (ou a morte!) batendo à porta carece de valor científico: um ex-secretário do velho Ludwig, aspirante à notoriedade, teria inventado estas e outras inverdades a respeito do músico, após o desaparecimento deste. Outra curiosidade: as três notas iniciais (três sons breves e um longo) correspondem à letra V no Código Morse. Não por acaso, a Quinta foi executada pela BBC de Londres, em 1965, logo após a morte de Winston Churchill – o estadista britânico usava o V (de Victory/Vitória) como gesto de incentivo a todo foco de resistência à agressão nazista.

(O.C.)

Tempo de leitura: < 1 minuto

A coluna Universo Paralelo destaca o epigrama (“a arte de falar mal”) dos antigos (o grego Simônides de Ceos e o romano Horácio) aos baianos novos e velhos (Gregório de Mattos, Lulu Parola, Ildásio Tavares e outros), incluindo o ilheense Alberto Hoisel.

Ousarme Citoaian também fala de “pedradas linguísticas” na mídia e lembra a canção Make the knife, numa gravação histórica (e premiada) de Ella Fitzgerald.

Para ver a edição desta semana clique aqui.

Tempo de leitura: 8 minutos

EPIGRAMISTAS NÃO GANHAM BUSTOS

Ousarme Citoaian
Epigramistas não são bem vistos. Nenhum deles ganha homenagem. Meu estimado leitor e minha não menos querida leitora já viram algum busto de epigramista? Uma praça ou viaduto? Uma reles placa em rua desimportante identificando-a como “Epigramista Fulano de Tal”? É provável que não. Sarcastas (como Horácio, na foto) distraem as pessoas comuns e atraem o ódio das autoridades. São cobradores, e ninguém aprecia ser cobrado. Em público, menos ainda. Os lexicólogos também não gostam de epigramista: com mais de 2.500 anos de registro (vem dos 500 a. C.), o termo (que ou aquele que faz epigramas) ainda é solenemente ignorado pelos dicionários.

OS FILHOS DE GREGÓRIO DE MATOS

O grego Simônides de Ceos é uma espécie de pai do epigrama. Mas o modelo cunhado na Grécia foi modificado pelos romanos, com proximidade da forma maldosa, crítica e humorística de nossos dias. Sem querer demarcar fronteiras, coloquemos nesse gênero dois expoentes brasileiros (Emílio de Menezes e Gregório de Mattos) e um português (Bocage). Os três fustigaram os costumes e deixaram herdeiros. Aliás, a Bahia é pródiga em “filhos” de Gregório de Mattos, o Boca do Inferno (foto) – quase fazendo da arte de mal dizer um gênero baiano: Aloysio de Carvalho, Pinheiro Viegas, Ildásio Tavares, Lafayette Espínola, Clovis Amorim, Sílvio Valente e outros.

HOISEL, O HOMEM QUE CRITICAVA

Em Ilhéus, com assento no Diário da Tarde e no Bar de Barral, o grande nome do epigrama foi Alberto Hoisel, retratado por Antônio Lopes em Solo de trombone (Editus/Uesc). A partir dos anos cinquenta (morreu em 2000), Hoisel movimentou a cidade e, sobretudo, infernizou a vida de todos os prefeitos do período. A Pedro Catalão (prefeito de 1951 a 1955) coube a maior crueldade: “Nunca no mundo supunha/Ser verdade absoluta/Que um filho da Catalunha/Virasse filho da puta!…”. Sobre o judiciário, ele fez uma quadrinha que está ainda muito atual: “A Justiça em seus julgados/Anda sempre em dois sentidos:/Ora de olhos vendados,/Ora de olhos vendidos”.

EMÍLIO DE MENEZES, O IMPIEDOSO

O epigramista (os dicionários preferem epigramatista, sem apoio na vida literária) precisa de talento, coragem e maldade. Nesse último quesito, a sátira em versos nunca teve ninguém tão bem aparelhado quanto Emílio de Menezes, para quem a impiedade era uma segunda natureza.  Lulu Parola está mais para o gracejo do que para a ofensa, enquanto Ildásio Tavares (foto acima) é agressivo a ponto de ter epigramas concluídos, mas retardar a publicação. “Primeiro preciso comprar um colete à prova de balas”, brinca (com fogo!) o poeta grapiúna. O Pimenta abriga o bissexto Agulhão Filho, que – ao estilo Lulu Parola – prefere o divertimento à crueldade.

DISPARATES QUE SÃO BEM-VINDOS

Volta e meia alguém emprega um verbo como sinônimo de outro, equivocadamente. É o caso de ter por haver, muito comum nas transmissões de futebol na televisão. “Tinham dois jogadores impedidos”, diz o comentarista. Pedrada: em português, diz-se “havia dois…”. Mas deixemos pra lá, pois bater na tevê é como bater em defunto: ela sempre foi o quarto de torturas da língua portuguesa. Pior é quando o jornal, cujo texto tem tempo para ser lido, pensado, analisado e emendado, sai com disparates parecidos. E eles, os disparates, não são avis rara nem personas non gratas em nossas redações. Bem ao contrário, são recebidos com tapete vermelho.

LIBRA E SINAIS DE FUMAÇA

Um dos principais diários de Itabuna é useiro e vezeiro em misturar os sentidos dos verbos. “Prazo para transferência de presos encerra na segunda-feira”, diz ele, em edição recente. Aos dicionários: o verbo encerrar encontra oito acepções no Aurélio,  nove no Michaelis e 11 no Priberam. Nenhum deles mostra o verbo como sinônimo de terminar (o que parece ter sido a intenção do jornal). É claro que vai aparecer algum “liberal” pra dizer que “está certo” como foi escrito, pois a mensagem nos chegou. Mas não tratamos aqui de filosofias baratas, Libras ou sinais de fumaça, e sim de língua portuguesa culta.

SIMPLICIDADE NÃO É HUMILHAÇÃO

Nunca será demais lembrar que simplicidade não é humilhação, mas qualidade do estilo. Se eu posso escrever “Prazo para transferência de presos termina…”, por que empregar um encerra, que o leitor medianamente informado não sabe de onde veio nem para onde vai? Vã complicação. Longe de melhorar o texto, o torna empolado, torto, questionável. Afinal, o sentido mais corriqueiro de encerrar é de transitivo direto, levantando no leitor a dúvida imediata: “Encerra o quê?”. E aí fica uma confusão dos pecados, até que se encontre o sujeito dessa construção canhestra.

DA ARTE DE ESCREVER BEM

André Iki Siqueira fez, em João Saldanha, uma vida em jogo (Companhia Editora Nacional), o que entendo ser a biografia definitiva do polêmico treinador de futebol. Ao menos, é a mais consistente das que li. Personagem talhado para a ficção, Saldanha tem sua vida cercada de mitos (muitos criados por ele mesmo), de forma que, muitas vezes, a gente não percebe a diferença entre o real e o imaginário. O livro não põe luz sobre toda essa incerteza, mas aponta aspectos novos da vida do João sem Medo (epíteto criado pelo amigo Nelson Rodrigues), úteis, sobretudo, para as novas gerações de pesquisadores e, por que não dizê-lo, fãs.

JOÃO SALDANHA, A FERA DAS FERAS

Uma vida em jogo mostra que Saldanha não foi comunista de praia e mesa de bar, mas ativo militante do PCB. Teve vida clandestina (era o camarada Souza) foi preso e fichado pela ditadura de Getúlio, comandou greves importantes como a dos 300 mil (São Paulo, 1953), organizou camponeses no Paraná (1950), enfrentou os gorilas de 1964 (disse que Médici era “o maior assassino da história do Brasil”), protegeu perseguidos políticos às custas do próprio bolso. Na Seleção (que ganhou invicta as eliminatórias), não abriu mão da militância e carimbou o time com sua personalidade.  As feras do Saldanha, como seu líder, não tinham “complexo de vira-lata”.

“COMO NUM ROMANCE DE AVENTURA”

André Iki Siqueira (foto), o autor, é um desses jornalistas de muita competência e pouca badalação. É carioca, consultor de comunicação, trabalhou na grande imprensa, dedica-se também à música (como compositor) e a fazer roteiros de televisão e cinema. Além de João Saldanha, uma vida em jogo, foi co-diretor do longametragem João, sobre o mesmo personagem. Atualmente, dirige a revista Brazilian foreign trade. Voltando ao livro, lê-se na contra-capa: “Como num romance de aventura, é uma história de tirar o fôlego, em que fato e ficção se confundem para criar um personagem inesquecível, o João Sem Medo – um grande brasileiro”. Assino.

COM OS DEFEITOS NECESSÁRIOS

Nelson Rodrigues (ilustração) foi, desde o começo, o grande defensor do João Sem Medo para dirigir a seleção. Está nesta crônica de À sombra das chuteiras imortais: “Tenho-lhe um afeto de irmão. Quebrei minhas lanças para que a CBD o escolhesse. João Havelange e Antônio do Passo tiveram um momento de lucidez ou mesmo de gênio, e o chamaram. Ao ler a notícia, berrei: ´É o técnico ideal!’ . Um amigo meu, bem pensante insuportável, veio me perguntar: ´Você acha que o João tem as qualidades necessárias?’. Respondi: ´Não sei se tem as qualidades. Mas afirmo que tem os defeitos necessários´. E, realmente, o querido Saldanha possui defeitos luminosíssimos”.

A PARCEIRA QUE BRECHT NÃO VIU

A “Ópera dos três  vinténs” (Brecht),  que no Brasil virou “Ópera do malandro” (Chico Buarque), teve uma canção muito divulgada: Mack the knife (1955). Foi cantada por Armstrong, Bobby Darin, Frank Sinatra e um monte de gente. Curiosidade: foi a primeira gravação de Elza Soares (foto), versão em português, claro, em 1959 (o outro lado do disco tinha Se acaso você chegasse, de Lupicínio Rodrigues). A letra, como costuma ocorrer na música americana, é pouco expressiva. Mas o balanço é irresistível. As coisas estavam assim, até que Ella Fitzgerald cantou Mack the knife numa apresentação ao vivo, em 1960. Foi um show mágico, eletrizante, algo ainda não visto.

ÓPERA DA “MALANDRA” ELLA FITZGERALD

Na abertura, Ella avisa que não está segura quanto a lembrar-se de toda a letra da canção (We hope we remember all the words). Antes de chegar ao meio, a cantora tem um “branco” (ops!), mas é aí que começa o verdadeiro show. Ela não perde a cadência nem a classe: começa com “Qual é o próximo refrão dessa música, agora?” (What´s the next chorus to this song, now?) e prossegue citando, com ritmo e rima, os cantores Bobby Darin (foto) e Armstrong (que popularizaram a composição de Brecht e Weill), ri de si mesma – “Nós estamos fazendo um naufrágio” (We’re making a wreck) – manda uma imitação de Satchmo, e arremata tudo com aquele scat singing que tornou ambos famosos.
</span><strong><span style=”color: #ffffff;”> </span></strong></div> <h3 style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>E FRED JORGE CRIOU CELLY CAMPELLO!</span></h3> <div style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>No auge do sucesso, em 1965, a música teve uma versão no Brasil, gravada por Agnaldo Timóteo. Como costuma ocorrer com as

O IMPROVISO QUE GANHOU O GRAMMY

Próxima ao final, Ella se diverte, cantando: “vai ser uma surpresa se essa gravação virar Mack the knife” (it´s a surprise this tune comes Mack the knife). De fato, àquela altura, já pouco restava da letra original, “adaptada” à ocasião. No fim, com os aplausos da platéia, a cantora abre o sorriso: missão cumprida, o imprevisto tinha sido dominado.  A improvisação ganhou o Grammy de 1960. Ella tinha também o dom de imitar vozes e instrumentos: em One note samba (Samba de uma nota só), de Tom, ela “toca” uma cuíca; aqui, tira um sarro com seu amigo rouco Louis Armstrong. O vídeo, ao que me consta, não é do show original.
(O.C.)