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JÂNIO QUADROS: DE PRONOMES E MINISTROS

Ousarme Citoaian

Dizia-se, com boa dose de maldade, que o presidente Jânio Quadros era melhor para colocar pronomes do que ministros. O velho JQ, com as qualidades e defeitos inerentes ao ser humano, era professor de português, gramaticista à moda antiga e, em tal condição, sabia bem de pronomes. A famosa frase “Fi-lo porque o quis” (transformada na folclórica “Fi-lo porque qui-lo”, destituída de sentido lógico) dá bom exemplo do rebuscamento com que aquele político tratava a língua portuguesa. Ele jamais diria, nem sob tortura, “Vou procurar-lhe”, mas “Vou procurá-lo” – conforme preceitua a norma culta.

LEMBRANÇA QUE SAI DE CINZAS REVOLVIDAS

Estaria este hebdomático e fatigado colunista com algum tipo de nostalgia janista? Falemos sério: Jânio não faz meu gênero e sua lembrança apenas saiu das cinzas revolvidas com o anúncio do livro Minha Ilhéus, de José Nazal. Diz o texto que a editora deseja “convidar-lhe” para o lançamento – uma construção positivamente infeliz. Alguns verbos (e, na minha memória de ex-aluno do professor Chalupp, convidar encabeça a lista) são inimigos declarados do pronome “lhe”: abraçar, beijar, adorar, procurar, amar, encontrar, ameaçar e desejar estão entre os que não gostam do “lhe”.

LEITORA: NÃO PERMITA QUE ELE “LHE” AME

Recomendamos a eventuais leitoras incautas que, se acaso um sujeito manifestar intenções de amar-lhe, desejar-lhe, adorar-lhe, abraçar-lhe (ou outras agressões freudianas e gramaticais) corra, pois ele é menos inteligente do que romântico. Livre-se do tipo, antes que ele passe a tratá-la com a mesma grosseria com que trata a gramática. Prefira alguém que lhe diga “Eu a adoro”, “Eu a amo”, “Eu a abraço”, “Eu a beijo”, “Eu a amasso” e por aí vai. E em caso de a moça declarar-se ao maluco, a regra é a mesma. Se ela grafar “Eu lhe desejo” (em vez do civilizado “Eu o desejo”) é provável que o romance dê com os burros n´água, mais cedo do que o habitual.

ANÚNCIO DE LIVRO EXIGE LÍNGUA FORMAL

No coloquial do dia-a-dia ninguém liga para o uso correto de pronomes (as exceções eram o citado Jânio Quadros e o jurista Josaphat Marinho). Mas é diferente com a língua padrão, que precisa seguir as normas gramaticais. E não me venha a CLMH (Comunidade dos Linguistas Mal-Humorados) justificar isto como linguagem do povo: o texto referido tem os nomes de um escritor, uma editora e uma academia de letras, portanto, o informal nada tem a ver com isto. O anúncio há de ser vazado em língua culta: “… alegria de convidá-lo” (ou convidá-la, é óbvio). Jamais “convidar-lhe”. Houve transgressão, sem dúvida.

NÃO É POSSÍVEL COMER O QUE É LÍQUIDO

Já acaba o espaço, mas não resisto a outra anedota sobre o ex-presidente, provavelmente inventada, e que o folclore tornou mais poderosa do que a realidade.  Então, vamos a uma das versões circulantes. Admirador das destilarias da Escócia, Jânio Quadros enfrentou o preconceito da sociedade brasileira e a bisbilhotice de um jornalista, que lhe perguntou, acintosamente: Por que o senhor bebe tanto? E JQ, com ar de compaixão diante de tamanha ignorância, foi didático no exercício do seu senso de humor absolutamente britânico: Bebo porque o uísque é líquido; se fosse sólido, comê-lo-ia, com garfo e faca.

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NINGUÉM GOSTA DE PROVOCAR COMPAIXÃO

De repente, me lembro de uma situação recorrente na MPB, abordada por vários autores.  É o tema de “não dar o braço a torcer”, não demonstrar o que o poeta sente de fato, não permitir que seu sofrimento seja partilhado pelos outros. Entre a carência da solidariedade e o desdém (talvez vingança) que essa necessidade provoca, é melhor não arriscar: então, fazemos aquela cara de que está tudo bem, e quem pensava que iria rir do nosso padecer, errou. Ardemos por dentro, é verdade, mas os inimigos não terão o gostinho de saber disso. Eles só nos verão limpos, cheirosos e com um amplo sorriso no rosto. Aqui pra eles!

QUEM É BOM SOFREDOR NÃO DÁ BANDEIRA

Noel Rosa tinha uma “filosofia” que o ajudava com esse problema: “Nesta prontidão sem fim/ Vou fingindo que sou rico/ Pra ninguém zombar de mim” (Filosofia, com André Filho/1933). Pausa para lembrar que “prontidão” é gíria da época: estado de quem está sem dinheiro, pronto, duro, liso. Não quero abusar, apesar do centenário que, como fã (hoje chamam tiete!), continuo nas comemorações, mas isto aqui também é Noel (na caricatura de Luquefar): “Quem é que já sofreu mais do que eu?/ Quem é que já me viu chorar?/ Sofrer foi o prazer que Deus me deu/ Eu sei sofrer sem reclamar” (Eu sei sofrer/1937). A fórmula geral é não dar bandeira.

AS LÁGRIMAS DO POETA NINGUÉM VÊ CAIR

De Zé com Fome e Ataulpho Alves, Orlando Silva cantava: “Pra ninguém zombar,/ Pra ninguém sorrir/ É só no coração que eu sei chorar/ O pranto meu ninguém vê cair” (Meu pranto ninguém vê/1938). A dupla Humberto Teixeira e Luiz Gonzaga também comparece: “Mas ninguém pode dizer/ Que me viu triste a chorar/ Saudade, o meu remédio é cantar” (Qui nem jiló/1949). Candeia (Pintura sem arte/1978), fala de sua cruel prisão à cadeira de rodas: “Mas se é pra chorar, choro cantando/ Pra ninguém me ver sofrendo/ E dizer que estou pagando” (Alcione, com aquela categoria que o mundo aplaude, regravou este samba em 1981).

AONDE A SAUDADE VAI A DOR VAI ATRÁS

Se alguém pensou que esta conversa desaguaria em Fernando Pessoa (1888-1935), tudo bem.  Aqui vai, com desculpas pela previsibilidade, a primeira quadra de Autopsicografia/1930: “O poeta é um fingidor:/ Finge tão completamente/ Que chega a fingir que é dor/ A dor que deveras sente”. Claro. Fingir é fugir (ops!) a certos gêneros de padecimentos morais. E, para finalizar, Noel (é o centenário, gente!), com uma saída muito engenhosa em Tenho um novo amor/1932 (com Cartola): “Se acaso algum dia se apagar/ do teu pensamento o meu amor/ para não chorar e não mais penar/ mando embora a saudade/ prá livrar-me da dor”.

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GILBERTO GIL E O SAMBA DA “DESPEDIDA”

Os mais jovens (eventualmente, é uma grande falta de sorte ser jovem) não viram o que significou Aquele abraço, canção que Gilberto Gil fez em 1969, para se despedir do Brasil. Ele e Caetano, depois de presos e com as cabeças raspadas, foram “autorizados” a deixar o País. A música, que virou mania nacional, é rica em símbolos e sugestões: de saída, Gil louva sua aldeia, ao dedicar Aquele abraço “a Dorival Caymmi, João Gilberto e Caetano Veloso”, para mais tarde mandar um desaforo à ditadura: “Meu caminho pelo mundo/ Eu mesmo traço/ A Bahia já me deu/ Régua e compasso/ Quem sabe de mim sou eu/Aquele abraço”. Perca-se tudo, mas salve-se a dignidade.

NO FLAMENGO GIL ACHOU RIMA E SOLUÇÃO

Há outras mensagens nem sempre explícitas: Realengo não é mencionado por acaso, mas para debochar do arbítrio – foi no quartel do Exército naquele subúrbio que Gil e Caetano ficaram presos. O Flamengo é outra entrada nada casual, marca da ironia do artista com a chamada nação rubro-negra: o Fluminense havia conquistado o título carioca, ao vencer o Flamengo por 3 x 2, Gil era um dos 171 mil torcedores no Maracanã e viu a tristeza da massa. Com seu “abraço” ele está dizendo aos derrotados que “o importante é competir” (ou “consolo” semelhante). Torcedor do Fluminense, Gil encontrou no Flamengo rima (para Realengo) e solução (para tirar sarro do rival).

CHACRINHA, A ANTÍTESE DO POSITIVISMO

Depois de exaltar o dolce far niente (carnaval, futebol, banda de Ipanema) do Rio de Janeiro, que (apesar de tudo) “continua lindo”, o baiano elege para ícone e ápice da ironia o pernambucano Abelardo Barbosa, Chacrinha. O apresentador, que “continua balançando a pança”, é a outra face do positivismo pregado pela ditadura, a anarquia organizada (“Eu vim para confundir, não para explicar”), o anti-Ordem e Progresso, a bagunça, a geléia geral brasileira. Se a ditadura é a tese, Chacrinha é a antítese – e o menino Gilberto Gil (27 anos na época) é o arauto, exegeta, explicador do processo. As mensagens se sucedem, sempre com a expressão “continua”.

AOS 27 ANOS GILBERTO GIL JÁ LEVITAVA

A vida, mesmo com a violência dos que tomaram o poder à força, segue, escrachada, fora do figurino oficial verde-oliva: além de balançar a pança politicamente incorreta, o Velho Guerreiro (na charge) continua “buzinando a moça” (um duplo sentido de indiscutível bom gosto), “comandando a massa” e “dando as ordens no terreiro” – não importa o que digam, que falem, que pensem ou queiram os usurpadores, o povo parece ter outra regra e compasso. No vídeo raro, feito em 1979, Gilberto Gil em estado de graça, zen, sideral, elevado, celeste, quase levitando, puro, de uma forma que os recursos eletrônicos não mais nos permitem ver (e com um ótimo improviso no final). O eterno Gil.

(O.C.)

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AFINAL, ELA É PRESIDENTE OU PRESIDENTA?

Ousarme Citoaian

Retomemos, conforme promessa, a discussão sobre as opções presidente/presidenta, assunto pertinente, quando o Brasil escolhe sua primeira presidenta. E pronto: já fiz, antecipadamente, minha escolha. Mas, como tudo neste espaço, trata-se de opinião, preferência, havendo argumentos igualmente ponderáveis para Dilma presidente. O professor Pasquale Cipro Neto, em moda nas diversas mídias, prefere presidente – argumentando que as palavras terminadas em “nte” não variam de gênero, sendo marcadas pelo artigo “o” ou “a” (e exemplifica: o gerente, a gerente; o pedinte, a pedinte e, claro, o presidente, a presidente).

PROFESSSORES MOSTRAM OPINIÕES DIFERENTES

Mas não há unanimidade entre os professores. Em Salvador, o Instituto Kumon, que tem mais de 2,5 mil alunos, não concorda com Cipro Neto (foto). “Presidenta é melhor porque deixa claro ser uma mulher e a questão de gênero agora vai tomar novo fôlego no Brasil,” entusiasma-se a professora baiana, filha de pais russos, Nadegda Kochergin. Em favor de presidenta, a história da língua portuguesa mostra que a forma feminina teve dificuldades para se estabelecer em professora, doutora e juíza, que também soaram estranho nos primeiros tempos, mas depois foram assimilados no falar cotidiano dos brasileiros.

EXEMPLOS BONS DO CHILE E DA ARGENTINA

Na Argentina, Cristina Kirchner jamais deixou dúvidas sobre sua preferência: “Presidenta! Comecem a se acostumar: presidentaaaa… e não presidente!”,  gritava nos palanques. Empossada, devolvia os documento que chegavam à Casa Rosada endereçados à “presidente”. No Chile, Michelle Bachelet (foto) adotou o mesmo modelo e se fez chamar presidenta. Mas é verdade que as brasileiras não têm contribuído para o avanço: a jurista Ellen Gracie se disse presidente do Supremo Tribunal Federal, a escritora Nélida Piñon era “a primeira presidente” da Academia Brasileira de Letras e a nadadora Patrícia Amorim se anuncia como presidente do Flamengo.

PRECONCEITO SERÁ SEDIMENTADO PELA MÍDIA

Data vênia, o professor Cipro Neto põe gerente, pedinte e presidente no mesmo saco, misturando, não se sabe com que intuito, alhos e bugalhos: as duas primeiras são invariáveis em gênero, identificando-o apenas pela anteposição do artigo. Já presidente tem como feminino presidenta. Na campanha, Dilma se mostrou inclinada a se fazer chamar de presidenta. Mas a mídia – em geral tão conservadora quanto a própria sociedade – tende para presidente, em nome da “facilidade” e do hábito. Vai ignorar a lógica, opor-se ao novo e sedimentar o preconceito gramatical contra as mulheres – e, por certo, com a inteira colaboração destas. Clique e veja a preferência de Dilma.

A MELHOR HERANÇA É O EXEMPLO DE VIDA

Em recente artigo na Envolverde (Aos nossos filhos, 11.11.2010), Frei Beto (foto) fala do legado a ser deixado para os filhos, e afirma que não há mal em “fazer um pé-de-meia, de olho no futuro dos seus rebentos”, mas faz uma advertência: “Não é dinheiro o que um filho mais espera dos pais, ainda que não saiba expressá-lo. É amor, amizade, apoio e, sobretudo, exemplo de vida”. E cita Thomas Mann (autor de A montanha mágica): “Um bom exemplo é o melhor legado dos pais aos filhos”. O religioso conclui que “nada mais perigoso a um jovem que centrar sua autoestima na conta bancária ou no patrimônio familiar”.

MILTON SANTOS: DA ALDEIA PARA A GLÓRIA

Embora concorde com a tese de Frei Beto, não entro em detalhes sobre ela (quem quiser fazê-lo já sabe onde encontrá-la), por fugir ao espírito da coluna. O que eu queria dizer é que, a certa altura, em favor de seu argumento, o autor anota: “O professor Milton Santos, da USP, enfatizava a importância de se perseguir os bens infinitos, e não apenas os finitos”. Confesso meu orgulho ao ver as freqüentes referências ao velho mestre do Instituto Municipal de Educação (IME), de Ilhéus, um nome que ilumina o pensamento nacional, mas é desconhecido aqui na região onde despontou para a glória do mundo.

EXISTIR É O MAIOR DIREITO DE TODOS NÓS

A escritora Aninha Franco (foto) trouxe aos jornais, com a eleição do dia 31, a divisa “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, da Revolução Francesa de 1789, como foco a ser perseguido pelo  Brasil dos próximos tempos – e me fez lembrar um texto de Robespierre (escrito uns quatro anos mais tarde): “O pensamento diretor é o de existir. A primeira lei social é, portanto, a que assegura a todos os membros da sociedade o direito de existir – todos os demais lhe são subordinados”. Vê-se como os princípios gestados no Iluminismo ainda estão pulsantes, seculares, mas jovens e “perigosos”. E todo esse francesismo me remete, de alguma forma a Gilberto Gil e seu eterno deus Mu Dança.

A MUDANÇA É FEITA COM PAZ OU COM ARMAS

“Sente-se a moçada descontente onde quer que se vá/ Sente-se que a coisa já não pode ficar como está/ Sente-se a decisão dessa gente em se manifestar/  Sente-se o que a massa sente, a massa quer gritar: ´A gente quer mudança´./ O dia da mudança, a hora da mudança, o gesto da mudança/. Sente-se tranqüilamente e ponha-se a raciocinar/ Sente-se na arquibancada ou sente-se à mesa de um bar/ Sente-se onde haja gente, logo você vai notar/ Sente-se algo diferente: a massa quer se levantar pra ver mudança, o time da mudança, o jogo da mudança, o lance da mudança”. É o novo chegando, anuncia o poeta: “Talvez em paz Mu dança/ Talvez com sua lança!”

TODOS OS HOMENS NASCEM LIVRES E IGUAIS

Estamos vivendo uma transformação de hábitos à brasileira: lenta, silenciosa, sem sangue, mas persistente. Nossa revolução, sem a guilhotina dos homens insensatos ou a lança do irado deus Mu dança, aproxima-nos, aos poucos, da liberdade, da paz, da igualdade, da fraternidade, da igualdade entre os brasileiros, com base em mais este legado da Revolução Francesa: “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos; as distinções sociais não podem ser fundadas senão sobre a utilidade comum”. No  Brasil já se extinguiu o voto de qualidade, deixando todos com o mesmo valor e sepultando a odiosa frase “brasileiro não sabe votar”. É um (bom) começo.

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E MILES DAVIS RECRIOU ZÉ COM FOME…

Zé com Fome, Zé da Zilda ou José Gonçalves (1908-1954) teve seu samba Aos pés da cruz (com Marino Pinto) lançado por Orlando Silva, com êxito retumbante. A canção ganhou registros surpreendentes do violonista Baden Powell (cantando!) e de Miles Davis, o divino trompetista do jazz, do rock e da fusion. Aos pés da cruz carrega um verso nada cartesiano que deu muito o que falar: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”  – uma transcrição direta de Pascal (1623-1662): Le coeur a des raisons que la raison ne connaît pas, suficiente para que um crítico indignado apontasse seu dedo acusador, aos gritos de “Plágio! Plágio!” .

PASCAL: “NOME DE CACHORRINHO DE MADAME”

Já não me lembra o nome do crítico apoplético, mas sei que em defesa de Zé da Zilda veio o jornalista Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), e veio com tudo: disse (a rigor, escreveu) que o compositor jamais ouvira falar do filósofo francês e que para o homem simples que era o letrista de Aos pés da cruz, Pascal deveria ser “nome de cachorrinho de madame”. Excessos à parte, também acho improvável que o autor da marcha Saca-rolha, nascido e vivido na cultura das ruas, houvesse alguma vez lido um erudito francês do século XVII. Imagino que Zé com Fome ouviu a frase por aí e se apossou dela, como quem pega passarinho em visgueira.

JOÃO TIRA O CHAPÉU PARA A VELHA-GUARDA

Em 1959, no LP Chega de saudade (aquele que é tido como o abre alas da bossa-nova), João Gilberto faz novas gravações, em homenagem à turma da velha-guarda do samba. Ao lado de temas que consagrariam o novo movimento musical (como Chega de saudade e Desafinado), ele recuperou temas eternas do cancioneiro nacional, alguns então esquecidos: lá estão Rosa morena, de Caymmi, É luxo só (Ari e Luiz Peixoto) e Morena boca de ouro, de Ari Barroso (foto). Nessa leva, mostrando que a bossa-nova queria manter um pé em nossos clássicos populares, Aos pés da cruz ganhou leitura especial. Clique e veja um trecho.

(O.C.)

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JORNALISMO NO TEMPO EM QUE SE SONHAVA

Ousarme Citoaian

Em outros tempos e costumes, o jornalismo era praticado como uma espécie de sacerdócio (o termo foi mais comumente usado para os professores e vai aqui empregado por falta de outro mais adequado). Habitadas por poetas e boêmios, as redações muito diferiam de hoje, pois tinham poucos “profissionais” e muitos sonhadores. Era a época do revisor (que escoimava o texto de eventuais solecismos) e do copidesque (garantia de que o texto saisse da oficina sem um defeito). Mas o meu preferido nessa fauna sempre foi o mancheteiro, o cara que fazia as manchetes.

RAPIDEZ, CRIATIVIDADE, PODER DE SÍNTESE

Fazer boas manchetes não é fácil: exige do redator poder de síntese, rapidez e criatividade, dizer o que precisa num espaço limitado (a quantidade de toques)  – e fazer isto tudo sob pressão do tempo, pois a gráfica está gritando que é hora de fechar. O jornalista Wilson Ibiapina reuniu algumas jóias de craques na complicada arte das manchetes. Uma de Felizardo Montalverne (chefe de redação do Correio do Ceará): “Todo fumante morre de câncer, se outra doença não o matar primeiro”. No Rio, O Dia teve um dos mais famosos mancheteiros de nossa imprensa: Santa Cruz. Vejamos alguns casos, a seguir.

JÂNIO EM CAMPANHA: DA FARSA À COMÉDIA

Sobre a mulher traída que castrou o marido: “Cortou o mal pela raiz”; ao padre prefeito que autorizou o aumento do preço da carne: “Padre não resiste à tentação da carne”. É comum que suicidas se joguem da ponte Rio-Niterói, mas o delegado Almir Pereira preferiu dar um tiro na cabeça, e A Notícia viu assim o tresloucado gesto: “Atirou em vez de se atirar”. Jânio (foto) volta do exterior em 1962 e desfila num bonde de Vila Maria, em São Paulo, com boné de motorneiro. A manchete da Última Hora foi “Jânio Quadros: da farsa da renúncia à comédia da volta”. É a minha preferida.

MORRO DESMORONA SOBRE CANDIDATA DO PT

Os grandes jornais, perdida a antiga verve, se nivelam em falta de graça. Os regionais tratam o leitor como se criatividade fosse artigo proibido nas redações. Duas manchetes ilustram bem os dois casos: o JB (recentemente falecido), em 10/2/2010, ao anunciar a vitória da Beija-Flor, exaltou a segunda colocada: “Tijuca, inovadora intrusa no reino da Beija-Flor”; o Agora (de Itabuna), em 27/10/2010: “Serra esmaga Dilma em debate da Record”. Da primeira, nada se entende. A segunda nos faz pensar que uma serra (ou um morro) deslizou sobre o estúdio da tevê, levando a presidenta desta para melhor.

TROCADILHO: UMA “FEBRE” RECIDIVANTE

No começo do século XX, o trocadilho (do francês jeu de mots = jogo de palavras) era quase uma febre. Depois, como toda moda, perdeu o encanto e passou até a ser considerado coisa de mau gosto, subliteratura. Pois eu o acho estimulante, desde que feito com inteligência e oportunidade. A política, bom campo para esse exercício, me traz à memória três casos: 1) Getúlio Vargas, dito “Pai dos pobres”, foi chamado por um opositor de “Mãe dos ricos”; 2) à divisa integralista “Deus, Pátria e Família”, o Barão de Itararé (foto) respondeu no seu A Manha com “Adeus, Pátria e Família”; 3) em final de campanha, Dilma surpreendeu, ao dizer: “a oposição está de serra abaixo”.

ANTÔNIO VIEIRA (O PADRE) ERA DO RAMO

Trocadilhos, versos mordazes, críticas candentes aos costumes da época (sobretudo aos políticos) fizeram a fama do mais perverso dos trocadilhistas brasileiros, Emílio de Menezes. Tal gênero também foi cultivado, pasmem, pelo circunspecto padre Antônio Vieira. É de sua lavra a frase “Com tais premissas ele sem dúvida leva-nos às primícias”. De Emílio (que atirou seu veneno sobre Ruy Barbosa, a Academia Brasileira de Letras e quem mais estivesse próximo) todos sabem pelo menos um dito espirituoso, pois eles existem à mancheia no livro clássico Emílio de Menezes, o último boêmio (Raimundo de Menezes/1949, Coleção Saraiva, só disponível nos melhores sebos).

ALBERTO HOISEL, O SATÍRICO DA REGIÃO

Deixando de lado os nacionalmente famosos, não resisto a citar alguns calembures da lavra do satírico ilheense Alberto Hoisel, do livro Solo de Trombone (Antônio Lopes/2001, disponível na Editus/Uesc). Sobre o advogado Tandick Rezende, baixinho (pouco mais de 1,50 m), parceiro de cerveja, Hoisel deu a sentença: “Ele bebe para ficar alto”; quando o ascensorista o avisou de que o elevador do Banco Econômico estava “quebrado”, ele se deu por feliz: “Ainda bem que não foi o banco”; o atraso no noticiário do Diário da Tarde ele analisou assim: “Com vocação vitalícia/ Para a imprensa sem alarde/ Até a própria notícia/ Nosso diário dá…tarde!”.

TROCADILHISTA QUE NÃO TROCA DE LISTA

A quadrinha satírica tem no trocadilho uma ajuda decisiva para sua força, graça e maldade, como mostra o satírico ilheense. Certo Nacib definiu Alberto como “um dos maiores trocadilhistas do país” e ele fez sua profissão de fé integralista ao responder ao elogio: “Se a exceção foge à regra,/ Nacib que tenha em vista:/ Este é um que a lista integra/ E nunca troca de lista”. Ou, escrita num guardanapo na boate Night and Day (Rio de Janeiro), homenagem ao jornalista Fernando Leite Mendes (na foto, ao microfone), seu companheiro de mesa: “Lei! Tu sempre foste errada,/Por isso ninguém te entende…/E sem que faça piada/Eu te digo: ´Lei, te emendes!´”.

ELIS SE ACHAVA A PRÓPRIA LIZA MINELLI

Procuro no Google e não encontro (prova de que nada é perfeito) este causo envolvendo Elis Regina e o (dentre outras coisas) produtor musical Luiz Carlos Miéle. Então, vamos à memória: a cantora, recém-chegada de Porto Alegre, novinha em folha, discutia com o produtor o cachê para um show no Beco das Garrafas, reduto da Bossa-Nova nos anos sessenta, no Rio de Janeiro. Quando disse o preço, Miéle estrilou: “Você acha que é alguma Liza Minelli?” – e a desconhecida e ousada Elis Regina respondeu, na tampa: “Acho”.  Elis era assim: corajosa, atrevida, competitiva, sabendo onde ficava o próprio nariz (um pouco arrebitado, é verdade).

A IMPRESSIONANTE MUDANÇA DAS COISAS

Miéle (foto), hoje com mais de 70 anos, está envolvido em muitas dessas histórias engraçadas, algumas como personagem central. Como esta, que o mostra um tanto desligado do mundo. Ele conta que, há alguns anos, entrou numa loja de música e pediu para ver uns discos de Frank Sinatra. O vendedor fez cara de compaixão, como se achasse que o cliente estava esclerosado. Ofendido com o aparente desdém do cara, Miéle reclamou: “Vai me dizer que nesta loja não existe disco de Frank Sinatra?”, ao que o vendedor, como se falasse a uma criança, explicou: “Não, Miéle, é que não existe mais disco”. O produtor saiu, dizendo-se “triste, com a impressionante mudança das coisas”.

NO BRASIL SÓ DUAS CANTORAS: “GAL E EU”

Voltemos a Elis Regina. Muitos anos e declarações polêmicas mais tarde, ela – falando de cantoras brasileiras – disse: “No Brasil, só há duas que cantam, Gal e eu”. Se aceitássemos como verdadeira esta apaixonada avaliação, só nos restaria uma grande cantora (Elis morreu em 1982, aos 37 anos). Sem critérios técnicos, mas apenas por preferência, acho que as duas são nossas maiores intérpretes. Prefiro Elis, pois vejo certa frieza técnica em Gal, mesmo assim “a cantora” baiana. Minha lista tem Alcione, sem esquecer que Ângela Maria é referência nacional, até para Elis Regina. E ela estava em dia de modéstia: disse “Gal e eu”, não “Eu e Gal”.
</span><strong><span style=”color: #ffffff;”> </span></strong></div> <h3 style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>E FRED JORGE CRIOU CELLY CAMPELLO!</span></h3> <div style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>No auge do sucesso, em 1965, a música teve uma versão no Brasil, gravada por Agnaldo Timóteo. Como costuma ocorrer com as

UMA CANÇÃO QUE “TODO MUNDO” GRAVOU

Wave, um dos temas mais famosos de Tom Jobim, teve a versão cantada lançada por João Gilberto, no disco Amoroso, de 1977. Depois, ganhou o vasto mundo nas gravações de artistas diversos, dentre os quais Gal Costa, o próprio Tom, Ella Fitzgerald, Rosa Passos, Elis Regina, Sarah Vaughan, Leny Andrade (foto), Stan Getz, Joe Henderson, Wilson Simonal, Frank Sinatra e Anita O´Day (que abria e encerrava seus shows com esta música). No vídeo, Gal, impecável como sempre.

(O.C)

(O.C.)

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Esta semana o UNIVERSO PARALELO usa como gancho a seleção brasileira de futebol para fazer provocações sobre patriotismo e patriotada – o tópico principal do que o colunista chama de MVD (Manuel das Virtudes do Dunguismo).

Ousarme Citoaian relembra Nelson Rodrigues, criador de personagens como Palhares (o canalha nosso de cada dia), o Sobrenatural de Almeida (que já se insinuou no primeiro jogo do Brasil) e a Grã-fina das narinas de cadáver – típica torcedora bissexta, que anda por aí vestida de verde e amarelo, a perguntar quem é a bola.

E para os eternos fãs da Bossa-Nova, um vídeo raro de “Garota de Ipanema”, com João Gilberto, quem diria, expelindo bom humor por todos os poros, tendo Tom Jobim ao piano.

Para chegar ao mais recente UNIVERSO PARALELO, chute aqui.

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Leandro Afonso | www.ohomemsemnome.blogspot.com

É comum biografados ou documentados segurarem filmes pelas suas presenças ou pelos seus passados. O melhor expoente brasileiro talvez seja Pelé Eterno (2004), de Anibal Massani Neto, e um exemplo recente é o Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague (2009), de Emmanuel Laurent. Nesses casos, e em alguns outros, o resultado pode vir de uma preguiça do realizador, mas também de uma incontrolável intensidade daquilo tratado na tela. Filhos de João – O Admirável Mundo Novo Baiano (idem – Brasil, 2009), estreia na longa-metragem de Henrique Dantas, se encaixa muito mais no segundo caso.

O documentário, que o diretor disse ter levado 11 anos para ficar pronto, fala sobre Os Novos Baianos, grupo que, para encurtar a conversa, viu a versão brasileira da Revista Rolling Stone, em 2007, eleger seu álbum Acabou Chorare (1972) como o maior disco brasileiro da história. No entanto, o filme investe menos numa mitificação do quão bom era o grupo e mais em questões pontuais sobre ele: o porquê do nome, a relação com João Gilberto, a mudança do som, o ápice, as relações, o porquê do fim e muitos, muitos casos e causos.

Se nos primeiros questionamentos, e em todo o filme, ficamos com a ideia de alguém que sabia exatamente o que mostrar, felizmente isso não resulta em uma já pré-concebida e obsessiva mensagem a ser passada. Dantas passa a sensação de que sabia o que perguntar e soube exatamente como editar. Ele se mostra humilde ao reconhecer a importância dos entrevistados e deixá-los levar o filme, e demonstra controle do meio para dar ritmo – mesmo que ele próprio faça ressalvas o filme.

“Nós sabíamos que a maior presença do filme seria a ausência de João Gilberto”, disse após a sessão. Ele tentou contactar o compositor, mas os oito dias de insucesso se aliaram ao baixo orçamento do filme e o fizeram desistir da ideia. Baby Consuelo, outra ausência no corte final, decidiu não liberar mais suas imagens. O que se por um lado é um contra do filme, por outro não é por demérito dele, e Dantas se vira bem com o que sobra. Desde depoimentos dos outros membros até imagens de arquivo, passando por momentos brilhantes – seja para ajudar na construção do grupo com a visão de alguém de fora, seja por divagações homéricas – de Tom Zé (foto acima).

Os muitos aplausos do final, em sala super-lotada (do meu lado vi quatro pessoas sentadas no chão, em espaço que comportava três em pé), soaram como uma espécie de suspiro de um cinema que se basta por ser bem executado e ter algo a dizer. Isso porque, semana passada, o crítico André Setaro causou polêmica ao dizer (não vi o programa, apenas ouvi os comentários) que o cinema na Bahia se resumia basicamente a Edgard Navarro – que, inclusive, tem imagens de seu Superoutro (1989) aqui.

Sem entrar na controvérsia (aqui não é o espaço), enquanto não estreia O Homem que não Dormia, novo filme de Navarro, e O Jardim das Folhas Sagradas, de Pola Ribeiro, Henrique Dantas (homem das artes plásticas e que já trabalhou até com Manoel de Oliveira) chega com força. Sem a aparente pretensão de salvar ou revolucionar nada, mas com honestidade e qualidade sempre bem-vindas – e poucas vezes encontradas nas bandas de cá num tempo recente. Triste vê-lo sair sem nenhum prêmio do evento.

Visto no Espaço Unibanco (Panorama Internacional Coisa de Cinema) – junho de 2010.

8mm

Recife Frio

O ponto mais alto do Panorama Internacional Coisa de Cinema, e que para mim levaria todos os prêmios possíveis, foi Recife Frio (idem – Brasil, 2009), de Kleber Mendonça Filho. Após o documentário Crítico (2008), seu primeiro longa, KMF volta ao curta-metragem com aquele que talvez seja seu melhor filme. Falso documentário, ficção-científica, crítica social, histórica, política e religiosa. Quando descrito, Recife Frio tem inimaginável megalomania; quando visto, a sutileza de um poema para um diário.

Uma emissora argentina faz um documentário sobre Recife, que misteriosamente vê suas temperaturas caírem depois de atingida por um objeto, aparente motivo da mudança climática. Entre outras coisas, o documentário fala sobre a cidade e seus defeitos, e fala sobre as diferentes reações e diferentes justificativas que cada um busca para encarar o fenômeno.

Recife Frio flui com a naturalidade de um filme de gênero bem comportado e calculado, só que com a inventividade de um híbrido poucas vezes visto – e com o parêntese de que, diferente de alguns casos do filme de gênero bem comportado e calculado, aqui temos alma. Alma de alguém que, como em alguns de seus outros curtas (Menina do Algodão, Eletrodoméstica), se mostra afetado – às vezes mais, às vezes menos – por sua cidade, conhecedor de suas imperfeições, e próximo da perfeição ao se expressar sobre ela e (por que não?) o cinema, através do cinema. KMF disse que pensou em fazer arquitetura (desistiu ao pensar em matemática), mas que hoje em dia ela o interessa mais quando dá errado. Seria lindo se todo erro, uma vez irreversível, resultasse em tamanho acerto.

Pouco antes do festival de Cannes, após 12 anos, KMF abandonou a crítica. Disse que a deixava, também, para se dedicar ao seu primeiro longa. Recife Frio, mais que isso, dá a impressão de que KMF deixa parte da vida (do cinema) para fazer histórias.

Panorama

Com o VI Panorama Internacional Coisa de Cinema, que aconteceu em Salvador, decidi mudar o esquema de filmes da semana. Já que vi, no mesmo período, fora do evento, apenas Tudo Pode Dar Certo (2009), de Woody Allen, e O Escritor Fantasma (2010), de Roman Polanski, eles entram na lista dos filmes do mês. O resto entra em lista específica do Panorama.

A maior falha, além de não ter visto a todos os filmes e ter ocupações que me impedem de ser onipresente e exclusivo, foi não assistir aos da Sala Walter da Silveira – não vi, entre outras coisas, nada de Kurosawa. Por questões de diversidade, terminei acampando no Espaço Unibanco.

Ps: Recife Frio ganhou o prêmio do júri jovem. Fantasmas e Pacific simplesmente não bateram. Não assisti aos outros premiados.

Ps2: Ponto alto também, e presenciado depois de texto escrito, foi Redenção (1959), primeiro longa baiano, dirigido por Roberto Pires, restaurado (com o que restou) e com a presença de dois dos protagonistas na sala. Bom citar também Terra Estrangeira (1996) em 35mm. Por mais que a cópia tivesse lá suas falhas, filme cresceu ao ser revisto – muito bom.

Filmes do mês

10. Vidas que se Cruzam (2008), de Guillermo Arriaga (Cinema do Museu) (**1/2)

9. O Leopardo (1963), de Luchino Visconti (DVD) (**1/2)

8. De Punhos Cerrados (1965), de Marco Bellocchio (DVDRip) (***)

7. O Que Terá Acontecido a Baby Jane? (1962), de Robert Aldrich (DVDRip) (***)

6. O Primeiro a Chegar (2008), de Jacques Dillon (sala Walter da Silveira) (***)

5. O Espírito da Colméia (1973), de Victor Erice (DVDRip) (***)

4. Traição em Hong Kong (2007), de Olivier Assayas (DVD) (***1/2)

3. Tudo Pode Dar Certo (2009), de Woody Allen (Cinema do Museu) (***1/2)

2. A Bela Junie (2008), de Christophe Honoré (DVDRip) (***1/2)

1. O Escritor Fantasma (2009), de Roman Polanski (UCI Multiplex Iguatemi) (****)

VI Panorama Internacional Coisa de Cinema:

  1. Um Lugar ao Sol (2009-PE), de Gabriel Mascaro (***)
  2. O Joelho de Claire (1970), de Eric Rohmer (***)
  3. A Fuga da Mulher Gorila (2009-RJ), de Felipe Bragança e Marina Meliande (***)
  4. Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague (2009), de Emmanuel Laurent (***)
  5. Pacific (2009-PE), de Marcelo Pedroso (***)
  6. Redenção (1959-BA), de Roberto Pires (***)
  7. Filhos de João (2009-BA), de Henrique Dantas (***1/2)
  8. Terra Estrangeira (1995), de Walter Salles (***1/2)

Curtas:

9. Zigurate (2009-SP), de Carlos Eduardo Nogueira (***)

10. Recife Frio (2009-PE), de Kleber Mendonça Filho (****1/2)

11. Silent Star (2009-BA), de Alexandre Guena (**)

12. Fantasmas (2009-MG), de André Novais (**1/2)

13. Supermemórias (2010-CE), de Danilo Carvalho (**)

14. Avós (2009-SP), de Michael Warmann (***1/2)

15. Querida Mãe (2009-SP), de Patrícia Cornils (**)

16. Faço de mim o que quero (2010-PE), de Sérgio Oliveira e Petrônio Lorena (***)

17. Bailão (2009-SP), de Marcelo Caetano (**1/2)

18. Bike Ride (2009), de Bernard Attal (***)

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Leandro Afonso é comunicólogo, blogueiro e diretor do documentário “Do goleiro ao ponta esquerda”.

Tempo de leitura: 8 minutos

DEPUTADA “NÃO COADUNA” COM O CRIME

Ousarme Citoaian

Depois do PSB, quanto à truculência com professores em Porto Seguro, chegou a vez da deputada Ângela Sousa (foto) – tendo um assessor acusado de ameaçar de morte um jornalista. A parlamentar publicou nota de esclarecimento e, igual ao PSB, derrapou nas curvas da linguagem. Diz o arrazoado que ela “não coaduna com qualquer tipo de comportamento…” – inventando nova regência verbal: nos dicionários, coadunar (frequentemente pronominal) tem o sentido de somar (juntar, reunir, incorporar, harmonizar, conformar, combinar). Exemplo: “Minhas intenções não se coadunam com as da vizinha do 6º andar”. (frequentemente pronominal) tem o sentido de somar (juntar, reunir, incorporar, harmonizar, conformar, combinar). Exemplo: “Minhas intenções não se coadunam com as da vizinha do 6º andar”.

ESTILO: “VINDE A MIM OS SIMPLES”

Uma qualidade fundamental do estilo é a simplicidade. Quem alimenta o frenesi da escrita impenetrável, da comunicação empolada, corre o risco de ganhar atestado de pedante – além de não tocar o público a quem se dirige. O redator poderia ter empregado o velho, bom e claro concordar (“a deputada não concorda com…”). Ou, simplesmente, nada escrever, pois todos sabem que atos de violência (sejam contra jornalistas ou quem quer que seja) não se coadunam com o temperamento da deputada. Que, para minha satisfação, escreve o nome em língua portuguesa: Ângela (com acento) e Sousa (com “s”), coisa hoje rara entre brasileiros.

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JUIZ DÁ GOLPE NO ELITISMO

Uma sentença do juiz Alexandre Eduardo Scisinio transita na internet, sem que se saiba porque só agora veio a público – pois foi exarada em 2005. Trata-se de ação impetrada por outro juiz de Direito, a requerer, no tribunal, que o porteiro do seu condomínio, em Niterói/RJ, não mais o tratasse de “você” e sim, preferencialmente, por “doutor”. O julgador, dono de perspicácia e sensibilidade social, mostra ser conhecedor, além da Filosofia do Direito, dos fundamentos da língua portuguesa. Mesmo para leigos, é notável a citação de Norberto Bobbio sobre “buscar o fundamento de um direito que se tem ou de um direito que se gostaria de ter”: o requerente tem o desejo de ser tratado por “doutor”, mas, no entender do sentenciante, não é portador desse direito.

É POSSÍVEL FAZER JUSTIÇA

Ao negar a pretensão ao tratamento, o julgador afirma que “´doutor’ não é forma de tratamento, e sim título acadêmico utilizado apenas quando se apresenta tese a uma banca e esta a julga merecedora de doutoramento. Constitui mera tradição referir-se a outras pessoas de ‘doutor’, sem o ser, e fora do meio acadêmico”. O magistrado diz ainda que “o empregado que se refere ao autor por ‘você’, pode estar sendo cortês, posto que ‘você’ não é pronome depreciativo”. E abona sua tese com a linguista Eliana Pitombo Teixeira, para quem “os textos literários que apresentam altas freqüências do pronome ‘você’ [que vem do cerimonioso vossa mercê], devem ser classificados como formais”. Por fim, condena o postulante a pagar custas e honorários de 10% sobre o valor da causa. A justiça se fez.

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ATRAVÉS É PARENTE DE ATRAVESSAR

“A polícia chegou aos traficantes através de uma denúncia anônima” (O. C. grifou) – diz um noticiário de tevê, a propósito da prisão por atacado, durante uma festa embalada a drogas ilícitas. É a expressão através de posta fora do lugar, ocorrência muito comum no (mau) texto jornalístico. Em termos de frequência ela, parece-me, só perde para inclusive, que é indefectível nas (des) composições tatibitates que lemos diariamente. “A regra é clara”: emprega-se através de quando se quer dar a noção de atravessar, passar de um lado para outro – é este o sentido “clássico”. Nunca em substituição a por meio de, por, graças a, por intermédio de, devido a (e semelhantes).

MUITOS EXEMPLOS, POUCO ESPAÇO

Nos bons autores, são muitos os exemplos. Aqui, é pouco o espaço. Por isso, apenas duas abonações, bebidas em Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis: “Contemplei (…), ao longe, através de um nevoeiro…” e “A neutralidade (…) nos leva, através dos espaços…”. Simples: na primeira frase, a vista do narrador atravessa o nevoeiro; na segunda, o espaço. No meu campo de experiência (e sofrimento) colho mais um: “Através da vidraça, vejo a vizinha do 6º andar, que passa e não me olha”. Dos (bons) jornais: “O assessor foi nomeado por decreto” – nunca através de decreto. Eu, de novo: “Tentei falar com a vizinha do 6º andar, pelo telefone” – jamais através do telefone (ela, pra variar, não me atendeu!).

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DA ARTE DE BEM ESCREVER

Mais do que criticar, apresentar soluções é preciso. Já que falamos tanto de textos ruins, aqui está uma sugestão de livro de jornalista com texto de primeira qualidade: Tempestade de ritmos – jazz e música popular no século XX, de Ruy Castro (Companhia das Letras/2007). Uma excelente coleção de artigos, em comemoração aos 40 anos de atividade do autor. Está todo mundo lá, em 415 páginas, com fotos: da MPB ao jazz, de Ella Fitzgerald a Benny Goodman, de Roberto Silva (quem lembra?) a Chico Buarque e Moacir Santos, de Tony Bennett a Judy Garland. Não é uma coleção de biografias, mas o resultado de experiências pessoais. Para ler com a alma em festa.

A NOITE ETERNA DE RAY CHARLES

..O capítulo sobre Ray Charles (foto) é tocante. Em 1996, no artigo Para que enxergar quando se é Ray Charles?, Ruy Castro escreveu: “Aos seis anos, quando Ray subia ao alto do morro, ainda podia ver a vegetação se perdendo no infinito. Mas, rapidamente, o horizonte começou a ficar muito próximo. Logo estaria a poucos metros. Os pássaros e outros pequenos animais desapareceram da paisagem. As figuras se transformaram em borrões, depois em vultos difíceis de distinguir e, então, também se evaporaram. Às vésperas dos seus sete anos, o mundo visível de Ray já se dividia em simplesmente dia e noite. Até que o dia também ficou noite”.

DA CURIOSIDADE À DEPENDÊNCIA

“Charles contou em Brother Ray que foi dependente de heroína de 1948 a 1965, dos 18 aos 35 anos. Começou com maconha e logo passou para a seringa. Mas não culpa ninguém. ´Não foi por ser negro, cego ou pobre. Nenhum traficante me obrigou. Não houve nenhum motivo social ou psicológico. Comecei a usar a droga por curiosidade e porque os colegas usavam´, disse ele em sua autobiografia. Mas não foi a curiosidade que o levou a continuar usando – foi a dependência (…). Se nunca se tornou o farrapo humano que outros, como Billie Holiday (foto) e Charlie Parker, se tornaram, foi porque tinha dinheiro para sustentar a dependência”, diz Ruy Castro.

BALADA DE 3 MILHÕES DE CÓPIAS

Ray Charles gravou a balada I can´t stop loving you (Don Gibson) em 1962, tendo vendido coisa de 3 milhões de cópias. Elvis Presley (foto), suponho que em 1972, fez com I can´t stop aquilo que ele fazia com tudo que gravava: mexer no arranjo e transformar qualquer coisa em rock pesado, fosse O sole mio ou o catálogo telefônico da Tailândia.
Aqui, a versão original de Ray Charles.

SÓ PRIVILEGIADOS TÊM OUVIDOS

Rosa Passos é “filha” de João Gilberto (foto). Ouviu o bruxo de Juazeiro desde a adolescência, quando estudava piano, imitou-lhe os acordes, seguiu-lhe os passos (ops!). Nascida em Salvador, ela sobreviveu a axés, pagodes e outras invenções contagiantes, deixou de lado o piano, pegou o violão e saiu por aí. Hoje, é nome do maior respeito na Europa e, eventualmente, se apresenta no Brasil. Tenho dela o CD Amorosa, homenagem a João Gilberto: quatro das doze faixas desse disco foram gravadas por João no LP Amoroso, de 1977 (Wave, Bésame mucho, Retrato em branco e preto e ´S wonderful). Ao mestre, com carinho, a faixa 9 (Essa é pro João), em que a fã se desnuda:

“João Gilberto, amigo, eu só queria/Lhe agradecer pela lição/
Desses seus acordes dissonantes/Desse seu cantar com perfeição/
E até o apagar da velha chama/Eu quero sempre ouvir o mesmo som/
Só privilegiados têm ouvidos/Mas muitos poucos deles têm seu dom”.

DUETO COM HENRI SALVADOR

Desconhecida em sua terra, Rosa Passos (foto) tem muito respeito internacional. Gravou com Ron Carter, Paquito D´Rivera e outros desse nível, além do recentemente falecido chansonnier Henri Salvador. O velho HS faz com ela, em Amorosa, um dueto fantástico em Que reste-t-il de nos amours. A cantora lançou o primeiro álbum em 1978 (Recriação), com músicas de sua autoria e Fernando de Oliveira. Depois vieram Curare (91), Festa (93), Pano pra manga (96), além de três discos especiais, exclusivamente com canções de Caymmi, Ari Barroso e Tom Jobim. Um jornalista a chamou de “João Gilberto de saias” e ela não gostou. Claro: é fã de João, mas se chama Rosa Passos. Às vezes parece uma combinação felicíssima de João Gilberto e Elis Regina – mas está longe do pasticho, como certas cantoras do tipo papel carbono que andam por aí.

BOLERO QUASE DERRUBA COLLOR

Em Amorosa, Rosa canta Bésame mucho, um tema romântico reconhecido em 1999 como “a canção mais cantada e gravada do idioma espanhol”. A mexicana Consuelo Velasquez (foto) fez Bésame no longínquo 1940. Meio século depois (em 1990), a paixão da economista Zélia “Confiscadora de Poupança” Cardoso de Melo e do jurista Bernardo Cabral (ministros de Collor) foi embalada por esta música. Nada mau para um bolero mexicano – pois quase nos faz o favor de antecipar a derrubada do governo da República. Veja agora a interpretação majestosa de Rosa Passos (com um comovente a capela de 25 segundos). Minha parte eu dedico à vizinha do 6º andar.

(O.C.)

Pouco sei de futebol (prefiro basquete e o xadrez), mas a discussão, sob o prisma da língua portuguesa, me fascina. Entendo que o Brasil é, de maneira indiscutível, bicampeão mundial, pois venceu as Copas de 1958 e 1962. Ao voltar a ganhar em 1970 (com a melhor seleção etc. etc.), tornou-se campeão pela terceira vez – e isto é diferente de ser tricampeão. Acontece que a mídia, por ignorância ou interesse, às vezes assume aquele comportamento atribuído a Goebells (ministro das Comunicações de Hitler): bate na mentira até que ela se transforme em verdade. O rito é mais ou menos este: lança-se a invenção, as ruas a adotam e ela adentra os compêndios, já travestida de verdade. A língua é viva, certo. Mas não precisa ser burra.