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CAMACÃ E SEU FEITIO MATRIARCAL

Ousarme Citoaian

Causou inquietações mudar o nome de Camacã para Camacan (foto), dizem que por obra e graça de autoridades municipais. A palavra pertence a uma família enorme, todos os membros com nomes terminados em “ã”. Aqui estão alguns deles, citados de memória: chã, lã, terçã, arapuã, louçã, irmã, cortesã, romã, Camaquã/RS afã, itapuã, Canaã/MG, sã, xamã, fã, temporã, vilã, escrivã, tantã (doido), tantã (tambor), Aquidabã/SE, Pã, rã… Percebe-se que são poucos os indivíduos masculinos (itapuã, Pã, arapuã, tantã – no sentido de tambor), alguns são de dois gêneros (xamã, fã, tantã – significando amalucado) e a maioria é de termos femininos. Infere-se, portanto, que a palavra Camacã é de família matriarcal.

CORRUPÇÃO ATINGE A GRAMÁTICA

Estranhíssimo esse Camacan isolado, ovelha negra da família, numa solidão que emociona. A propósito, um grupo, cuja especialidade era se rebolar na boca da garrafa, batizou-se como É o tchan! – coisa igualmente canhestra, pois a grafia que encontro no Aurélio, sem me surpreender, é tchã. Parece que essa humanitária tentativa de conseguir uma companhia para Camacan falhou. Tchan, considerando o meio onde nasceu, é desculpável; Camacan, não. Agrediram as fortes raízes históricas (que reportam à extinta nação indígena camacã), quando impuseram esse Camacan – contrariando toda a família do “ã”, como vimos. É um caso raríssimo de corrupção… gramatical!

UMA VIOLÊNCIA FILOLÓGICA

Os organismos oficiais (IBGE, Detran e outros, além da Prefeitura de Camacã, é óbvio) aceitaram a grafia com a absurda invenção do  final “an”. Os jornais também. O Agora, de Itabuna, é a única exceção: parece ter-se insurgido contra o estupro filológico perpetrado contra o município e grafa Camacã, a forma historicamente correta.  Se erra, erra em ótima companhia: o citado dicionário Aurélio desconhece os filólogos municipais e registra o verbete  camacãense como sendo “de, ou pertencente ou relativo a Camacã (BA)”. Os poderes locais têm direito até de mudar o nome do município (após consulta popular, o chamado plebiscito), mas alterar a língua portuguesa, não.

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A MOÇA QUE FICOU “MEGATRISTE”

Na tevê, em matéria sobre a volta ao horário habitual, este disparate de uma jovem: “Estou megatriste, pois adoro o horário de verão” (O. C. grifou). Zonzo com a pedrada, vou ao Aurélio e confiro: mega é prefixo que, junto a uma unidade de medida a multiplica por 1 milhão. Na fala razoavelmente culta, mega substitui “grande”, não “muito”, por isso se liga a substantivos, não a adjetivos: megaempresário, megajogador, megatraficante etc. De megafeio, megatriste, megachato e semelhantes, que o bom Deus nos livre.  Se digo grande empresário todos sabem do que falo; se digo grande feio, ou grande triste, apenas puxo as orelhas da gramática. Caso a moça se dissesse “muito triste” seria comovente. Ao dizer-se megatriste, foi ridícula. O bom jornalismo evita publicar besteiras desse jaez, que nada nos trazem, além de irritação.

PARA CRIAR É PRECISO AUTORIDADE

Palavras e expressões novas, para que sejam aceitas, dependem muito da origem, do pedigree de quem as divulga. Certa feita, o sindicalista e então ministro Luiz Rogério Magri (foto), iletrado, mas com diploma de pelego, criou a palavra imexível – e virou chacota nacional pelo resto da vida. No entanto, que me perdoem os linguistas, creio que, se exposta à luz da etimologia, imexível é perfeitamente defensável, por analogia com indizível (de dizer), elegível (eleger) e incontível (conter) – para ficar em limitados exemplos. Logo, por que a celeuma? Porque quem criou o termo não tinha “autoridade” para fazê-lo e, em sendo assim, não inventou uma palavra: inventou um constrangimento.

NONADA É BROGÚNCIA E MEXINFLÓRIO

A língua portuguesa foi praticamente reescrita por João Guimarães Rosa (foto), o maior criador de neologismos e rejuvenescedor de arcaísmos da nossa ficção. É isso que eu queria dizer: se fosse o autor de  Sagarana quem grafasse um imexível, críticos, gramáticos, filólogos e linguistas estariam todos esfalfados de tanto bater palmas.  Há dias, citamos (à espera de protestos indignados, que não vieram) uma invenção roseana: nonada. É um arcaísmo recuperado (a primeira palavra de Grande sertão: veredas). Imagino alguém perguntando a JGR o que é nonada e ouvindo dele, divertido, que “nonada é tutaméia” (assim mesmo, com acento agudo), termo por ele criado a partir de tuta-e-meia, com origem no quimbundo.

POLÊMICA SOBRE OSSOS-DE-BORBOLETA

O escritor detalha sua cria como coisa pequena, sem importância, bobagem, asneira, quinquilharia, brogúncia, mexinflório, baga, chorumela, nica, quase-nada – em Tutaméia (José Olympio/1968). A língua culta não se enriquece com a mídia, quando esta tem como agentes alter egos de Rogério Magri, numa gazeta qualquer. Aí, ela, a mídia, torna-se estuário de banalidades. No texto dos bons jornalistas (Fernando Sabino, Machado de Assis, Jorge Araujo, Ruy Castro, Joaquim Nabuco, Hélio Pólvora, Florisvaldo Mattos…) nunca se viu disparate do tipo “tentar contra a vida”. Os dicionários (Aurélio, Michaelis) também não aceitam essa acepção. Logo, para que discutir ossos-de-borboleta?

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MORRE O GUARDIÃO DOS LIVROS

Cumpre-se o dever de informar que morreu José Midlin, o grande bibliófilo brasileiro. Mais do que leitor e colecionador de livros – reconhecem políticos de vários matizes – Midlin foi um grande cidadão do Brasil. Reagiu, como pôde, à ditadura militar e, particularmente, ao assassinato oficial do jornalista Wladmir Herzog. Seu acervo, cerca de 17 mil livros, foi doado à biblioteca da USP. Ele deixou claro, há tempos, que a biblioteca não lhe pertencia, era pública: “Sou o guardião dos livros”, dizia – nunca fui guardião de livros, ai de mim! O meus, bem poucos, voam livres e, ao contrário  das pombas de Raimundo Correa (que retornam ao pombal todas as tardes) não voltam mais às minhas mãos. Perdeu o Brasil um filho ilustre.

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DUQUE, REI, CONDE E PRESIDENTE

Por motivos nem sempre conhecidos, músicos americanos, sobretudo os ligados ao jazz, sempre ganharam apelidos “exagerados”. Ellington era duque (the duke), Ray Charles, gênio (the genius), Frank Sinatra era a voz (the voice), Stan Getz, o som (the sound); Basie era o conde (the count). Lester Young, trompetista preferido da grande  Billie Holiday, a Lady Day (foto),  ganhou dela o apelido de the president, que passou a  “assinar” de forma abreviada: Pres Lester Young;  Charlie Parker era the bird, Nat Cole chamava-se Nat King Cole, e Miles Davis se tornou lendário como Miles, o divino. Aliás, divina era também Sarah Vaughan e uma das mais festejadas cantoras brasileiras de todos os tempos: a divina Elizeth Cardoso.

POR VOLTA DA MEIA-NOITE

Mas há uma face trágica. O jazz formou um imenso mercado consumidor de drogas, levando muitas estrelas a ter suas careiras prejudicadas, ou a encerrá-las antes da hora, para atender ao prematuro chamado da morte. Charlie Parker, Dexter Gordon (foto), Billie Holiday, Jannis Joplin, John Coltrane, Miles Davis, Chet Baker e Coleman Hawkins, aqui referidos de memória, têm a ligá-los não só a genialidade (alguns críticos acham que Chet Baker é uma sombra de Miles Davis, mas esses detalhes técnicos escapam ao meu nível de mero ouvinte): todos, de alguma forma, tiveram a vida invadida pelo vício. O assunto permeia o ótimo filme Por volta da meia-noite (Bertrand Tavernier/2001). O tempo é 1959, na Blue Note, em Paris. Um jovem parisiense branco, do lado de fora da boate, ouve, encantado, o som eloquente do tenorista Dale Turner/Dexter Gordon – e a partir daí vai se construir entre eles uma amizade que se estenderá até a morte do músico.

TRABALHO DE FÃ PARA FÃS

Mais conhecido pelo seu título original, Round midnight (um dos temas de jazz mais gravados do mundo – já apresentado aqui), Por volta da meia-noite é filme de fã de jazz para fãs de jazz. Não me perguntem quantas vezes o vi (a resposta teria um número com dois dígitos). É a história de um gênio, já em fase terminal, com a vida em queda inapelável. Diante da fantástica trilha sonora de Herbie Hancock (ganhador do Oscar), Dexter Gordon se conduz como um veterano ator de cinema, com seu sax e seu surpreendente talento (indicado para o Oscar). Este, aliás, é um dos aspectos mais interessantes do filme: ter um músico como protagonista e com todos os números musicais feitos ao vivo. Na abertura, Bobby McFerrin executa Round midnight… com a garganta; depois, Gordon nos brinda com um memorável As time goes by. Arrepiante.

O GOGÓ AFINADÍSSIMO DE MCFERRIN

O grandalhão tenorista Dexter Gordon nos passa a sensação de ser uma insólita mistura de Charlie Parker, Chet Baker e Miles Davis – todos vítimas do vício. Parker, aliás, morreu com apenas 34 anos, e é tema de Bird, filme de Clint Eastwood que não coube na coluna hoje. Além de Gordon, Round midnight apresenta vários nomes conhecidos, sendo um prazer para o aficionado do jazz  identificá-los: Herbie Hancock (foto), John McLauglin, Wayne Shorter, Ron Carter e Fred Hubbard. Clique e ouça Round midnight, de Thelonious Monk, em solo de gogó de Bobby McFerrin (ao piano, Herbie Hancock; o cara do charuto, na bateria, é Tony Williams).


(O.C.)

2 respostas

  1. Ousarme Citoaian, como tem essas coisas de “cidade irmã” em vários lugares, dizem que devido à necessidade de incremento econômico (tão apregoado pelos defensores do Petismo), vão unir duas cidades: Camacã e Camamú.
    A despeito da distãncia, a nova cidade se chamará Camacú.
    E ninguém sabe dizer, com a certeza que um tal de “Pau de atiredeira” professa, qual das partes contribuiu mais para envergadura econômica da terceira sílaba.

  2. Ousarme, vossa senhoria não sabe que é especialidade de toda e qualquer Língua, que se preze, agredi as raízes históricas?
    Lembrando que, agride-se a raiz no intuito de mudar a pigmentação das folhas. É o caso dos Kamakã.

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