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Luiz Conceição | jornalistaluizconceicao2@gmail.com

No dia seguinte, a natureza em fúria fez o rio avançar ainda mais. Desta vez pela Avenida do Cinquentenário e demais vias e praças na parte baixa do centro, inundando lojas de tecidos, sapatos e acessórios e eletrodomésticos, residências, agências bancárias, depósitos de cacau…

 

Há 50 anos o céu cinzento de dezembro era prenúncio de chuvas e de muita fartura. Fazendeiros e comerciantes estavam animados com aquele tempo, porque chuva nesta época do ano significava mais fruto de cacau na safra e mais dinheiro na caixa registradora e circulando, irrigando a economia.

A vida das famílias seguia com a expectativa das festas de fim de ano. Para alguns estudantes, era fim do ciclo primário e do ginásio, para onde muitos de nós ansiávamos chegar com o exame de admissão.

A temida prova dava acesso à 1ª série ginasial. Era ritual de passagem da infância para a adolescência. Por isso, o resultado do exame de admissão era aguardado com ansiedade e medo por toda a família e não só por nós.

À medida que se aproximava o Natal era intenso o frenesi pelos presentes nas lojas e nas casas. Nessa época, chovia abundantemente no sul da Bahia, abençoado com a rica mata atlântica, ribeirões e rios fartos e cheios de peixes. Os índices pluviométricos registram no começo de todos os verões o início da quadra chuvoso do ano.

Passou a festa natalina. As chuvas ficaram ainda mais fortes e intensas. Transbordamento de riachos, ribeirões e cursos d’água e dos tributários – Salgado e Colônia – que formam o Rio Cachoeira que corta Itabuna em direção ao mar no litoral da velha Capitania de São Jorge dos Ilhéus.

Com o volume d’água crescendo a cada hora ficaram mais encorpados. O que era alegria do povo em ver o rio cheio de suas margens, junto com crianças e adolescentes em algazarra e férias, se transformou em medo, drama e terror a partir do dia 27 de dezembro.

As águas turbulentas, escuras e sujas do Cachoeira transbordaram da calha e alcançaram as parte baixas da cidade. Burundanga, Berilo e Bairro Mangabinha, na zona oeste. Cajueiro e Fátima, ao leste, e bairro Conceição, lado oposto ao centro da cidade, tiveram famílias desalojadas e desabrigadas.

No dia seguinte, a natureza em fúria fez o rio avançar ainda mais. Desta vez pela Avenida do Cinquentenário e demais vias e praças na parte baixa do centro, inundando lojas de tecidos, sapatos e acessórios e eletrodomésticos, residências, agências bancárias, depósitos de cacau…

O que era espetáculo virou tragédia, desespero.

As águas derrubaram casas, carregaram móveis e utensílios domésticos. No comércio se perderam mercadorias nos expositores, balcões e depósitos.  Alguns comerciantes foram vítimas de saqueadores que, desavergonhadamente, furtaram-lhes mercadorias em meio ao caos.

Muitos empregados no comércio arriscaram-se em proteger e salvar lojas e bens dos patrões, inclusive com a própria vida. Não se sabe ao certo quantos morreram enfrentando a correnteza forte das águas que em alguns locais do centro comercial do centro de Itabuna alcançou 2,5 metros, derrubando posteamento da rede de energia elétrica e sinais de trânsito, solapando marquises.

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A outrora culta e reluzente sociedade grapiúna é hoje arremedo do que foi antes da cheia desta Cachoeira que completa agora 50 anos. 

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Há todo um folclore posterior à tragédia de 1967 que, ao lado das enchentes do Rio Cachoeira em 1914 e 1947, figura com a mais espetacular e terrível de todas. Mesmo quem não se viu diretamente atingido não deixou de se condoer com parentes, amigos e vizinhos que perderam tudo.

Embora a cidade ainda viva, não tem nenhuma memória da mais famosa enchente de sua história que não foi fato isolado. Houve rumores do estrondo de uma barragem numa fazenda de criação de gado nas bandas de Santa Cruz da Vitória, então 36, fato noticiado de forma acanhada pela imprensa de então.

Há imagens de ruas e avenidas alagadas dos fotógrafos Newton Maxwell (Buião), Sabino Primitivo Cerqueira e Emerson Trindade Carregosa (Foto Emerson), dentre outros, ainda preservados em sites na Internet. A outrora culta e reluzente sociedade grapiúna é hoje arremedo do que foi antes da cheia desta Cachoeira que completa agora 50 anos.

As águas levaram consigo o balcão frigorífico, cadeiras e mesas do Vagão, bar e restaurante à cabeceira da Ponte do Marabá, margem direita do rio. Lá se reunia a intelectualidade e a promissora juventude da época de ouro do cacau para sorvetes, cuba libre ou hi-fi e bebidas diversas após sessões de cinema.

Janeiro chegou e com ele o socorro pelos Governos federal e estadual às vítimas, inclusive com a criação do atual bairro Lomanto e vacinações. O comércio teve pouca ajuda que se iniciou com caminhões de guarnições do Corpo de Bombeiros de Salvador lavando as avenidas, ruas e praças do centro.

Itabuna vive, mas nada recorda da trágica enchente de 1967. Além de destruir a dignidade das pessoas, bens e mercadorias, certamente a cheia lavou tudo, incluindo o amor à cidade e sua gente, além do que restou de nossa pouca memória que um dia nos faltará muita, mas muita falta. E não é porque não haja dinheiro para estudos e pesquisa sobre sua própria história.

Luiz Conceição é jornalista.