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A TELEVISÃO E SUA LINGUAGEM RASTEIRA

Ousarme Citoaian
Do jeito que a coisa anda, terminaremos nos comunicando por sinais de fumaça. Escrever (ou falar) de acordo com o que a norma preceitua virou coisa arcaica, sem graça e de difícil entendimento. E a mídia (façamos aqui um mea culpa) tem muito a ver com isso, sobretudo a tevê, que defende como princípio uma linguagem cada vez mais rasteira, cooptando, lentamente, a sociedade: os folhetins (a que chamam novela), antes considerados “produto para domésticas analfabetas”, hoje são matéria de teses de doutoramento nas universidades (e quem empregar a frase aspeada será tido como preconceituoso e politicamente incorreto). São ásperos os tempos.

ANTÔNIO MARIA, A FRASE PARA A HISTÓRIA

O processo de erosão intelectual é bem antigo. Sérgio Porto (o Stanislaw Ponte Preta) nos conta esta: Antônio Maria (cronista, compositor, narrador de futebol, roteirista e apresentador de programas de rádio e televisão), foi solicitado por Péricles do Amaral, então diretor da TV Rio, a copidescar uma matéria. A ideia era tornar o texto mais simples, ao alcance do público menos escolarizado. O trabalho do autor de Ninguém me ama não satisfez o chefe, pois este achava que o texto ainda poderia ser mais simples. O bom Maria refez a tarefa, porém, ao entregar a nova adaptação, produziu uma frase para a história: “Pior do que isto eu não sei fazer”.

DE COMO TORNAR PERPÉTUA A IGNORÂNCIA

A tevê, em seu objetivo de atingir as camadas medianas da população, derrapa tanto em linguagem quanto em conteúdo. A linguagem (seja na tevê seja na literatura de ficção, por exemplo) precisa ser simples, sem ser indigente. Nunca é demais repetir que a simplicidade é uma qualidade do estilo. Portanto, ser simples, sem ser rasteiro, não é defeito, é virtude. Já a questão do conteúdo é mais difícil: William Bonner, editor do Jornal Nacional, comparou o telespectador médio a alguém simplório como o personagem Homer Simpson, “incapaz de entender notícias complexas” – daí o JN só divulgar o “simples”. Este, sim, é um argumento destinado a perpetuar a ignorância.

PROVA DE DESRESPEITO AO LEITOR/OUVINTE

Costumo dizer que jornalistas detêm, basicamente, o mesmo saber. Eles se diferenciam na ética, no comportamento moral e na (in) dependência com que atuam – mas se equivalem em domínio da linguagem (ou não são jornalistas, são enganadores). Todos eles sabem o que é sujeito e predicado, estudaram e apreenderam noções de concordância, regência e acentuação (se não estão seguros sobre o emprego do hífen, não os culpemos – afinal de contas, ninguém sabe usar esse sinalzinho nefasto, depois do último Acordo Ortográfico). Por que erram tanto? – perguntaria a leitora ingênua (ainda há leitoras ingênuas?), a quem eu diria: erram por falta de cuidado, desleixo e conseqüente desrespeito ao leitor/ouvinte.

CUIDADO COM O REBANHO BOVINO NAS RUAS

Em dias recuados, na aventura de assistir a um noticiário de tevê, dei de cara com uma reportagem do Extremo Sul da Bahia, alardeando o progresso econômico daquela região. Lá pras tantas, o repórter destacou que, além da agricultura, existe em Teixeira de Freitas um notável crescimento da pecuária. E saiu-me com esta pérola: “Tanto é assim que a cidade já possui o quarto rebanho bovino do estado”. Pálido de espanto, pensei no inferno que seria a cidade conviver com tantas vacas, bois, bezerros e touros nem sempre de bom humor, a atravancar ruas e amedrontar pessoas. Ao que me consta, nem a Índia (onde as vacas, por tradição religiosa, têm sagradas até as fezes e a urina) se viu igual pesadelo.

PARA UM BIFE, 15 MIL LITROS DE BOA ÁGUA

Devidamente traduzida e digerida a notícia, filosofei, a respeito do repórter: tão jovem, bem vestido, mas tão descuidado! Tudo ficaria simples e claro se ele dissesse que “o município” etc. etc., pois é regra conhecida que a pecuária não se pratica na cidade: é lá no campo que ela se exerce, sob protesto dos ambientalistas, que querem os bois extintos (um bovino, até que passe de bezerro a bife acebolado, bebeu milhões de litros de boa água – sendo que o tal bife acebolado “custa” cerca de 15 mil litros – mas esta é outra história). Voltando à pérola, é o que dizíamos na abertura deste tema: o repórter, por certo, está careca de saber que município e cidade são valores bem diferentes. Descuidou-se.

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DE TROPEIRO A ATOR, POETA E COMPOSITOR

Zé do Norte (por extenso, Alfredo Ricardo do Nascimento, em Cajazeiras/PB) trabalhou na enxada sob o sol do sertão nordestino, foi tropeiro e apanhador de algodão. Em 1921, alistado no Exército, foi servir no Rio de Janeiro e, a partir de um convite de Joracy Camargo, embrenhou-se no meio artístico e foi em frente: virou cantor, compositor, poeta, folclorista e ator. Jogava nas onze e chutava com as duas. Trabalhou nas principais emissoras de rádio da época, foi consultor do sotaque nordestino em O Cangaceiro (Lima Barreto) e, graças a esse filme, ficou conhecido mundialmente com Muié Rendera (ou Mulher Rendeira). Fez cerca de cem canções, algumas delas com revisitas modernas de Nana Caymmi, Raul Seixas, Maria Bethânia e Joan Baez. É tido como “descobridor” de Luiz Gonzaga.

CANGACEIRO-POETA OU POETA-CANGACEIRO?

O músico pernambucano (1926-2006) ensinou a arte a Baden Powell, Paulo Moura, Menescal, Sérgio Mendes, Nara Leão, João Donato. Não é pouca coisa. Dele, Vinícius disse (Samba da Bênção): “Moacir Santos/tu que não és um só, és tantos”. Sua estreia em gravação se deu com o álbum Coisas, “um dos melhores discos brasileiros de todos os tempos”, segundo a revista Rolling Stones. São dez faixas – Coisa nº 1, Coisa nº 2, Coisa nº 3 (e por aí vai), mas Coisa nº 1 não é a primeira faixa, é a 8ª, Coisa nº 8 é a 10ª e Coisa nº 5 é a 3ª. Coisa confusa, não? Coisa mais linda é Sônia Braga, que enfeita, acompanhada de figuras carimbadas da Globo em 1980, Coisas do mundo, minha nega, do elegante, fino, inteligente, discreto e terno Paulinho da Viola. Faltou alguma coisa? Então vá: genial.

LAMPIÃO: “TU ME ENSINA A FAZER RENDA”

Volta Seca e Zé do Norte foram contemporâneos (Zé do Norte era dez anos mais velho) e, ao que consta, chegaram a trabalhar juntos como consultores de O Cangaceiro. Mesmo assim, o ex-integrante do bando de Lampião não se mostrou incomodado com a Muié Rendera cantada pelo grupo paulistano Demônios da Garoa (a letra de Zé do Norte, não a dele). E não se pode ignorar a versão também corrente de que o autor não seria nenhum dos dois, mas o mítico Lampião, o Rei do Cangaço. Enfim, a autoria da letra simplória de Mulher Rendeira tem lá seus mistérios, mas a Zé do Norte cabe o mérito da adaptação conhecida por várias gerações de brasileiros, há quase 60 anos. A dupla Marco Pereira (violão) e Gabriel Grossi nos mostram o que a composição tem de melhor, a melodia.
(O.C.)
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MALTRADA, A VIDA SE DESMANCHA NO AR

Ousarme Citoaian
Ouvi, ad nauseam,  falar da coincidência de que  Amy Winehouse morreu aos 27 anos – com a citação de que na mesma idade morreram Janis Joplin (foto), Jimi Hendrix e Jim Morrison. Um repórter pouquinha coisa mais bobo chamou a isso de ”Maldição dos 27 anos”. Besteira. “Maldição” (vinda das múmias do Egito ou que outra origem tenha) rima com alienação: é algo criado por nós mesmos, não pelos deuses ou demais forças impalpáveis. Se maltratamos o corpo (com drogas, comida imprópria, descanso insuficiente), ele tende a apressar seu fim, como ocorre com todo tipo de vida (o amor também, maltratado, cedo fenece). Infringida esta regra, a morte não é razão de espanto.

A MÍDIA NÃO CONHECE DA LISTA A METADE

Mas o noticiário, mesmo repetido, não corrigiu a ignorância por ele disseminada. As drogas (na suposição de que seja este o caso) mataram muitos artistas, sobretudo músicos, norte-americanos e ligados ao jazz/blues (e disso já falamos aqui). Pior: esqueceram de Noel Rosa e Robert Johnson (foto), também mortos aos 27 anos. O primeiro (um dos maiores da MPB), de tuberculose; o outro (um dos maiores do blues), assassinado, provavelmente. Nenhum dos dois era padrão de vida saudável. Destaco Noel e Johnson por mera preferência pessoal, mas a lista dos “amaldiçoados”, que colho na internet, vai muito além da vã filosofia da mídia mal informada e má informante. A seguir, alguns desses nomes.

“MALDIÇÃO” TEM MUITO A VER COM DROGAS

Aqui, 26 músicos mortos aos 27 anos, de 1908 a 2006 (a lista completa tem uns 40!), a maioria devido a drogas: Louis Chauvin (1908), Nat Jaffe (1945), Jesse Belvin (1960), Rudy Lewis (1964), Malcolm Hale (1968), Brian Jones (1969), Arlester Cristian (1971), Linda Jones (1972), Ron McKernan (1973), Wallace Yohn (1974), Peter Ram (1975), Cecilia Sobredo Galanes (1976), Helmut Kollen (1977), Chris Bell (1978), Jacob Miller (1980), D. Bun (1985), Alexander Bashlachev (1988), Pete de Freitas (1989), Mia Zapata (1993) Kurt Cobain (1994), Richey James Edwards (1995, na foto), Patrick McCabe (2000), Rodrigo Bueno (2000), Maria Serrano (2001), Bryan Ottoson (2005), Valentin Elizalde (2006).

O DIRETOR QUE APARECIA EM SEUS FILMES

Alfred Hitchcock (foto) tinha excentricidades de gênios de anedota. Entre elas, a de aparecer em seus próprios filmes. Na juventude que me abandonou há uns 300 anos (quando cinema era coisa banal) me diverti identificando a presença do mestre em seus trabalhos. Mas isto não é tão fácil quanto parece, pois o velho Hitch divertia-se também com esse expediente, “disfarçando-se”, de maneira que sua figura rotunda nem sempre ficasse evidente. Em Um barco e nove destinos ele pensou em aparecer como um cadáver boiando próximo ao barco, mas trocou a ideia macabra por outra do tipo “Antes & Depois”: um anúncio de remédio para emagrecer, exibido durante o filme, mostra o diretor redondo (antes) e, na outra foto, mais magro.

UM PACATO CIDADÃO COM SEUS CÃEZINHOS

Outras aparições hithcockianas: Em Festim diabólico, o ilusionista, de novo, tenta nos enganar: aparece logo no início, atravessando a rua. Mais tarde, quando a gente pensa que a xarada está morta, ele ressurge, com sua caricatura num neon que incide sobre a janela do apartamento dos assassinos. No começo de Intriga Internacional, lá vem ele correndo para pegar o ônibus (a porta se fecha, antes que ele entre!); em Topázio, o diretor está numa cadeira de rodas, e se levanta para cumprimentar um homem. Depois dos 12 minutos iniciais de Correspondente estrangeiro vê-se um senhor de chapéu, lendo o jornal. É ele. Em Os pássaros, Hitchcock passa pela calçada de uma loja de animais, levando dois simpáticos cãezinhos para passear.

ATRIZ BICADA POR PÁSSAROS ENFURECIDOS

Contam que Hitchcock preferia aparecer de forma que não complicasse o entendimento da história, não roubasse a cena. Mas isso não funcionava, pelo menos com a fauna que comigo ia ao cinema naqueles tempos: buscávamos a figura famosa e não descansávamos até identificar o reconchudo diretor. Era um jogo de esconde-esconde que só terminava quando o “apanhávamos”. Outras esquisitices ele deixou transparecer em Os pássaros: tornou-se obcecado pela atriz Tippi Hedren, a ponto de contratar uma equipe de detetives somente para seguí-la e informá-lo de tudo o que ela estivesse fazendo. E na famosa cena do ataque ele usa pássaros realmente enfurecidos para bicar a pobre moça, para horror dos outros atores.

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GAITA E VIOLA: O BLUES VISITA O SERTÃO

O paraibano Bráulio Tavares (foto), dono de incomum inquietude intelectual (é poeta, prosador, compositor popular, estuda cinema, faz pesquisa em literatura fantástica, escreve coluna de jornal e roteiros de filmes), chama a atenção para a convergência do blues com a cantoria nordestina (a que chamam “cordel”). Apenas na forma: a cantoria é montada, ao menos em seu formato mais comum, em sextilhas (estrofe de seis versos), e o blues também. Na origem, ficam distantes, pois a sextilha, até prova em contrário, é “ibérico-catingueira” (creio que Ariano Suassuna aprovaria esta invenção) e, ao contrário do blues, nasceu em área de baixa densidade negra e tem raríssimos cantadores negros.

ROBERT JOHNSON E O PACTO COM O CAPETA

O poeta da terra dos grandes Jackson do Pandeiro e Genival Lacerda faz um inesperado aproach do canto nordestino com o sofrido blues de raiz plantada nos algodoais racistas do sul estadunidense. Para tanto, Bráulio contou com o gaitista carioca Flávio Guimarães (foto), velha fera do blues brasileiro, fundador da banda Blues etílicos e que já gravou com meio mundo: Ed Motta, Alceu Valença, Renato Russo, Rita Lee, Zélia Duncan, Titãs, Luiz Melodia, Paulo Moura, Zeca Baleiro e outros. Na letra de Bráulio, música e voz de Flávio, uma homenagem a Robert Johnson – que alimentou a lenda de ter aprendido a tocar o diabo. Meia-noite, numa encruzilhada, évidement. Como se o capeta tocasse blues tão bem.

O BLUES É SOMA DE TRISTEZA COM POESIA

Balada de Robert Johnson é a história romanceada do artista negro. Tem 93 versos, mas logo no primeiro bloco há seis sextilhas que “pagam” o poema: “Vinte e sete anos vividos/lá nos Estados Unidos/passou veloz como a luz//Naquela terra sombria/onde a tristeza e poesia/se dava o nome de blues”. Já na abertura (são nove blocos de dez versos, mais três sextilhas finais), Bráulio nos brinda com um achado: “Seu nome era Robert Johnson/cantador d´outro sertão”, ligando a temática da miséria nas plantations de algodão (berço do blues) à seca nordestina (onde vige a cantoria). Mas é bom deixar que o leitor faça suas próprias descobertas.

(O.C.)

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