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MANCHETE: MORRE O FUNDADOR DE A TARDE

Ousarme Citoaian | ousarmecitoaian@yahoo.com.br
1Um século de jornalismoRecebi o belo trabalho da Solisluna Editora/2012, Um século de jornalismo na Bahia, indispensável para quem quiser conhecer a história baiana, tendo como pano de fundo o matutino A Tarde. Curioso, colhi várias expressões referentes ao velho jornal, e que aqui exponho: … feição principal d´A Tarde, … editando A Tarde, … o fundador de A Tarde, … na sua sala em A Tarde, … estreia de A Tarde, … primeiro decênio de A Tarde, … anunciou A Tarde, noticia A Tarde, … registra A Tarde, … dedicou A Tarde, … matéria de A Tarde – e, para encerrar a lista, a manchete principal de 25 de novembro de 1957, sobre a morte de Simões Filho, tratado como … fundador de A Tarde.

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Comer o salsinha e estudar no Piedade
“E por que essa procura aparentemente insana?” – indagariam, em uníssono, a gentil leitora e o atônito leitor. Pois eu lhes explico, em feitio daquele psicanalista tido como vienense, mas que nasceu na Checoslováquia: eu procurava, em tão alentado volume, alguma coisa que justificasse chamar a veneranda publicação de “o A Tarde”, conforme vejo (e me arrepio!) com frequência na mídia regional. Não sei de onde vem a invenção, mas de A Tarde, com certeza, não é. Chamar o A Tarde (ou o A Gazeta, o A Região, o Folha de S. Paulo) remete à anedota do alemão que diz “o salsicha”. Já contei aqui: vi jornalista tratar o Instituto Nossa Senhora da Piedade como… o Piedade. Pode?
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Não mais se pode resistir aos bárbaros
3Carlos RibeiroAo encerrar esta coluna, surpreendeu-me uma estranha chamada de primeira página (que eles agora chamam de capa!) no referido diário: “Em entrevista ao A Tarde, o deputado federal e ex-boxeador Popó…”. Em suma, gastei tempo e latim para demonstrar meu respeito pelo velho jornal, enquanto seus jovens redatores e editores faziam, para citar um lugar-comum, as ossadas de Simões Filho, Ranulpho Oliveira e Jorge Calmon dar cambalhotas na tumba. O jornalista e escritor Carlos Ribeiro (foto), autor do cuidadoso texto de Um século de jornalismo…, foi acometido de um ataque de urticária e uma certeza: diante da invasão dos bárbaros, não há mais resistência possível.
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GILBERTO FREIRE E O AMOR AO PICILONE

O sociólogo Gilberto Freire (1900-1987), aquele do clássico Casa grande & senzala, parecia se ter em grande conta. Vaidoso de sua origem e formação, não admitia, por exemplo, ter o nome grafado como acabo de fazê-lo (de acordo com as regras da ortografia): queria que fosse Freyre – e chegou a publicar laudatório artigo no Diário de Pernambuco, para explicar esse exacerbado apego ao picilone. É curiosa a tendência brasileira de escrever nomes próprios de variadas formas, sem atentar para o que diz a norma. Eu me sinto confuso quanto ao ípsilon de Freyre e de Ruy (nome frequente na Bahia), mas acho que agora pode, pois tal letra está de volta com o Acordo Ortográfico.
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Bahia de Gregório a Ariovaldo “Mattos”
Ariovaldo MatosPor aqui nós gostamos muito também das consoantes dobradas, uma excrescência do ponto de vista da ortografia: conheço Vianna, Joanna, Mello, Castello, Zagallo, Netto – e por aí vai. Na Bahia parece haver um acordo tácito, pois todo Matos de que tenho notícia grafa seu nome como Mattos, mesmo que não se veja nenhum motivo para isso. De famosos a nem tanto, passando pelos meramente anônimos, cito de memória Gregório (aquele mesmo, o Boca do Inferno), Cyro, Florisvaldo, Rogério, Julivânia e Humberto, todos Mattos. A exceção, nem sempre observada, é Ariovaldo Matos – que, devido ao hábito, muita gente boa chama de Ariovaldo Mattos.
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“Eras real, um homem verdadeiro”
Querido e respeitado, Ariovaldo (1926-1988) ganhou do seu quase homônimo colega Florisvaldo Mattos soneto clássico, decassilábico, de bela tessitura, que releio em Caligrafia do soluço: “Nem (abra-se o caderno do passado)/ se fôssemos parentes saberias/ o que guardava-me a mente a teu lado/ pelo correr das noites e dos dias, # quando, sôfrego, à máquina escrevias/ páginas de um jornal – ou quase um brado/ que ia e voltava a teu convívio, alado/ tropel sobre impassíveis geografias. # Como decifrador de calendários,/ a batalha dos signos açulava-te/ a matilha de ventos operários. # Eras real, um homem verdadeiro./ Mais não pude guardar, se o que eu sonhava/ era ser aprendiz de feiticeiro”.

BETTY CARTER: O “SUCESSO” APÓS 40 ANOS

7Charlie ParkerSe existe jazz puro, deve chamar-se Betty Carter (1930-1998). Menina, em Detroit, ela foi convidada a se apresentar ao lado de famoso jazzman que passava por ali, e não se fez de rogada – antes, alterou os documentos, pois era muito novinha. Mais tarde, vendo-a melhor, o mesmo astro (nada menos do que Charlie Parker) foi direto: “Você vai demorar a alcançar o topo, por ser inflexível”. Bird foi profético: Betty Carter se manteve intransigente com relação à sua música, e só quarenta anos depois foi reconhecida pela crítica  como o mais puro estilo vocal do jazz de todos os tempos – com o aval de Carmen McRae, numa frase dura: “É a única de nós que não se prostituiu”.
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Grande melodia, mas versos medíocres

How high the moon teve gravações de Ella Fitzgerald, Benny Goodman, Dave Brubeck, Harry James, Sarah Vaughan, Armstrong, Ellington, Chet Baker, Gloria Gaynor, Nat King Cole, Stan Kenton, Errol Garner – e mais. É a fórmula americana, de boa melodia em letra medíocre: depois de dizer que em “algum lugar existe música” (somewhere there’s music) e “em algum lugar é o céu” (somewhere there’s heaven) conclui-se que “a lua é muito alta” – enfim, uma coisa ininteligível para quem não é especialista nessa língua de barbares. Na companhia de Hank Jones (piano), Christian McBride (baixo), Hoy Hargrove (trompete) e Al Foster (bateria), Betty Carter mostra sua leitura da canção famosa.

(O.C.)

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GLOBO MUDA NOME DA “BÍBLIA” MUÇULMANA

Ousarme Citoaian

Em matéria sobre o dia do Ramadã, o repórter da Globo menciona duas vezes algo que pensei nunca mais ouvir: o Corão, referindo-se ao livro sagrado dos muçulmanos. A forma correta é o Alcorão – e o emprego de o Corão não é preferência, mas ignorância.  Há quem queira justificar a heresia argumentando que o al árabe é o nosso artigo o – daí dizer o Alcorão seria uma espécie de pleonasmo (haveria desnecessária  repetição do artigo o). O professor Mansour Challita, conhecedor das duas línguas, explica que as palavras árabes começadas com al tiveram esta parte incorporada ao português. Até eu sei de uma legião de exemplos.

EM CAMÕES, UM ABONO LUXUOSO E INSUSPEITO

Salvo melhor juízo, são de origem árabe as palavras alface, álgebra, algodão, almanaque, alforje, algoz e muitas outras. Para manter a coerência, os que traduzem Alcorão como o Corão deveriam falar (na ordem da lista acima) çúcar, gebra, godão, manaque, forje e goz. Onde está a incoerência, mora o erro, se não às claras, na sombra. Certo Luís Vaz de Camões (que todos conhecemos ao menos de nome) anotou em Os Lusíadas (estrofe 50 do canto 3º), publicado há mais de quatro séculos: “O português o encontra, denodado,/  Pelos peitos as lanças lhe atravessa:/ “Uns caem meio mortos, e outros vão/ A ajuda convocando do Alcorão”.

A LÍNGUA E O CHORO NO “EXÍLIO AMARGO”

“E que motivos haveria para meter-se o venerando vate lusitano em tal discussão?” – perguntaria algum distraído. Imagino que Camões, se vivo fosse, estaria lavando as mãos para essa pendenga, pois ela não lhe valeria a opinião, de tão óbvia. Mas paga a esta coluna o preço de ser um dos construtores da língua portuguesa, aquela em que ele “chorou, no exílio amargo, o gênio sem ventura e o amor sem brilho”. E seu abono (de exactos 4, 38 séculos) mostra que o Corão nunca existiu – salvo para os amigos das novidades inúteis. A propósito, a estrofe mencionada está na página 87, na minha edição de Os Lusíadas (Nova Cultural/2003).

DITADURA E DESORGANIZAÇÃO DA LINGUAGEM

A propósito de Daianas e Daiannes aqui referidas recentemente aproveitamos o gancho (no jargão do jornalismo, aquilo que nos dá motivo para produzir matéria) para falar um pouco mais sobre grafia de nomes próprios, o que constitui em nosso meio verdadeira salada. Perguntas freqüentes de jovens e (e alguns velhos) redatores: “Manuel é com U ou com O?”; “Antônio tem acento circunflexo?”; “Como escrevo esse Luís, com S ou com Z?”. A impressão que se tem é de estar num hospício, não num ambiente de profissionais com obrigação de ter boas noções da língua em que se comunicam com o público. A origem dessa babel está, imaginem, na ditadura militar – conforme o filólogo Marcos de Castro.

ONDE PASSA UM BOI, PASSA TODA A BOIADA

Antes, os jornais escreviam segundo o Vocabulário Ortográfico de 1943 (revisto em 1955), com os nomes próprios e comuns submetidos às mesmas regras. Às perguntas anteriores as respostas são: Manuel, Antônio e Luís (não Antonio, Manoel e Luiz). A coisa ia assim até certo momento dos anos setenta, quando o poderoso general Golbery do Couto e Silva se sentiu incomodado por ser chamado de Golberi pelo Jornal do Brasil e recorreu ao amigo Elio Gaspari (foto), então subeditor de Política do JB, para corrigir a “ofensa”.  O chefe da redação (não me lembra quem) aceitou o argumento de  Gaspari e deu no que deu: passou um boi, passou a boiada e os jornais sentiram o peso de outra ditadura, a dos cartórios.

OS CARTÓRIOS E O MODISMO VERDE-OLIVA

Quando Golberi virou Golbery entrou em vigor a lei do cartório, e a quase totalidade dos jornais (gosto de pensar que algum deles ainda resista ao odioso cartoricismo) adotou o modismo verde-oliva: Ulisses Guimarães (foto) passou a Ulysses, Miguel Arrais virou Arraes, Gilberto Freire ficou sendo Freyre, Ademar de Barros foi promovido a Adhemar, o poetinha, que era de Morais, hoje é Vinícius de Moraes, Ari e Rui agora são Ary e Ruy. E o pior aconteceu com nomes simples e singelos, a exemplo de Luís, Manuel, Sousa, Osvaldo, Tiago, Maria, Tomás (que passaram a aceitar dupla grafia, como se a língua no Brasil não tivesse normas a obedecer, como tem em Portugal, por exemplo. Dirão que minto, mas conheci, há poucos dias, uma Marya, assim com picilone.

NEM TERESA LISIEUX, SANTA, FOI POUPADA

Uma vítima da agressão ao Vocabulário Ortográfico foi Teresa, que se transformou (combinando a intervenção do general com a subserviência dos jornais da época e a ignorância de pais e escrivães de cartórios) em Tereza, Theresa e Thereza. Formas absurdas, pois a original (os católicos bem sabem) remete a Santa Teresa d´Ávila e Santa Teresa de Lisieux (foto). As outras grafias foram inventadas em cartório. Mas a vingança vem a cavalo. Pesquisa de Marcos de Castro em apenas três jornais do Brasil mostra que em 1985, quando morreu Médici (o mais sanguinário dos ditadores), sua viúva teve o nome grafado de oito formas: Scylla, Scyla, Scilla, Scila, Silla, Cylla, Cyla e o correto Cila. Bem feito.

POR QUE OS ESCRITORES ESCREVEM?

 O paulista José Domingos de Brito é um rato de biblioteca. Além de propriamente bibliotecário, é especialista em organização e administração de livros, com experiência em centros de documentação de várias grandes empresas. Tenho dele, lançado em 1999, o livro por que escrevo? – assim, com P minúsculo – pesquisa em que 96 escritores respondem a essa incômoda pergunta. Entre os mais conhecidos, e de respostas mais interessantes, está Érico Veríssimo (1905-1975): “Um verdadeiro escritor escreve por uma espécie de fatalidade, como a que leva o pinto a quebrar a bicadas a casca do ovo na hora certa, isto é, no momento determinado pela mãe-natureza, como diria Lucas Lesma” (Lesma é o jornalista de estilo pomposo de Incidente em Antares).

REMÉDIO CONTRA O VAZIO EXISTENCIAL

 

João Cabral de Melo Neto (1920-1999): “Sou como aquele sujeito que não tem perna e usa uma perna de pau, uma muleta. Escrever é uma maneira de me completar. A poesia preenche um vazio existencial”; William Faulkner (1897-1962), direto ao ponto: “Para ganhar a vida”; Millôr Fernandes (1924) deu resposta parecida: ”Sempre escrevi por necessidade, minha vida inteira”. Autran Dourado (1926): “Porque se não escrevesse já teria me matado”; Gabriel Garcia Márquez (1928) é o lírico que se esperava: “Para que meus amigos me amem mais”; Ignácio de Loyola Brandão (1936): “Para me divertir e divertir os outros”; Umberto Eco (1932), pra variar, complicou: “Eu escrevi porque meus filhos cresceram e eu não sabia mais para quem contar histórias”.

A ESCRITA COMO MEIO DE SOBREVIVER

“Se eu soubesse responder a essa pergunta deixaria de ser escritor. Não sei por que escrevo”, diz Fernando Sabino (1923-2004); Mário Vargas Lhosa (1936): “Escrevo porque é uma maneira de lutar contra a infelicidade”; “Eu escrevo para não morrer de tristeza nesse país desgraçado” – disparou o longevo anarquista Ernesto Sábato (1911); Jorge Amado (1912-2001): “Eu escrevo por não poder deixar de escrever, de escrever romances, de recriar a vida”; “Escrevo por que minha sobrevivência depende disso”, responde Márcio de Souza (1946); Clarice Lispector (1920-1977): “Escrevo como que para salvar a vida de alguém, provavelmente a minha”; e do mau humor de Graciliano Ramos (1882-1953) a resposta esperada: “Sei lá!”
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PRIMAVERA, FLORES, BACH E VINÍCIUS

Como a primavera (dita estação das flores) está à porta, achei oportuno postar aqui um vídeo apropriado para a estação. É música não muito nova (a letra, mais jovem, tem só 49 anos!), mas que merece ser dividida com eventuais leitores esquecidos. Trata-se de Rancho das flores, surpreendente parceria de Vinícius de Morais com Johann Sebastian Bach, separados por 228 anos – Bach nasceu em 1685; Vinícius em 1913. A letra do poetinha foi posta sobre a Cantada 141 (mais conhecida como Jesus, alegria dos homens), e teve a primeira gravação com a Banda do Corpo de Bombeiros do Rio de Janeiro (e coral), em 1961.

ROSA É MULHER RECENDENDO DE AMOR

Esse longo poema tem a marca do lirismo de Vinícius, que a tantos encantou: versos simples, singelos, comunicativos, que nos tocam profundamente: ele diz que “a natureza alegrou este mundo onde há tanta tristeza” – e que nesse programa de alegrar o mundo, as flores se destacam.  Elas são “um milagre do aroma florido mais lindo que todas as graças do céu”. A rosa (“que em perfume e em nobreza vem antes do cravo, e do lírio, e da hortência e da dália, e do bom crisântemo e até mesmo do puro e gentil mal-me-quer”) é personificada: – de “flor mais vaidosa e mais prosa”, atinge a condição de “mulher recendendo de amor”.
</span><strong><span style=”color: #ffffff;”> </span></strong></div> <h3 style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>E FRED JORGE CRIOU CELLY CAMPELLO!</span></h3> <div style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>No auge do sucesso, em 1965, a música teve uma versão no Brasil, gravada por Agnaldo Timóteo. Como costuma ocorrer com as

CANÇÃO QUE NÃO ACORDOU O MERCADO

Conheço poucas gravações de Rancho das flores. Imagino que ao escolher o ritmo de marcha-rancho (um andamento fora de moda, mesmo nos anos sessenta), Vinícius condenou ao esquecimento seu belo tratado sobre rosas, dálias, hortênsias e mal-me-queres, pois a marcha-rancho, coisa de nostálgicos como eu, pouco interesse despertou no mercado fonográfico. Em 2008, o músico cearense Raimundo Fagner, de reconhecido bom gosto, reviveu a parceria J. S. Bach e Vinícius de Morais no disco Fortaleza (seu arranjo, ao se aproximar de Bach, distancia-se da marcha-rancho).

(O.C.)