Lucio: "inconcebível Bahia não ter monitoramento costeiro" || Foto Pimenta
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Quem mora em Ilhéus acostumou-se a ver imagens dos estragos causados pelo avanço do mar no litoral norte, especialmente nos bairros São Miguel e São Domingos. Agora, há evidências de que o mar também ganha espaço na zona sul da cidade, afirma o oceanógrafo Lucio Figueiredo de Rezende, doutor em Física pela Universidade de Aveiro e professor da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc).

Os sinais da subida do mar também ao sul, explica Lucio, estão na erosão dos bancos de areia que não desaparecem com as mudanças sazonais do território litorâneo. São essas formações que dão base à vegetação de restinga e funcionam como barreiras naturais ao avanço do mar, acrescenta o oceanógrafo.

Sem instrumentos de exame dos fenômenos, continua Lucio, a observação humana não consegue determinar, por exemplo, as causas do aumento do nível do mar nem sua taxa de elevação. Acontece que esse é o tipo de informação básica para o planejamento da ocupação da costa. Na entrevista a seguir, o pesquisador afirma que, neste momento, Ilhéus e toda a Bahia estão numa situação de “cegueira” sobre os fatores que atuam na dinâmica dos processos costeiros. Leia.

PIMENTA Professor, o que mudou na sua percepção da costa de Ilhéus desde aquela primeira entrevista?

Lucio Figueiredo de Rezende – De forma geral, há um acirramento dos processos erosivos ao sul e ao norte. Tínhamos feições deposicionais de longo prazo, as chamadas bermas de praia, dunas embrionárias, que são formações de longo prazo, cobertas por vegetação de restinga. Agora, você observa que essas feições estão erosivas. O mar está solapando, como se fosse um processo de mesoescala.

O que é um processo de mesoescala?

É um processo com extensão espacial grande. Não é de causa local. Possivelmente, não é só o efeito de um porto ou de uma ponte. Mudanças climáticas e aquecimento dos oceanos podem intensificar processos locais. Esses fatores atuam em conjunto na natureza. Você tem processos de pequena, média e larga escala. Provavelmente, os processos de larga escala atuam de forma mais intensa aqui, neste momento, causando processos erosivos que a gente não observava com a mesma intensidade de agora.

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 São processos lentos. O olho humano não capta. Você só observa quando cai um coqueiro centenário.

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Quando esses fenômenos se tornaram mais visíveis em Ilhéus?

É difícil dizer quando começou a acontecer, porque são processos lentos. O olho humano não capta. Você só observa quando cai um coqueiro centenário. Quando você observa que uma duna grande da região desapareceu. Quando você anda muito pelo litoral, encontra diversas evidências desses processos erosivos.

Quais consequências podem advir da erosão das dunas costeiras?

As dunas funcionam como depositórios de sedimentos de outro momento, de um momento de mais construção. Se você começa a ter sempre o predomínio de processos erosivos, você começa a ver o mar invadindo. Sem as dunas, as zonas de costa ficam mais desprotegidas. É por isso, por exemplo, que a tal faixa de marinha deve ser protegida. Você também observa em Ilhéus as pessoas ocupando a faixa de marinha, inclusive no sul da cidade, mas não deveriam fazer isso. A faixa de marinha é uma zona de preservação para a biota, o ser humano e as construções humanas.

Quais são as evidências de que esse processo erosivo se intensificou na zona sul?

Depósito de areia erodido pelo mar na Praia da Renascer || Foto Lúcio Rezende

Se você andar nas praias da zona sul, vai ver as escarpas, que sempre foram comuns no inverno, mas se recompunham no verão. Agora, você vê escarpas ao longo do ano todo. Quer dizer, esse sedimento não está sendo novamente depositado. É óbvio que, na praia do norte, você teve o impacto do porto. Agora, a gente está falando de processos naturais que a gente não sabe exatamente quais são. Falta-nos uma rede de marégrafos, com registro contínuos, para monitorar a costa da Bahia.

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A Bahia, com uma economia que depende tanto do mar, deveria estar mais preocupada com isso.

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Como esse monitoramento pode ajudar na gestão costeira?

O marégrafo é um instrumento simples. Basicamente, ele registra o nível do mar. Nesse registro, você tem a maré propriamente dita e todos os outros fenômenos associados ao nível do mar, mas que não são maré. Por exemplo, a elevação causada pela dilatação da água nos períodos de aquecimento do mar, as variações de cada estação, as entradas de tempestade. Alguns desses fenômenos são chamados de maré meteorológica. Com os dados do marégrafo, o cientista separa a maré astronômica, que não tem variações significativas de seus padrões, e fica com a elevação do nível do mar. Assim, ele estuda a causa desses fenômenos e obtém a taxa de elevação. A Bahia, com uma economia que depende tanto do mar, deveria estar mais preocupada com isso. A economia marítima é um componente muito forte do estado, além da questão cultural, porque a Bahia é um estado voltado para o mar.

Qual tipo de medida poderia ser orientada pela taxa de elevação do mar?

Você vai saber se é conveniente ou não autorizar a ocupação de áreas litorâneas, permitir grandes ocupações, prédios, estabelecer a distância para a construção de prédios fora da zona de costa. Se vamos ter processos erosivos [com o aumento do nível do mar], vale a pena construir esses espigões tão altos próximos da linha de costa? Ou seja, poderemos tomar decisões com ciência do que está acontecendo. Esse monitoramento também é a única forma de saber qual é o tempo de resposta que a gente tem para construir proteção costeira. Se a taxa de elevação for elevada, temos que planejar a proteção desde já.

Qual é o status da nossa capacidade de planejamento costeiro?

Estamos numa situação de cegueira. Olhamos o litoral, observamos que o mar está avançando, mas não temos dados de monitoramento para determinar a taxa de elevação. Nós não sabemos se é um fenômeno devido ao aquecimento; se é sazonal, mas em escala maior; ou se é uma isostasia. Precisamos definir isso cientificamente e, com base nessa resposta científica, planejarmos nossa ocupação litorânea. É inconcebível que a Bahia não tenha planejamento pra sua linha de costa.

O que é isostasia?

Quando uma região reage ao peso de uma construção. É muito difícil determinar, mas não é prudente construir um bloco de edifícios numa faixa costeira. Pode haver abaixamento relativo ou elevação [do solo] em outra faixa. Santos sofre com isso. Por mais estranho que seja, não é magia, ocorre mesmo. Estamos sobre uma placa continental, isso significa que os impactos dessa reação não é, necessariamente, local. Outro exemplo é Camboriú. Aqueles prédios todos. Uma inconsequência. Afeta o equilíbrio dinâmico das massas, a circulação do vento, calor, brisas, iluminação – tudo o que devemos evitar em Ilhéus. Isso apaga o relevo. Cidade alta e baixa desaparecem. Ilhéus já está difícil. Salvador é impossível: você está no Jardim Apipema, um vale, e não tem mais a percepção de vale.

Prefeito fez anúncio ao lado da primeira-dama Soane Galvão e do secretário Vinicius Briglia || Imagem extraída de vídeo
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O prefeito Mário Alexandre, Marão (PSD), anunciou que o Instituto Nacional de Pesquisas Hidroviárias (INPH) vai elaborar estudo para desenvolver o projeto de uma solução definitiva contra o avanço do mar nos bairros São Miguel e São Domingos, na zona norte de Ilhéus.

Ele fez o anúncio ao lado a primeira-dama Soane Galvão e do secretário de Desenvolvimento Econômico do município, Vinicius Briglia, num vídeo que começou a circular hoje (27) nas redes sociais. Segundo o prefeito, além de evitar que o problema se transforme numa tragédia, a ideia é revitalizar a orla norte como atração turística. O estudo será iniciado neste semestre.

De acordo com o oceanógrafo Lucio Figueiredo de Rezende, professor da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), o INPH tem engenheiros qualificados para fazer esse tipo pesquisa. Recentemente, Lucio concedeu entrevista ao PIMENTA e apontou que uma solução viável para conter o mar seria a estabilização da orla com pedras, levando em consideração a importância de se reurbanizar a faixa litorânea – relembre aqui. “Compraram nossa ideia, e o INPH é um corpo de engenharia qualificado. Vamos acompanhar”, observou o docente do Departamento de Ciências Exatas, nesta terça-feira (27), ao avaliar positivamente a iniciativa do gestor.

Entrevista pelo PIMENTA, professor da UESC, Lúcio Rezende, explica como o Porto do Malhado agravou a erosão marinha na orla norte e sugere o que pode ser feito para conter avanço do mar || Fotos: Facebook/Reprodução e Ed Ferreira
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O oceanógrafo Lucio Figueiredo de Rezende, nesta entrevista ao PIMENTA, alerta para o risco de o São Miguel, bairro do litoral norte de Ilhéus, sumir do mapa, caso nada seja feito para conter a erosão marinha naquela área.

Professor do Departamento de Ciências Exatas da Universidade Estadual de Santa Cruz (Uesc), Lucio explica como a construção do Porto do Malhado, inaugurado em 1971, interferiu na dinâmica do litoral ilheense, com o acúmulo de areia na Praia da Avenida e os processos erosivos na orla norte. Também sugere o que pode ser feito para impedir que o mar ganhe mais terreno no São Miguel e no bairro vizinho, o São Domingos.

Casas ameaçadas pelo avanço do mar no São Miguel

O docente, que é doutor em Oceanografia Física pela Universidade de Aveiro, de Portugal, defende que a estabilização da linha costeira seja acompanhada pela reurbanização da orla norte.

Os manguezais também podem sofrer com os impactos do avanço da mar na Barra de Taípe e o assoreamento na Baía do Pontal, observa Lucio, chamando a atenção para a importância do mangue como barreira contra a dispersão de poluentes no meio ambiente. Leia.

A Avenida Soares Lopes e sua praia, em fotos de 1957 e 2020 || Acervo de José Nazal

BLOG PIMENTA – Quais foram os principais impactos da construção do Porto do Malhado para as orlas do Centro e da Zona Norte de Ilhéus?

Lucio Figueiredo de Rezende – O impacto mais evidente da construção do Porto do Malhado foi o acúmulo de sedimentos que a gente vê na [Avenida] Soares Lopes. Isso era um processo litorâneo, que levava à distribuição de sedimentos ao longo da orla de Ilhéus. Esse sedimento acabou sendo aprisionado na Soares Lopes. Você vê o engordamento artificial daquela praia da Soares Lopes, que está levando também a um processo de assoreamento da Baía do Pontal, que está bem assoreada. No lado norte, há processos erosivos, principalmente em São Miguel. São Miguel, por suas próprias características, já seria um local erosivo. Entretanto, no passado, nós tínhamos um aporte frequente de sedimentos que equilibrava esses processos erosivos. Agora, depois de anos da construção do porto, você tem o bloqueio da carga sedimentar e processos erosivos intensos em São Miguel.

O espigão do Porto do Malhado, na ponta norte da Praia da Avenida

Esse bloqueio foi feito com o espigão do porto?

É uma consequência da construção do espigão, porque o transporte litorâneo não consegue transpor aquele espigão. Há uma retenção muito grande de carga sedimentar. Tem a ver com a parte de transporte de sedimentos, velocidade de fluxo, etc. Falando de uma maneira simples, é isso: uma incapacidade de transporte. Isso acontece muito. Quando você constrói barreiras no ambiente costeiro, isso gera problemas que vão se manifestar em outras regiões. Se você construir diversos espigões, você vai transferindo esses processos litorâneos para outras regiões. Você tem que tomar cuidado com isso. A zona litorânea é muito sensível, é parte de um sistema dinâmico, cuja resultante pode ser um processo erosivo em outra região.

Os espigões do São Miguel em 2006 || Foto José Nazal

O senhor explicou que os espigões construídos na orla norte poderiam ser um pouco maiores, mas não muito. Por quê?

Você deve agir sempre com parcimônia. Se você colocar espigões muito grandes, embora possa melhorar a deposição local, acaba gerando processos erosivos mais à frente. Por isso é necessário agir com muita parcimônia e responsabilidade no ambiente litorâneo. Eu acho que os espigões, da forma como estão ali, estão bons. Eles seguraram um pouco do transporte sedimentar. O que deveria ter sido feito – e não foi – era uma estabilização da linha de costa. É inconcebível perder ruas inteiras com o avanço do mar. Você estabiliza a linha de costa e dá uma tranquilidade para a população local.

Área estabilizada com pedras na linha costeira do São Miguel, ao lado da Barra de Taípe, perto da Cabana da Sol

A gente viu na Barra de Taípe, perto da Cabana da Sol, uma área bem estabilizada. O ideal seria fazer o mesmo tipo de estabilização, com aquela quantidade de pedras, ao longo da orla de São Domingos e São Miguel?

Sim, e, de preferência, cuidando com humanismo da região, estabilizando e fazendo, por exemplo, uma faixa litorânea, talvez com ciclovias, enfim, um lugar agradável. Assim você resgata a autoestima da comunidade e não perde área para o mar. O mar está avançando sempre. Todo ano ele avança um pouco. Se nada for feito, vai continuar avançando.

Parte da orla destruída pelo mar no São Domingos; erosão alcançou margem do asfalto da BA-001

Existe mesmo a possibilidade de todo o São Miguel desaparecer?

Sim, o São Miguel está cada vez sofrendo mais processos erosivos. Sim, o mar pode romper aquela barra de São Miguel, se você não fizer nada. Existe a solução de curto prazo: estabilizar a linha de costa. Também é preciso olhar para uma solução de longo prazo para minorar o sedimento aprisionado no Porto do Malhado. Se você faz uma solução de curto prazo, estabilizando a linha de costa, isso vai dar tranquilidade à população litorânea. Nesse tempo, você tenta achar soluções junto com o Governo do Estado, o porto, para recompor um pouco do transporte litorâneo. Você não pode recompor totalmente, porque agora há uma outra dinâmica que depende do acúmulo de sedimentos na Soares Lopes. O primeiro passo é estabilizar a linha de costa. É o que deveria ter sido feito muito tempo atrás. Não é nada tão caro assim. Aproveita o verão para fazer as obras, porque, no inverno, os processos erosivos voltarão.

A Codeba anunciou que vai fazer nova dragagem, o que é importante para aumentar a capacidade de atração de navios para o Porto do Malhado. Isso pode agravar a erosão no norte?

Isso é normal. O que pode ser feito é a análise desse material; se ele não estiver contaminado por metais pesados, poderia ser levado para a praia do norte. Só é possível saber se há contaminação com análises laboratorias. A princípio, não há problema em fazer uma dragagem no porto.

Professor explica sazonalidade do processo erosivo na costa litorânea, que se intensifica no inverno

Por que a erosão ocorre de forma sazonal?

A erosão ocorre ali [na orla norte]. No passado, você tinha um transporte sedimentar que equilibrava esse processo. Existe uma sazonalidade porque, no inverno, as ondas são mais energéticas. Você tem frentes frias e ondas de diversos quadrantes chegando. As ondas são formadas em altas latitudes, não são formações locais. Elas trazem energia de tempestades. No inverno, você tem mais tempestades, por isso as ondas são mais energéticas e fazem com que o transporte sedimentar seja em direção à plataforma. No verão e nos outros períodos do ano, as ondas são menos energéticas e as praias são mais gordas. Há um perfil construtivo das praias, um engordamento. Daqui a pouco, nós teremos processos erosivos e vamos ver todo o drama que se repete, todos os anos, naquela zona de Ilhéus. Há um estoque limitado de areia que transita na praia. Quando você não tem barreiras, ela transita livremente. Quando você faz uma barreira litorânea, muda esse fluxo de sedimentos.

O assoreamento na Baía do Pontal também é um impacto do Porto do Malhado ou já é da nova ponte?

A Baía do Pontal é um estuário, que tem a tendência natural de sofrer assoreamento. Nesse caso, também tem uma influência do engordamento da Praia da Avenida. Os sedimentos litorâneos estão entrando na Baía do Pontal. Ali é um reflexo de tudo isso que aconteceu em decorrência do porto e também do assoreamento natural do estuário. Daqui a pouco nós vamos ter que fazer alguma coisa na Baía do Pontal também, uma dragagem, para mantê-la estabilizada. É uma outra dinâmica, que também se conecta com a do litoral, mas é particular, porque ali você tem um estuário.

O senhor demonstrou preocupação com os impactos desse avanço do mar sobre os manguezais. O que está em risco nesse caso?

Os manguezais são barreiras biogeoquímicas. Eles retêm os poluentes. No manguezal, os poluentes estão complexados na estrutura do mangue, não causam problemas para a biota nem para os seres humanos. Quando você perturba o manguezal, pode tirar um pouco dessa estabilidade. Os manguezais são ambientes muito importantes, que devem ser preservados não só como berçários naturais, mas também como barreiras biogeoquímicas, segurando e estabilizando todas as nossas atividades, todos os poluentes que chegam na zona litorânea. Um ambiente sem mangue vai ser um ambiente muito mais contaminado. Atualizado às 13h16.