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AFINAL, ELA É PRESIDENTE OU PRESIDENTA?

Ousarme Citoaian

Retomemos, conforme promessa, a discussão sobre as opções presidente/presidenta, assunto pertinente, quando o Brasil escolhe sua primeira presidenta. E pronto: já fiz, antecipadamente, minha escolha. Mas, como tudo neste espaço, trata-se de opinião, preferência, havendo argumentos igualmente ponderáveis para Dilma presidente. O professor Pasquale Cipro Neto, em moda nas diversas mídias, prefere presidente – argumentando que as palavras terminadas em “nte” não variam de gênero, sendo marcadas pelo artigo “o” ou “a” (e exemplifica: o gerente, a gerente; o pedinte, a pedinte e, claro, o presidente, a presidente).

PROFESSSORES MOSTRAM OPINIÕES DIFERENTES

Mas não há unanimidade entre os professores. Em Salvador, o Instituto Kumon, que tem mais de 2,5 mil alunos, não concorda com Cipro Neto (foto). “Presidenta é melhor porque deixa claro ser uma mulher e a questão de gênero agora vai tomar novo fôlego no Brasil,” entusiasma-se a professora baiana, filha de pais russos, Nadegda Kochergin. Em favor de presidenta, a história da língua portuguesa mostra que a forma feminina teve dificuldades para se estabelecer em professora, doutora e juíza, que também soaram estranho nos primeiros tempos, mas depois foram assimilados no falar cotidiano dos brasileiros.

EXEMPLOS BONS DO CHILE E DA ARGENTINA

Na Argentina, Cristina Kirchner jamais deixou dúvidas sobre sua preferência: “Presidenta! Comecem a se acostumar: presidentaaaa… e não presidente!”,  gritava nos palanques. Empossada, devolvia os documento que chegavam à Casa Rosada endereçados à “presidente”. No Chile, Michelle Bachelet (foto) adotou o mesmo modelo e se fez chamar presidenta. Mas é verdade que as brasileiras não têm contribuído para o avanço: a jurista Ellen Gracie se disse presidente do Supremo Tribunal Federal, a escritora Nélida Piñon era “a primeira presidente” da Academia Brasileira de Letras e a nadadora Patrícia Amorim se anuncia como presidente do Flamengo.

PRECONCEITO SERÁ SEDIMENTADO PELA MÍDIA

Data vênia, o professor Cipro Neto põe gerente, pedinte e presidente no mesmo saco, misturando, não se sabe com que intuito, alhos e bugalhos: as duas primeiras são invariáveis em gênero, identificando-o apenas pela anteposição do artigo. Já presidente tem como feminino presidenta. Na campanha, Dilma se mostrou inclinada a se fazer chamar de presidenta. Mas a mídia – em geral tão conservadora quanto a própria sociedade – tende para presidente, em nome da “facilidade” e do hábito. Vai ignorar a lógica, opor-se ao novo e sedimentar o preconceito gramatical contra as mulheres – e, por certo, com a inteira colaboração destas. Clique e veja a preferência de Dilma.

A MELHOR HERANÇA É O EXEMPLO DE VIDA

Em recente artigo na Envolverde (Aos nossos filhos, 11.11.2010), Frei Beto (foto) fala do legado a ser deixado para os filhos, e afirma que não há mal em “fazer um pé-de-meia, de olho no futuro dos seus rebentos”, mas faz uma advertência: “Não é dinheiro o que um filho mais espera dos pais, ainda que não saiba expressá-lo. É amor, amizade, apoio e, sobretudo, exemplo de vida”. E cita Thomas Mann (autor de A montanha mágica): “Um bom exemplo é o melhor legado dos pais aos filhos”. O religioso conclui que “nada mais perigoso a um jovem que centrar sua autoestima na conta bancária ou no patrimônio familiar”.

MILTON SANTOS: DA ALDEIA PARA A GLÓRIA

Embora concorde com a tese de Frei Beto, não entro em detalhes sobre ela (quem quiser fazê-lo já sabe onde encontrá-la), por fugir ao espírito da coluna. O que eu queria dizer é que, a certa altura, em favor de seu argumento, o autor anota: “O professor Milton Santos, da USP, enfatizava a importância de se perseguir os bens infinitos, e não apenas os finitos”. Confesso meu orgulho ao ver as freqüentes referências ao velho mestre do Instituto Municipal de Educação (IME), de Ilhéus, um nome que ilumina o pensamento nacional, mas é desconhecido aqui na região onde despontou para a glória do mundo.

EXISTIR É O MAIOR DIREITO DE TODOS NÓS

A escritora Aninha Franco (foto) trouxe aos jornais, com a eleição do dia 31, a divisa “Liberdade, Igualdade, Fraternidade”, da Revolução Francesa de 1789, como foco a ser perseguido pelo  Brasil dos próximos tempos – e me fez lembrar um texto de Robespierre (escrito uns quatro anos mais tarde): “O pensamento diretor é o de existir. A primeira lei social é, portanto, a que assegura a todos os membros da sociedade o direito de existir – todos os demais lhe são subordinados”. Vê-se como os princípios gestados no Iluminismo ainda estão pulsantes, seculares, mas jovens e “perigosos”. E todo esse francesismo me remete, de alguma forma a Gilberto Gil e seu eterno deus Mu Dança.

A MUDANÇA É FEITA COM PAZ OU COM ARMAS

“Sente-se a moçada descontente onde quer que se vá/ Sente-se que a coisa já não pode ficar como está/ Sente-se a decisão dessa gente em se manifestar/  Sente-se o que a massa sente, a massa quer gritar: ´A gente quer mudança´./ O dia da mudança, a hora da mudança, o gesto da mudança/. Sente-se tranqüilamente e ponha-se a raciocinar/ Sente-se na arquibancada ou sente-se à mesa de um bar/ Sente-se onde haja gente, logo você vai notar/ Sente-se algo diferente: a massa quer se levantar pra ver mudança, o time da mudança, o jogo da mudança, o lance da mudança”. É o novo chegando, anuncia o poeta: “Talvez em paz Mu dança/ Talvez com sua lança!”

TODOS OS HOMENS NASCEM LIVRES E IGUAIS

Estamos vivendo uma transformação de hábitos à brasileira: lenta, silenciosa, sem sangue, mas persistente. Nossa revolução, sem a guilhotina dos homens insensatos ou a lança do irado deus Mu dança, aproxima-nos, aos poucos, da liberdade, da paz, da igualdade, da fraternidade, da igualdade entre os brasileiros, com base em mais este legado da Revolução Francesa: “Os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos; as distinções sociais não podem ser fundadas senão sobre a utilidade comum”. No  Brasil já se extinguiu o voto de qualidade, deixando todos com o mesmo valor e sepultando a odiosa frase “brasileiro não sabe votar”. É um (bom) começo.

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E MILES DAVIS RECRIOU ZÉ COM FOME…

Zé com Fome, Zé da Zilda ou José Gonçalves (1908-1954) teve seu samba Aos pés da cruz (com Marino Pinto) lançado por Orlando Silva, com êxito retumbante. A canção ganhou registros surpreendentes do violonista Baden Powell (cantando!) e de Miles Davis, o divino trompetista do jazz, do rock e da fusion. Aos pés da cruz carrega um verso nada cartesiano que deu muito o que falar: “O coração tem razões que a própria razão desconhece”  – uma transcrição direta de Pascal (1623-1662): Le coeur a des raisons que la raison ne connaît pas, suficiente para que um crítico indignado apontasse seu dedo acusador, aos gritos de “Plágio! Plágio!” .

PASCAL: “NOME DE CACHORRINHO DE MADAME”

Já não me lembra o nome do crítico apoplético, mas sei que em defesa de Zé da Zilda veio o jornalista Sérgio Porto (Stanislaw Ponte Preta), e veio com tudo: disse (a rigor, escreveu) que o compositor jamais ouvira falar do filósofo francês e que para o homem simples que era o letrista de Aos pés da cruz, Pascal deveria ser “nome de cachorrinho de madame”. Excessos à parte, também acho improvável que o autor da marcha Saca-rolha, nascido e vivido na cultura das ruas, houvesse alguma vez lido um erudito francês do século XVII. Imagino que Zé com Fome ouviu a frase por aí e se apossou dela, como quem pega passarinho em visgueira.

JOÃO TIRA O CHAPÉU PARA A VELHA-GUARDA

Em 1959, no LP Chega de saudade (aquele que é tido como o abre alas da bossa-nova), João Gilberto faz novas gravações, em homenagem à turma da velha-guarda do samba. Ao lado de temas que consagrariam o novo movimento musical (como Chega de saudade e Desafinado), ele recuperou temas eternas do cancioneiro nacional, alguns então esquecidos: lá estão Rosa morena, de Caymmi, É luxo só (Ari e Luiz Peixoto) e Morena boca de ouro, de Ari Barroso (foto). Nessa leva, mostrando que a bossa-nova queria manter um pé em nossos clássicos populares, Aos pés da cruz ganhou leitura especial. Clique e veja um trecho.

(O.C.)