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Gerson Marques artigosGerson Marques

 

O desespero já tomava conta de todos, sem verem uma saída para tamanha tormenta, quando um garoto de pouco mais de 12 anos, de nome Catussadas, fez uma singela pergunta, tão simples e inteligente, que nela mesmo continha a resposta e a solução.

 

 

Quando o castelhano Filipe de Guillen chegou aqui, fazia três anos que tinha começado a praga dos sapos. Nestes tempos, viviam em Ilhéus umas oitenta almas – índios e negros não contavam – em umas doze moradias, quase todas no Outeiro de São Sebastião e em três engenhos de cana de açúcar. Eram habitações muito rústicas, feitas de madeira, pedra, barro e palhas.

A pequena igreja de Nossa Senhora e a Casa dos Padres eram as edificação mais importante da Vila, feitas em adobe ajuntado por uma espécie de cimento com areia, pó de conchas e óleo de baleia. Não existia nem um padre morando por aqui, já que não restou um vivo na cidade depois que começou a praga dos sapos. O último, Manoel de Andrade, havia morrido queimado na Santa Fogueira da Inquisição, depois de enlouquecer atormentado com a invasão dos anfíbios batráquios, como explicou Tertulino Alvarenga, o coroinha da Paróquia, que naqueles tempos era única autoridade eclesial da comunidade.

Segundo o relatado na missiva mandada ao Rei D. João III, em 1539, por Filipe Guillen, a Vila era o lugar mais parecido com o inferno que ele podia imaginar, se não fosse aqui o próprio Hades. Ilhéus nesta época vivia uma desolação completa, tomada por uma praga de sapos que invadiu todos os lugares, casas, ruas, igreja, plantações e todo espaço possível. A perturbação era potencializada pelo enorme barulho do coaxar incessante, dia e noite, capaz de enlouquecer até um monge tibetano. O único lugar da cidade que não tinha sapos era a praia.

Essa tragédia teria começado quando o fidalgo português João de Tiba aportou na Vila vindo de Portugal em uma nau muito avariada depois de quatros meses e doze dias de navegação, errante pelo Atlântico. Seu destino era a Capitania de Porto Seguro, onde o donatário Pedro Tourinho teria lhe ofertado uma enorme sesmaria. Trazia na bagagem, entre as coisas que pôde salvar – já que metade dos pertences foram jogados ao mar para aliviar o peso e evitar naufrágio certo -, uma gaiola onde mantinha um rebanho de sapos, trinta fêmeas e seis machos, que, segundo João de Tiba, seria muito útil para comer besouros e todo tipo de inseto que infestavam as terras ainda virgens do Brasil.

Deixando sua carga mal arrumada no improvisado porto da Vila de São Jorge dos Ilhéus, enquanto consertava sua nau, João de Tiba teve sua gaiola de sapos surrupiada pelos moleques que viviam de mariscarem pelo cais. Desta galhofa, terminou que os sapos fugiram e passaram a habitar um brejo mal cheiroso que existia na altura de onde hoje é a Praça Cairu, no centro da cidade. Deste brejo infestado de mosquitos, os sapos se proliferaram de tal maneira que apenas um ano após a malfadada passagem de João de Tiba, a pequena Vila foi tomada por uma sapaiada dos infernos, tornando a vida aqui um suplício.

Um ano antes de sua trágica morte, o padre Manoel Andrade fechou a igreja, entregando-a em definitivo aos sapos, principalmente depois que, no Domingo de Páscoa, os fiéis foram servidos com vinho de um barril infestado de anfíbios, causando febre e dores intestinais em todos. Dizem até que, deste acontecimento, nasceu a expressão “engolindo sapos”.

O padre Manoel de Andrade foi o último de um grupo de cinco padres jesuítas que chegaram a Ilhéus por volta de 1536. Destes, dois foram comidos por Botocudos quando catequizavam na região do Gongogi. Outro morreu afogado em um naufrágio com a canoa que viajava afundando em uma tormenta na foz do Itaípe. Do quarto, corre a história de que teria se achamegado com uma índia e sumido para dentro da floresta, e de quem nunca mais se teve notícias.

Assim, só restou Manoel de Andrade, lusitano de nascimento, da cidade de Aviedo. Ordenado padre no famoso Seminário Nossa Senhora da Conceição na cidade do Porto, chegou ao Brasil ainda novo. Aqui, três anos depois teria sido acometido da loucura dos sapos para uns. Ou possuído pelo diabo, para outros – no caso, os inquisidores da Igreja.

Fato é que o padre Manoel estava cada vez mais esquisito nos últimos tempos, atormentado pelo coaxar incessante de milhares de sapos, dia e noite. Sem conseguir dormir nem comer, foi definhando a cada dia, passava a vida trancado em um minúsculo quarto, em rezas e penitências. Tinha certeza de que sua vida de pastor em Ilhéus era um castigo divino, por ter na infância cometido, de forma excessiva, o pecado da masturbação.

Os sinais da loucura, porém foram se apresentando aos poucos. Quando rezava uma missa, foi tomado por uma súbita crise, agarrando um sapo que repousava sobre a imagem de Nossa Senhora e o devorando vivo, para horror dos fiéis. Tempos depois, criou uma campanha para coletar sapos em troca de bênçãos que, acumuladas em certa quantidade, permitiriam ao fiel, em sua morte, ascender diretamente aos céus sem a necessária passagem pelo purgatório. Chegou a fazer uns escritos: “Duzentos sapos, morte tranquila,; trezentos sapos, morte assistida por anjos; mais de quatrocentos, passagem direta para o céu ao lado de Deus”.

O caso entrou para história da Igreja como a venda de indulgência por sapos. Assim, foi denunciado ao Conselho da Inquisição. Terminou condenado, por heresia, à pena de perder a batina e morrer queimado em uma fogueira. Levado em maio para Portugal, em um galeão da Marinha Real, foi queimado em dezembro de 1539.

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JORGE AMADO E OS REQUINTES DA ESTUPIDEZ

Ousarme Citoaian | ousarmecitoaian@yahoo.com.br
Jorge Amado folheia edição em dinamarquês de Tocaia Grande.

Nas muito justas louvações a Jorge Amado (cujo centenário de nascimento ocorre nesta sexta-feira, 10), detenho-me sobre um documento que se agiganta diante de toda a obra vasta do grande romancista. Trata-se de uma surpreendente “Ata de Incineração” produzida pela Sexta Região Militar em 19 de novembro de 1937 – e publicada pelo jornal Estado da Bahia em 17 de dezembro daquele ano. É de estarrecer, ou como gostaria de dizer a própria vítima, “de espantar”. A notícia da queima de 1.694 livros de Jorge Amado é narrada com detalhes (melhor seria chamá-los de requintes de estupidez), começando por nomear os “senhores membros da comissão de buscas e apreensões de livros” (três trogloditas do Exército, Marinha e Polícia do Estado).

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MONUMENTO À BESTIALIDADE

A ordem de incinerar “os livros apreendidos e julgados como simpatizantes do credo comunista” partiu do Cel. Antônio Fernandes Dantas, comandante da 6ª RM, e incluiu pequena quantidade de outras obras. O integralista José Lins do Rego teve queimados 82 volumes de seus romances Doidinho, Pureza, Banguê, Moleque Ricardo e Menino de Engenho – prova de que as ditaduras distribuem “democraticamente” suas patadas sem olhar a quem. Mas o grande perseguido era, de fato, Jorge Amado, visto pelo sistema como “perigoso agitador”: dos seus livros levados à fogueira, o de menor quantidade (Cacau, 89 exemplares) ultrapassa os cinco de Zé Lins. A bestialidade do Estado Novo seria, com ligeiras adaptações, reeditada pela ditadura militar de 1964.

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O CAVALEIRO DA ESPERANÇA

Jorge Amado não foi só o escritor picaresco, de humor tipicamente brasileiro (em oposição ao humour britânico de Machado de Assis) vulgarizado pela tevê. Foi, sim, um lutador pelo seu povo, defensor da miscigenação, antirracista. Denunciou o trabalho semi-escravo na região cacaueira, defendeu a liberdade de culto e todas as liberdades. Várias vezes preso no Brasil, exilado na Argentina, no Uruguai, em Paris e na Tchecoslováquia, ele manteve a militância também fora de sua terra: em 1950, foi expulso da França, devido à atividade política com Camus, Sartre, Picasso e outros. Em 1941, durante o exílio na Argentina escreveu O cavaleiro da esperança: a vida de Luís Carlos Prestes, pungente defesa do líder comunista preso desde 1936.

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LIVRO CONTRABANDEADO

É um livro notável, pelo conteúdo explosivo (a denúncia candente da tortura, da perseguição aos comunistas, da violação dos direitos humanos no Estado Novo) e pelas circunstâncias especiais que o cercaram: proibido no Brasil, O cavaleiro… (em espanhol) era vendido clandestinamente, às vezes por preços absurdos. Também apareciam cópias datilografadas e em fac-símile, que passavam de mão em mão, sem dono certo. O livro ganhou nomes carinhosos, como Vida de são Luís, Vida do rei Luís e Travessuras de Luisinho. No governo Perón, O cavaleiro… foi proibido também na Argentina e queimados os exemplares encontrados, valorizando ainda mais os que circulavam no Brasil. “Houve quem vivesse do aluguel de exemplares”, contou Jorge Amado.

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O SORRISO AMARELO DA SOCIEDADE

A pena de Jorge Amado nunca esteve a serviço da literatura dita “o sorriso da sociedade” (expressão cunhada por Afrânio Peixoto) e que Graciliano Ramos bem definiu como “uma literatura antipática e insincera que só usa expressões corretas, só se ocupa de coisas agradáveis, não se molha em dias de inverno e por isso ignora que há pessoas que não podem comprar capas de borracha”. É a literatura dos saraus, da poesia tatibitate e bem comportada, que não incomoda. “Foi ela que, em horas de amargura, receitou o sorriso como excelente remédio para a crise”, resume o mestre de Quebrangulo. Jorge Amado trouxe para o romance brasileiro os negros, os pobres, os trabalhadores do cacau, as prostitutas e, avant la lettre, os meninos de rua.

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PREMONIÇÃO SOBRE MENORES INFRATORES

Capitães da areia (808 exemplares queimados), uma premonição sobre os menores infratores de hoje, saiu do prélio em 1937 e logo foi para o fogo. Não valeu esse “sacrifício” do governo: quando veio a anistia, em 1945, Capitães… vendeu feito pão quente, sendo até hoje uma das obras mais lidas do autor. Os demais romances levados à fogueira são Jubiabá (267 exemplares), O país do carnaval (214), Suor (93) e Cacau (89). Jorge Amado retomaria as questões sociais, dentre outros títulos, em Terras do sem fim (1943), São Jorge dos Ilhéus (1944), Os subterrâneos da liberdade (1954) e, principalmente, em Seara vermelha (1946), que, por óbvios motivos, não viraram cinza. Faltou dizer que 223 exemplares de Mar morto também foram queimados.

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SÓFOCLES ESCAPOU DO PAU-DE-ARARA

Mar morto? – perguntaria a atônita leitora; Mar morto? – ecoaria o atônito leitor (desde que cultuem este objeto em extinção chamado livro), e concluiriam que este velho O. C. perdeu de vez o juízo ou bebeu em má fonte. Mar morto, sim, insisto, lembrando-lhes que nas ditaduras a burrice é uma segunda natureza. E afianço ainda que esse mal é contagioso e longevo: em1965, esbirros da ditadura militar (“herdeiros” da fogueira de 1937) invadiram um teatro no Rio de Janeiro, para prender o autor da peça em cartaz, um certo Sófocles, e submetê-lo ao pau-de-arara, choque elétrico nas partes baixas e outros mimos. Pois saibam todos que destas linhas tomarem conhecimento que Sófocles escapou – tinha-se dado ao luxo de morrer há 565 anos.

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JORGE AMADO É MELHOR DO QUE VICTOR HUGO

Faltou dizer que Mar morto, leitura de infância em Buerarema, a história de Lívia e Guma, é um dos mais belos textos de Jorge Amado. Para mim, foi o contato com o que se chamava de “poesia em prosa”: o cotidiano dos trabalhadores do mar em permanente risco, a vida árdua, mas narrada com surpreendente lirismo. Penso que só alguém doente da cabeça ou do pé (talvez dos dois) seria capaz de ver ali obra de ameaça ao regime, livro “simpatizante do credo comunista”. A quem não percebeu a citação, informo que “trabalhadores do mar” é o título de festejado livro de Victor Hugo (traduzido por Machado de Assis), que não chega aos pés de Mar morto.

O lirismo de Jorge Amado chegou também à MPB, numa parceria de Jorge Amado e Dorival Caymmi. 

O.C.