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VELHINHOS SERELEPES QUE FAZEM “DE TUDO”

Ousarme Citoaian

Numa dessas matérias corriqueiras em que a tevê discorre sobre as inegáveis vantagens da senilidade (quando aparecem uns velhinhos serelepes dizendo que se sentem como se tivessem dezoito anos ou menos!) recolho uma pérola, da boca de repórter experiente, famoso e festejado. Depois de ver uma idosa escapar ilesa de uma série de perigosos contorcionismos a que chamam alongamento, o profissional televisivo (com um sorriso que parecia de decepção) afirmou: “Atualmente, esses velhinhos fazem de tudo”. Esse “de tudo” é, via de regra, mais um abuso dos que tanto se perpetram em nome da linguagem moderna e bonitinha, mas ordinária.

ATAQUES FRONTAIS E REPÓRTERES IMPUNES

A expressão de feitio enviesado está disseminada pela mídia, mas com predominância na televisão, veículo que prima pelos ataques frontais à língua portuguesa. “Fez de tudo para salvar os móveis, mas não conseguiu” – diz impunemente a repórter, numa matéria sobre enchentes. Trata-se de pecado contra a simplicidade (uma das qualidades fundamentais do estilo) e indispensável à boa linguagem jornalística. É preferível “Fez tudo para salvar…”, indo direto ao ponto, sem penduricalhos que, longe de melhorar o entendimento da frase, a tornam pedante, grosseira, cansada, ao carregar a preposição “de” como peso morto.

PLEONASMO, MAS SEM PERDER A ELEGÂNCIA

À partícula que acrescenta graça, força ou realce a uma frase ou expressão os gramáticos chamam “expletiva”. Seria assim uma coisa pleonástica, mas elegante – se é que entendi a lição.  Exemplos encontráveis nos livros são “Foi-se embora sem avisar” e “Murchem-se as flores”, esta segunda de perceptível bom gosto. Observe que, retirada a tal partícula expletiva, o entendimento se mantém: tanto faz “foi-se embora” como “foi embora”. Esta seria a tese da defesa “lingüística” para “Fazer de tudo”, mas a acusação a contesta veementemente, pois o “de”, neste caso, nenhuma beleza acrescenta à expressão “Fazer tudo”.

EXPRESSÃO ENRAIZADA E COM DEFENSORES

Na edição de 28 de setembro, o Pimenta denunciou, em caixa alta e fonte graúda: “Câmara de Itabuna teve de tudo nesta terça-feira”. Além de provar que santo de casa não faz milagre, prova-se como a expressão está enraizada nos meios de comunicação e terá, consequentemente, ferrenhos defensores. Volto a insistir que esta coluna fala de preferências e curiosidades, mas nunca se atreveu a dividir a linguagem em certa e errada. Neste caso, sigo a regência verbal: assim, “A livraria dispõe de tudo que a escola exige” (o verbo dispor “pede” preposição “de”) e “A livraria tem tudo que a escola exige” (o verbo ter é, neste cenário, inimigo da preposição).

LÍNGUA RICA, RICA, RICA /DE MARRÉ DECI

“Eu sou pobre, pobre, pobre/ De marré, marré, marré/ Eu sou pobre, pobre, pobre/ de marré deci” é cantiga de roda com uma palavra que não tem registro na linguagem escrita. De tempos imemoriais, guardo uma explicação, que não tenho feito pública por falta de auditório interessado. E se não digo sua origem é por não me lembrar em que ostra colhi esta pérola: o texto viria do francês Je suis pauvre, pauvre, pauvre,/ je me vais, me vais, me vais/ je suis pauvre, pauvre, pauvre/ je me vais d´ici. Para quem nada manja da língua de Danton e Robespierre, vai minha tradução, sujeita a chuvas e trovoadas: ”Eu sou pobre, pobre, pobre/ vou-me embora, vou-me embora/ eu sou pobre, pobre, pobre/ vou-me embora daqui”.

EM PERNAMBUCO, O “FOR ALL” VIROU FORRÓ

Com o tempo, as pessoas fizeram uma “adaptação”, valendo-se do som em francês: da pronúncia (aproximada)  jê mê vé veio “de marré” e dici transformou-se em “daqui”. Para mim faz sentido, pois o processo não é desconhecido entre nós: há uma tese (Luiz Gonzaga era um de seus defensores) de que a palavra forró (gênero musical nordestino popular em todo o Brasil) descende, por semelhante processo de “adaptação”, do inglês for all. Algo a ver com os ingleses da estrada de ferro Great Western, em Pernambuco, que organizaram uma festa aberta, for all (“para todos”). Ressalte-se que o folclorista Câmara Cascudo não aceita esta versão: para ele, forró vem do africano “forrobodó”,  que é festa bagunçada, frege.

HERANÇA DAS RELAÇÕES FEUDAIS EUROPEIAS

Consta que Heitor Villa-Lobos e Cecília Meireles (foto) também pesquisaram esta cantiga infantil, mas não chegaram a conclusões definitivas. A brincadeira procede da Europa sendo um jogo de  “pobres” e “ricos”, falando em casamento, com o roteiro ritualístico de  cortejo, sedução e noivado. A versão brasileira tem uma parte que diz: “Quero uma de vossas filhas/ de marré, marré/ marré/ Quero uma de vossas filhas/ de marre deci” – certamente a fala do “rico”; a esta proposta indecorosa o lado “pobre” responde, humilhado: “Escolhei a qual quiser/ de marré, marré, marré/ Escolhei a qual quiser/ de marré deci”. Percebe-se que a canção prega um servilismo escancarado e odioso, que nos remete ao feudalismo europeu.

EMOÇÕES QUE NOS PRESSIONAM NO DIA-A-DIA

Volto a reler o velho Quatro gigantes da alma, do pioneiro em psicologia e direitos humanos Mira y Lopez (Santiago de Cuba, 1896-Rio de Janeiro, 1964). É um livro fundamental, que fala de emoções a que estamos submetidos no dia-a-dia e que são fontes de neurose, afeto, agressividade: o Medo, a Ira e o Amor. Mas como somos bichos domesticados (homo socialis), o psicólogo acrescentou um quarto “gigante”: o Dever, espécie de força reguladora, que nos impede de descambar nos precipícios da barbárie e da luxúria. Se quiser, pode chamá-lo de Razão, elemento que nos faz obedecer às regras (“qual submisso escravo”, segundo o mestre argentino).

A IRA QUE NASCE DO NEGRO VENTRE DO MEDO

Mira y Lopez (foto) trata de carências e fantasmas submersos, de fragilidades e de como precisamos uns dos outros, de como somos conduzidos pelas emoções e de como estas são tão poderosas que nos sacodem e atiram de um lado para outro, “com a mesma aparente simplicidade com que uma onda altera o rumo de um barco, o vento brinca com as folhas ou um terremoto faz desmoronar uma casa”. O texto é muito atraente, como neste exemplo: “Na noite dos tempos, do negro ventre do medo, brotaram as rubras faces da ira. Esta rapidamente cresceu e se converteu no segundo dos quatro gigantes que atenazam o homem e fazem de sua vida um perpétuo drama”.

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NÃO QUEREMOS SER UM PAÍS DE VIRA-LATAS

Procuro estar longe dos que tratam o Brasil como um sub-país, nosso povo como uma sub-raça, e paro aqui, antes que me venham as lembranças, igualmente calhordas, da sub-nação, do sub-povo – e, de braço dado com elas, uns puxões de orelhas sobre o emprego inadequado do hífen. Mas o que nos interessa é festejar o fim do espírito anti-Brasil. O povo mostra (nas ruas, nos becos, na internet e nas urnas) que somos uma Nação com identidade própria e que não mais teme o chicote com que os poderosos, vestidos de paramentos universitários e décadas de preconceito e conservadorismo, tentam submetê-lo. Livre em suas escolhas, o Brasil se recusa a ser uma nação de vira-latas.

TAMBÉM TEMOS DOSTOIÉVSKIS E BETHOVENS

Autoridades do Nordeste deveriam tomar uma atitude de considerável impacto: algo assim como um decreto que levasse a turma da calcinha escura, o pessoal que combina rapadura com caviar e camarão com garapa de cana, além de uma chusma de outros equivocados do forró a ouvir os clássicos. Não me refiro aos bambambãs da música europeia, mas aos clássicos da grande canção de sotaque regional: Luiz Gonzaga, Sivuca, João do Vale, Zé Dantas, Humberto Teixeira, Dominguinhos, Hermeto Paschoal, Cego Aderaldo, Jackson do Pandeiro, Patativa do Assaré, Genival Lacerda.  Eles são, a bem dizer, nossos bethovens, brahms, tostoes, dostoiévskis,  mozarts, haydns.. .
</span><strong><span style=”color: #ffffff;”> </span></strong></div> <h3 style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>E FRED JORGE CRIOU CELLY CAMPELLO!</span></h3> <div style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>No auge do sucesso, em 1965, a música teve uma versão no Brasil, gravada por Agnaldo Timóteo. Como costuma ocorrer com as

GLORINHA GADELHA, SIVUCA E CLARA NUNES

A feira de mangaio é o local onde os brejeiros vendem… mangaio, é lógico! Com o resultado desse negócio, compram/compravam o que não nasce do barro do chão, como o gás que acende a candeia e (“ninguém é de ferro”) a cachaça que aquece a alma. A leitores do asfalto, explico: brejeiro é quem vive na região do Brejo; legume é qualquer cereal; mangaio é todo artigo feito em casa ou tirado da pequena agricultura; gás e candeia,  leia-se querosene e candeeiro (e se você não sabe o que é candeeiro, aceite meus pêsames). Os dicionários grafam, se muito, mangalho – mas o que sabem do povo os dicionários? No vídeo, Clara Nunes e Sivuca: Feira de mangaio, dele e Glorinha Gadelha. Clique aqui e veja/ouça.
(O.C)

(O.C.)