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A PAIXÃO, SEGUNDO MARIA LUIZA NORA

Ousarme Citoaian

Muitos se acham tocados pela força da poesia e, em função de tal canto de sereia, afoitamente se atiram nas águas revoltas desse gênero, às vezes com resultados funestos. Maria Luiza (Baísa) Nora, que acaba de lançar A ética da paixão, recusou-se à aventura a que tantos imprudentes se lançam e escolheu o caminho “clássico”: antes de escrever, leu. Talvez seja importante dizer isto, como forma de entendermos o porquê de A ética… não parecer artigo de principiante. É que Baísa (foto) se mantém distante da sintaxe tatibitate de uns que impunemente (quem sabe, impudentemente) se dizem poetas; ela sequer tangencia o ridículo em que mergulham os incautos “bafejados” pelas musas.

POÉTICA QUE ABRE AS PORTAS DA ALMA

“Vítima” de uma autora com refinadas leituras de prosa e verso, seria impossível a A ética da paixão não refletir Fernando Pessoa, Neruda e (destacados por Patrícia Pina, em parecer acostado ao livro) Camões, Vinícius, Chico Buarque, Cartola, Álvares de Azevedo. Pessoalmente, imagino Baísa Nora assemelhando-se a Florbela Espanca: poética confessional, corajosa, ousada, de uma ousadia tal que abre as portas da alma e escancara um misto de desenfreado sofrimento e intenso gozo. Um espectro que abrange a angústia e a paz, o “ridículo” das revelações íntimas (à Álvaro de Campos) e a tragédia inevitável das rupturas afetivas, sempre portadoras dores lancinantes.

O CORPO PARA DIVIDIR, NÃO PARA DOAR

Baísa Nora revela a plena mulher ocidental do seu tempo, em oposição àquele antigo objeto de prazer do outro, mas nula em si mesma. Seu cantar é erótico, afetivo, protetor, possessivo, provocador, provocante, às vezes de mãe, muitas de amante, atrevido sempre. É a voz da mulher-cidadã, que se reconhece dona do seu corpo e pronta a dividi-lo, nunca a doá-lo. A ética… não é  o cometimento de versos piegas que o tema motiva, mas grito universal e maduro sobre a paixonite aguda e outras moléstias do ser humano, “versos tintos do rubro da paixão, do roxo das saudades e nostalgias, do rosa de ardentes crepúsculos, do amarelo de outonos desfolhados”, na leitura permanentemente lúcida da ensaísta Margarida Fahel.

ALGUÉM DIZ “MINISTÉRIO DE SAÚDE”?

“O secretário de Saúde está em dificuldades”, diz o jornal.  Ou seria “O secretário da Saúde está em dificuldades”? O correto é “de” ou “da”? Ambas as formas, afirmam os filólogos, são bem-vindas. O “da” tem sabor mais clássico, mais purista, enquanto o “de” é consagrado pelo uso. Minha preferência, nem precisava dizer, é pela primeira alternativa – coerente com expressões análogas. Ninguém em juízo perfeito diz “ministro de Saúde” ou “Ministério de Saúde”, e sim “da Saúde”, “da Agricultura”, “da Fazenda”. Logo, a primeira das duas escolhas está mais para a teoria do “se você entendeu, está bom”, defendida por certos (ou errados?) linguistas.

BELOS EFEITOS DA PREPOSIÇÃO “DE”

É mesmo curiosa essa preposição “de”. Surge em expressões que geram som e sabor agradáveis ao combinar palavras aparentemente inconciliáveis. Vejam esse efeito em alguns títulos de livros, lembrados ao acaso: Chão de meninos (Zélia Gattai), Girassol do espanto (Telmo Padilha), Sangue de coca-cola (Roberto Drummond), Flores do caos (Ulisses Goes), Amor de perdição (Camilo Castelo Branco). Fico surpreso ao saber que está no ar, ou esteve (não afirmo, pois não vejo novela nem sob tortura!) uma coisa chamada Canavial de paixões. Aí, tenham dó deste pobre e hebdomático escriba e o esclareçam: que diabos vem a ser um… canavial de paixões?
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O AUTOR E SEU NAMORO COM O TEXTO

Creio que a maioria dos autores seja enamorada do próprio trabalho, num estanho narcisismo, tendo o texto como o espelho em que o autor se reflete e se admira. Aventuro-me a afirmar: ainda que o leitor não se sensibilize com esse esforço, o autor se sente recompensado, quando é atingido pelo próprio produto. “Sou meu melhor leitor”, diz, com variações, esse narcisista. Escreve para ele, em primeiro lugar; se for possível, também para o leitor. Profissional a soldo, que escreve para sobreviver, não sou exceção a esta regra: estou pronto a defender o que escrevo, pois só vai a público o que é aprovado pela minha rígida autocensura.

PROVOCAR LEITOR É FUNÇÃO DO AUTOR

O que me emociona talvez não emocione o leitor; o que não me emociona, certamente não o emocionará. Logo, não será publicado. Outra questão fundamental da escrita: não há de faltar quem a deseje pura de ideologias – um produto sem fecundidade, sem calor, sem alento, banal, estéril, um fruto peco. Penso que o texto precisa ter claros e escuros, luzes e sombras, caminhos e sugestões. Se a gente entra e sai dele sem que algo se mexa dentro de nós, tal leitura não terá passado de inútil gasto de tempo. A função do autor é comunicar (talvez “provocar” seja o termo justo), daí ser indispensável que ele tenha algo a dizer – e diga.

ENTRE A NOITE ESCURA E O DIA LUMINOSO

Imagino que o texto há de ser a cara do autor, ter suas digitais, marca e estilo, no sentido dado pelo Conde de Buffon (foto), de que “o estilo é o homem” (Le style cest lhomme même). Vai-lhe bem uma pitada de ideologia, representação, teatralidade, coração, fantasmas, experiências, ritmos e cores – que passeiam entre a noite escura e o dia luminoso, entre o alfa e o ômega – digamos. O texto é tudo isso, disso tudo se alimenta, mas a tudo isso se sobrepõe. O leitor não precisa concordar com o autor, e muitas vezes é preferível que não o faça. A discordância, se praticada com honestidade de princípios, é ótimo caldo de cultura para o crescimento das ideias.

QUEM ESCREVE HÁ DE SER CRÍTICO E LEITOR

Na juventude (que longe vai), fruí de autores cuja ideologia abominava, mas que escreviam com alta qualidade – e todos contribuíram para formar este resultado que diante de vós se apresenta: o panfleto de David Nasser (foto), a eloqüência de Carlos Lacerda, a crônica de Nelson Rodrigues. Os três aspergiram em seu discurso as sombras da ideologia, do compromisso pessoal, às vezes até do interesse inconfesso – mas sempre com o condão de proporcionar um prazer intenso ao leitor e, aposto, a eles mesmos. Se, de faca na garganta, eu fosse forçado a ditar uma regra de escrita, diria: seja seu leitor e seu crítico; agrade a você mesmo – e o depois virá.

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ENTRE BALANÇAR O CORPO E O GOVERNO

I will survive (literalmente, “Eu sobreviverei”) andava no topo da lista naqueles anos setenta, a era disco (ou dance), com  os adultos jovens divididos em dois grandes grupos: um tentava balançar os milicos no poder usurpado, enquanto o outro queria apenas balançar o corpo, de preferência aquela parte que o bom Deus houve por bem fazer a mais carnuda do corpo humano. Talvez seja o caso de se dizer que entre mortos e feridos salvaram-se (quase) todos. A exceção é para os esqueletos danificados pelo pau-de-arara, os choques elétricos, o telefone e outros malefícios da ditadura.

DE GRANDE HIT DAS MULHERES A HINO GAY

É relevante dizer que I will survive, sabe-se lá por que cargas dágua, transformou-se no hino gay, e assim é conhecida hoje.  Dizem os entendidos (ops!) que o fenômeno se deu devido à fantástica quantidade de execuções que a música teve nos ambientes homossexuais. Eu nada vi, de nada sei, não afirmo nem nego, pois não estava lá. Estava, modestamente, procurando derrubar o governo, o que (me dói afirmar) não conseguimos. Ele só caiu de podre. Mas preciso ser justo: minha escoliose não foi provocada pelos militares, e sim pela má postura. Voltemos à canção, que é menos penosa.
</span><strong><span style=”color: #ffffff;”> </span></strong></div> <h3 style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>E FRED JORGE CRIOU CELLY CAMPELLO!</span></h3> <div style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>No auge do sucesso, em 1965, a música teve uma versão no Brasil, gravada por Agnaldo Timóteo. Como costuma ocorrer com as

CARAS E BOCAS DE VIRA-LATA ABANDONADO

Em I will survive (Dino Fekaris e Freddie Perren), uma mulher bem resolvida é procurada pelo sujeito que a deixara de maneira vil e que, de repente, está ali na sala de visitas, dando uma de vira-lata abandonado. Diante do cara “Com aquele ar tristonho no rosto” (With that sad look upon your face), ela relembra as injúrias do passado e joga duro, bem ao estilo do lateral Felipe Melo: “Vá embora agora! Saia por aquela porta!” (Well, now go! Walk out the door!). Embora não seja suficiente para ganhar o Nobel de Literatura, é uma letra forte, apropriada para mandar homem pastar.

O PRECONCEITO E A MORTE AOS 36 ANOS

Ao descobrir que Vanusa (foto) teria a audácia de gravar I will survive, o reduto entrou em parafuso: depois do hino nacional, o que ela faria com o hino gay? Ouvi relato de que numa dessas paradas GLBT ela entoou Eu sobrevivo (versão de Paulo Coelho, ex-parceiro de Raul Seixas e maior vendedor de livros do mundo) e não reeditou o desempenho obtido com a canção de Osório Duque Estrada e Francisco Manuel da Silva, quer dizer, sob o ataque vanusiano, a música fez o que faz nos últimos trinta anos: sobreviveu. Afaste os móveis, aperte o play e solte a fran…, isto é, mande ver (escolhemos Gloria Gaynor, para prevenir acidentes com o “hino”).

(O.C.)