Tempo de leitura: 5 minutos

DA ALEGRIA INOCENTE AO RACISMO GRAVE

Ousarme Citoaian | ousarmecitoaian@yahoo.com.br

1O teu cabelo não negaO texto segue o tempo, o que não parece óbvio para todo mundo. Quando, há mais de 80 anos, cantava-se “mas como a cor/ não pega, mulata,/ mulata eu quero teu amor…”, O teu cabelo não nega (Irmãos Valença-Lamartine Babo) era apenas alegria inocente; hoje, significa grave ofensa à raça, traumatiza a Lei Afonso Arinos e estatutos afins. Com o passar dos anos, a sociedade adquiriu mais consciência do que pode molestá-la, ampliando os instrumentos de autoproteção. Recentemente, foram banidos vários termos do nosso linguajar, sobretudo os relacionados a condutas sexuais. Onde se dizia “homossexualismo”, por exemplo, hoje é “homossexualidade”. Cautela e caldo de galinha continuam em moda.

________________

Alienação absoluta, conformismo total
Outro texto que tem interpretações diversas, de acordo com a época, é Opinião (Zé Kéti), do show do mesmo nome, de 1964 (logo após o golpe militar).  Voltado para a problemática social do Brasil, o espetáculo Opinião absorveu a música Opinião como revolucionária (ao lado de Carcará, Missa agrária, O favelado). Hoje, pode-se entendê-la em outro sentido: “se não tem água,/eu furo um poço,/se não tem carne,/eu compro um osso/ponho na sopa/ e deixo andar…”, uma inabalável profissão de fé no conformismo. Mas as melhores “pérolas” estavam no fim: “se eu morrer amanhã,/ seu doutor,/ já estou bem pertinho do céu”. A alienação absoluta, a antirrevolução, até a antirreforma. E ninguém percebeu.
______________
Tema “pegou” na biografia de Lamartine
Voltando a O teu cabelo…, é oportuno dizer que este tema é uma mancha na biografia do Rei da Marchinha, Lamartine Babo. A RCA Victor, ao receber o tema dos Irmãos Valença (João e Raul) pediu que Lamartine “acariocasse” a marcha, tirando da letra algumas expressões de pernambucanês. Lamartine não se fez de rogado: manteve a música e o refrão, extirpou a gíria do Recife, promoveu o primeiro verso a título (o título original era Mulata) e assinou O teu cabelo não nega, como sendo autor da letra e da melodia. Os Valença reconheceram as mudanças, mas foram à Justiça, reivindicando que Lamartine era parceiro, não autor. Ganharam em todas as instâncias.
| COMENTE!
 

NOSSA RESPONSABILIDADE COM O PÚBLICO

4Paixão BarbosaMontado em brisa do outono, nos vem  um comentário do secretário de Comunicação de Ilhéus, jornalista Paixão Barbosa (foto), a propósito de notinha aqui postada na semana passada, sob o título “Professor ilheense vai presidir a ABL”. Ele “pede desculpas” pelos desvios que esta coluna, “tão acertadamente, registrou”, e diz que tudo aconteceu “por desatenção de quem redigiu [o texto], o que realmente é imperdoável”. Experiente (mais de três décadas n´A Tarde), Paixão Barbosa tira do episódio uma lição. Em suas palavras, “os erros cometidos pelos que têm a responsabilidade de informar ao público são sempre muito graves pelo potencial multiplicador que eles carregam consigo”. No mesmo pé-de-vento do pós-verão, vai a contrarresposta (ai, esse Acordo Ortográfico!).
________________
Raios, arreganhos e morte anunciada
Foi tudo muito divertido (não para o secretário, que querem?) e “didático”, até porque errar, o clássico humanum est, ajuda a identificar nossas fragilidades e nos faz crescer (já não me dirijo a V. Sa., mas ao meu/minha colega que escreveu a notinha açodada): não me leve a mal, eu só quero que você me queira. E digo que Paixão Barbosa, dono de alto conceito no jornalismo baiano, se engrandece com o sucedido: quando temos até um comunicador com morte anunciada em Ilhéus, é confortador saber de alguém capaz de receber críticas, serena e humildemente, recusando-se aos ralhos e arreganhos com os críticos, conforme o hábito. Mas, e quanto aos 18 veículos (pelo menos!) que repetiram a nota sem lê-la, o que faremos?
| COMENTE!
 

(ENTRE PARÊNTESES)

6Por que escrevo“Às vezes, quando vejo o que se passa no mundo, pergunto-me: para que escrever? Mas há que trabalhar, trabalhar. E ajudar o que mereça. Trabalhar como forma de protesto. Porque o impulso de uma pessoa seria gritar todos os dias ao despertar num mundo cheio de injustiças e misérias de toda ordem: protesto! protesto! protesto!” Este pequeno texto de Federico Garcia Lorca (1898-1936), citado por José Domingos de Brito no livro Por que escrevo? (Escrituras/1999), me vem à mente quando sobre mim pairam as nuvens negras do desencanto com a humanidade – e isto é mais constante do que seria saudável.

FAZENDO BONITO NUMA RODA DE JAZZÓFILOS

7Max Roach
De quem “gosta” de jazz é exigido o nome de uns poucos grandes nomes em cada instrumento. Se você é capaz de citar duas feras em trompete (Armstrong, não vale, pois até os bebês conhecem seu som!), sax, voz, guitarra, vibrafone (com estes dois já é mais difícil), baixo e piano, tem suficiente para começar a conversa. Mas faltou bateria.  Então ofereço cinco nomes – e qualquer deles fará com que os olhos do pessoal se voltem com admiração para a gentil leitora que o pronunciar: Max Roach (foto), Gene Krupa, Buddy Rich, Art Blakey e Elvin Jones. Aqui, citados ao acaso, os negros ganham de 3 a 2: Roach, Blakey e Jones contra os branquelos Gene Krupa e Buddy Rich.
_______________
Baterista “roubou” a própria orquestra
Em 1982, Frank Sinatra (1915-1998) comandou o show Concerto das Américas (Concert for the Americas), na República Dominicana, que virou DVD. Em estado de graça, “A voz” cantou Corcovado (em inglês: Quiet night of quiet stars), pretexto para “encher a bola” de Tom Jobim, repetiu grandes êxitos populares (incluindo, é claro, Strangers in the night e New York, New York), tudo isso em companhia da orquestra de Bernard Buddy Rich (1919-1987). Aqui, o momento em que Sinatra apresenta o baterista e este rouba a cena da própria orquestra, com um solo magistral em “Finale”, que encerra a lista de mais de 25 temas do musical West side story, de Bernstein.


(O.C.)

Tempo de leitura: 7 minutos

TELMO E GRACILIANO RAMOS

Ousarme Citoaian

Festejado escritor nascido em Ferradas, Telmo Padilha é lembrado em recente artigo no Agora, de Itabuna: “Padilha imaginou como teria sido a administração de Graciliano Ramos (foto), o autor de Vidas secas, São Bernardo, Caetés, etc., frente à Prefeitura de Quebrângulo [sic], hoje Palmeira dos Índios [sic), em Alagoas”. O artigo, infelizmente, labora em lamentável erro: a confusão a respeito do nome da cidade onde nasceu o velho Graça (aliás, objeto de profundo – e premiado – estudo do professor Jorge de Souza Araujo).  E ainda acrescenta um equívoco comprometedor, com a expressão “hoje Palmeira dos Índios”. Palmeira e  Quebrangulo não apenas  municípios vizinhos e amigos, mas independentes e harmônicos.

GRACILIANO EM QUEBRÂNGULO?

O trecho em referência foi bebido no livro Canto de amor e ódio a Itabuna, publicado após a morte de Telmo (Editus-Uesc/2004), e se intitula “Graciliano em Quebrângulo” (pág. 175).  Um erro palmar:  a cidade onde GR veio à luz chama-se Quebrangulo (nunca Quebrângulo!) e tenho todos os motivos para imaginar que Telmo Padilha, poeta e prosador, culto e lido, estava cansado de saber que a palavra não leva circunflexo. É, por isso, paroxítona, não proparoxítona. O erro, obviamente, nasceu na revisão: alguém cheio de boas intenções resolveu “corrigir” o poeta itabunense e acentuou Quebrangulo. Telmo e o velho Graça se mexeram na tumba.

SONORIDADE QUE ACARICIA

O articulista, portanto, involuntariamente, repetiu o equívoco que, a meu juízo, foi gerado na Editus/Uesc. Por minha vez, vali-me dessa embrulhada para recordar que o Estado de Alagoas é rico em nomes de municípios com sonoridade que acariciam nossos ouvidos: além dos citados Quebrangulo (foto) e Palmeira dos Índios, lá estão: Jacaré dos Homens, Santana do Ipanema, Olho d´Água das Flores, São Miguel dos Campos, São Luís do Quitunde, Coité do Nora, União dos Palmares, São Miguel dos Milagres, Porto Real do Colégio. Já visitei todos – incluindo o museu Graciliano Ramos, em Palmeira. A exceção é Coité do Nora, que acabo de ver numa lista do Google, e nem sei pra que lado fica (mas que o nome é delicioso, é).

ESTRANHO DIÁLOGO NO QUIOSQUE

Tenho especial predileção pela língua portuguesa de Portugal, pois a mim me parece delicioso o som, gerado pelo sotaque e, muitas vezes, pela posição dos pronomes na frase. Veja-se este texto, adaptado do gramático lusitano Raul Machado (de preferência, leia-o com a entonação lisboeta): Aqui há umas semanas dirigi-me a um quiosque onde vendem tabaco, e pedi uma caixa de fósforos. Uma donzela, amável e sorridente, respondeu-me: “Não temos.” “Ora essa!” – volvi, estupefacto.  “Pois a mim me parece que estão logo ali”. “Não, não”– replicou-me a donzela, com ar feliz.  “Aquilo não são caixas de fósforos; são caixas com fósforos”.  Ora, pois!…

RAPARIGA PRESSUROSA E AMÁVEL

Logo a seguir, por uma espécie de intuição, e à guisa de teste, disse-lhe: “Faz-me o favor, dá-me um maço de cigarros”. E ela, pressurosa e amável, entregou-mo, imediatamente. “Ó minha gentil rapariga, não estou a perceber bem o que há pouco me disse. Pedi-lhe uma caixa de fósforos e respondeu-me que só tinha caixas com fósforos. Agora, peço-lhe um maço de fósforos (caixas que contêm fósforos). O que, afinal, está a suceder neste seu honrado quiosque”?

GARRAFA (FEITA) DE VINHO

O que “está a suceder” com o honrado quiosque da rapariga e que deixa “estupefacto” o gajo lusitano é o desconhecimento do emprego da preposição “de”. Pasmem: o mencionado autor informa que “essa preposição tem nada menos do que dezoito significativos”, sendo os de conteúdo, matéria e finalidade os que mais nos molestam. Na contenda do quiosque, caixa de fósforos é o recipiente que contém fósforos (conteúdo), não que seja feita de fósforos (matéria); já escova de dentes não é uma escova feita de dentes, nem com dentes, mas escova para limpar os dentes (finalidade). Veja-se o exemplo de garrafa de vinho, em que a referência é ao conteúdo, não à matéria de que é feita a garrafa. Que coisa mais estúpida seria fazer uma garrafa de vinho e não de vidro! Logo, o vinho é conteúdo; o vidro, matéria.

JOTAÉ DERRAPOU NA BOLA

Jararaca Ensaboada, de certa feita, pediu aqui um copo com água (na verdade, uma taça com água, pois Jotaé acha que copo é coisa de pobre). Besteira. É copo de água mesmo, ou, também aceito pela língua culta, copo d´água e, claro, caixa de fósforos (como bem falou o gajo à rapariga), cesto de uvas, taça de champanhe, lata de azeite, barril de chope e assim por diante. Há casos em que o “de” sinaliza, ao mesmo tempo, conteúdo e finalidade: o repisado copo de água é expressão que indica recipiente para água (finalidade) e com água (conteúdo). Jotaé está por fora. Quer outra expressão lusitana muito interessante, nesta linha da preposição “de”? Pedaço d´asno! Eu sempre quis dizer, e agora o digo, à moda lisboeta: Jararaca Ensaboada, és um pedaço d´asno!

PostCommentsIcon Deixe seu comentário!

NOSTALGIA DO TREMA

É provável que eu seja o único brasileiro que tem saudade do trema. Gostava dele. Sua supressão, pelo Acordo Ortográfico, me deixou com alguma nostalgia. Palavras como cinqüenta, freqüente, ungüento e similares perderam seu ar de nobreza secular, deixaram – para usar uma expressão recorrente nesta coluna – de ser “clássicas”. É como se um restaurante à la carte se transmudasse, de um momento para outro, num “comida a quilo”. Consequência virou o genérico de conseqüência, como se a palavra de despisse da sua identidade.  Uma enfermeira sem avental branco, se é que vocês me entendem. Mas conheço gente que, antecipando-se ao Acordo, já descartara o trema há muitos anos.

EXECUTIVOS “CONTAMINADOS”

Raimundo Osório do Couto Galvão, jornalista dos mais competentes, era um valenciano ímpar. Conservador, casmurro, de amplas leituras, cronista, poeta bissexto e, principalmente, dono de ferino senso de humor. Protagonizou muitas situações curiosas em Itabuna – testemunhadas por seus companheiros de redação, em vários veículos. Entre os que lidaram com a verve, as exigências e o bem conservado mau humor de Galvão citam-se Orlando Cardoso, Luiz Conceição, Ramiro Aquino, Jorge Araujo, Geraldo Borges, Valdenor Ferreira, Charles Henri, Joselito Reis, Vily Modesto, Antônio Lopes, Ederivaldo Benedito, Joel Filho e Walmir Rosário. Um de seus lados mais agudos era o de cidadão, sempre pronto a reagir contra qualquer tentativa de espoliação de seus direitos, num tempo em que não se falava tanto em cidadania quanto hoje.

GALVÃO ELIMINOU O TREMA

Galvão não usava trema. Chegou a dizer, na coluna “Contexto”, publicada no Diário de Itabuna, que sua velhíssima Remington não possuía esse sinal. Meia verdade. O trema em máquina de escrever é feito mediante certa ginástica: escreve-se o “u”, dá-se um retrocesso (alguém ainda sabe o que é isso?) e bate-se aspas, aquelas duas virgulinhas que ficavam acima, à esquerda, tal e qual está no teclado do meu computador. Galvão não se habituou a essa manobra e entregava ao Diário seu texto (de primeira qualidade, diga-se) sem ligar para exigências de trema. Antecipou-se, assim, aos doutos signatários do Acordo Ortográfico, rifando o trema uma década antes. Se vivo estivesse (morreu quando nasciam os anos 90) talvez reivindicasse copirraite – tendo por advogado Francisco Valdece, seu amigo de fé.

BOMBONS VIRARAM DINHEIRO

O Supermercado Messias resolveu dar aos clientes bombons como troco, alegando dificuldades para obter moedas de pequeno valor. Galvão estrilou, é claro. Estrila de cá, explica de lá, o jornalista terminou aceitando as balas: levou para casa o inusitado troco e continuou a levá-lo, durante meses. Certo dia, terminadas as compras, foi-lhe apresentado o total a pagar e ele, sem piscar, depositou no balcão um avantajado saco de bombons (e algumas formigas, é claro). “Que diabo é isso?” – pergunta a atônita moça do caixa. “É o dinheiro que vocês me deram de troco” – retruca Galvão. Confusão, chama o gerente, traz o diretor, convoca o bispo, e Galvão  lá, apoiado em seu inseparável guarda-chuva, a tudo assistindo, com a tranqüilidade dos justos. Depois de meia hora de “aceita, não aceita”, o “dinheiro” foi recebido e Galvão saiu, com as compras do mês e a alma em festa. Ria-se. Ganhara mais uma.

PostCommentsIcon Deixe seu comentário!

O FENÔMENO KEITH JARRETT

Keith Jarrett é um indiscutível fenômeno do piano de jazz: menino prodígio, começou a tocar aos três anos, e aos sete fez o primeiro recital, tornando-se músico profissional ainda adolescente. Em 1962 era líder do seu próprio grupo, em 1965 passa a tocar com Art Blakey (foto), uma lenda da bateria de jazz, fica três anos com o Charles Lloyde Quartet e de 1969 a 1971 está com Miles Davis, na histórica fusão jazz-rock liderada pelo Divino. Depois, lança-se definitivamente em carreira solo. Tendo freqüentado a Berklee School of Music, Jarrett se sente muito à vontade tocando Bach e Mozart, dentre outros mestres. Até formou um grupo, o Jarrett Standards Trio, muito respeitado como executante de música de câmera.  Aqui, sua leitura de um tema muito caro a músicos e apreciadores do jazz: Autumn leaves.

PostCommentsIcon Deixe seu comentário!

(O.C.)