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ESTOU DE LUTO HÁ 28 ANOS
Ousarme Citoaian
É quase obrigação lembrar que perdemos, numa semana como esta (19 de janeiro), uma cantora chamada Elis Regina Carvalho Costa (foto). Aconteceu em 1982, portanto, há 28 anos. Elis ainda é considerada por muitos críticos e músicos, quase três décadas depois, a maior cantora brasileira de todos os tempos. Essa qualidade excepcional se deve à combinação, em porções certas, de emoção e técnica de cantar (em Betânia, emoção quase sem técnica; em Gal, técnica quase sem emoção).
Nascida em 1945 (em Porto Alegre), a artista teve sua voz imortalizada em 47 discos (em formatos diversos) durante 18 anos de carreira, a partir de 1961. Teve morte trágica e prematura, aos 36 anos, quando se encontrava em plena forma. Uma mistura de tranqüilizantes, cocaína e álcool lhe foi fatal. Eu estou de luto até hoje.
CEMITÉRIO DOS MORTOS-VIVOS
Chamava a atenção em Elis Regina a coragem, cívica e artística. Acusada de colaborar com os militares (cantou o Hino Nacional numa solenidade, em 1972), foi inserida no “Cemitério dos mortos-vivos”, impiedosa seção que o genial cartunista Henfil (foto) mantinha no Pasquim. (lá foram “enterrados” Carlos Drummond de Andrade, Pelé, Marília Pera, Paulo Gracindo, Clarice Lispector, Tarcísio Meira e Glória Menezes). Ficou amiga de Henfil e se fez musa do movimento pela anistia, ao gravar O bêbado e o equilibrista (João Bosco-Aldir Blanc), em 1979. Essa música, com uma carga de emoção que o tempo não apaga, é considerada seu ingresso definitivo nas hostes intelectuais contrárias à ditadura. Antes, teria dito (o que não é confirmado) que o Brasil era governado por gorilas – e só sua popularidade lhe teria evitado a prisão (o “cemitério” era tão sectário que, no fim, Henfil também se “enterrou”…).
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LAMENTO PELOS TORTURADOS
O texto de Aldir Blanc tem elementos nem sempre percebidos à primeira audição: o bêbado com chapéu coco é homenagem a Carlitos; o irmão do Henfil é o sociólogo Betinho, exilado; as marias e clarices são mulheres que choram pelos seus homens torturados e mortos pela ditadura – uma delas se chama mesmo Clarice (foto), mulher do jornalista Wladimir Herzog, assassinado no Doi-Codi). Uma dor assim pungente não há de ser inutilmente… A esperança dança na corda bamba, pode até se machucar, mas está viva, é a última a morrer – afinal, mesmo sob violência e iniqüidade, o show tem que continuar. Genial! Leio num site que O bêbado e o equilibrista é uma das canções mais executadas do mundo. Acho justo.
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A FORÇA DADA AOS NOVOS
Nunca antes na história desse país houve uma estrela que tanto desse a mão (e emprestasse a voz) aos novos compositores (o ótimo Emílio Santiago, por exemplo, gosta de gravar o que já é sucesso). Elis Regina se arriscou com João Bosco e Aldir Blanc (foto), além de registrar os então desconhecidos Renato Teixeira, Gilberto Gil, Milton Nascimento, Belchior, Tim Maia, Sueli Costa, Ivan Lins e outros. A maioria dessas gravações está na lista de “clássicos da MPB”. Fantástico (não o da Globo, mas o da vida real). Milton Nascimento foi o mais agradecido de todos, pois a elegeu sua musa e a ela dedicou várias composições.
Este mês, mostraremos três vídeos de Elis Regina. Aqui, o primeiro, com o Hino da anistia, ao vivo.
O HOMEM E A BARBA DO HOMEM
A já um tanto prateada barba do professor Jorge de Souza Araujo (foto) esconde um dos nomes mais significativos da literatura produzida no Brasil. Não por coincidência (Jung diz que não existe coincidência, existe sincronicidade), é uma barba que nos lembra o muito citado e pouco lido Karl Marx: Jorge é militante marxista e, nesta condição, arriscou-se ter as unhas arrancadas – ou ser submetido a pau-de-arara, choque elétrico, afogamento e mimos outros com que a “Gloriosa Revolução de 64” tratava seus desafetos.
Se, à época, não fosse imberbe, arriscar-se-ia a ter a barba cortada a biscó, pois estas eram as regras do jogo – e os ditadores nos queriam todos devidamente depilados, pois barba grande e cabelo idem eram sinais inequívocos da intenção de derrubar o governo. Esse sertanejo de Baixa Grande, para o bem de todos nós, passou ao largo da tortura, sem abdicar de suas convicções: se perdeu anéis, ao menos manteve intatos os dedos, as unhas e o buço emergente, de grande futuro.
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BOM OUVINTE E BOM FALANTE
Jorge Araujo é intelectual completo: escreve poesia, conto, crônica, ensaio, pesquisa, teatro e ainda encontra tempo para a sala de aula, orientar teses de mestrandos, visitar o bar e charlar com antigos ou ocasionais. Sabe administrar o tempo e dissimular intenções: quem o vê diante de uma cerveja, em papo comprido de fim de tarde, desapressado, bom ouvinte e bom falante, pensa que descobriu mais um desses boêmios sem relógio, responsabilidade ou patrão. Crasso erro. Jorge tem um entendimento quase bíblico da adequação da hora. Conhece o tempo de plantar, colher, flanar, beber, namorar, casar (atividade a que se tem dedicado com impressionante persistência) e trabalhar, que ninguém é de ferro. Quando se enfurna na biblioteca, a ler, pesquisar, anotar e produzir, esquece o mundo do lado de fora, seja em sua casa, seja em outros sítios, pois ele vai aonde a informação estiver. Coleções públicas ou particulares, no Rio, São Paulo, Oropa, França e Bahia recebem frequentes visitas suas. Sequer os alfarrábios de poeira secular escondidos na Torre do Tombo, em Lisboa, conseguiram escapar à sua perseguição, quando esteve à cata de um certo padre Antônio Vieira. Por certo, contabiliza algumas crises de alergia – mas o que não se faz pela arte?
“ELEMENTO PERIGOSO”
Feitas as contas, de Eu nu e algumas curtas estórias, em 1969, até Floração de imaginários, em 2008, ele publicou quase um livro por ano. A leitura em si é tema recorrente (“Ler é evitar que a alma infarte”, diz em Agenda de emoções extraviadas), mas o espectro de interesse do autor é muito amplo: vai do citado Vieira à análise literária propriamente dita (Jorge Amado, Jorge de Lima, Graciliano), do mito do conquistador D. Juan às pegadas de Anchieta na praia, com passagem pelo teatro – Auto do descobrimento: o romanceiro de vagas descobertas (foto) – sem gastar o espaço cativo da crônica de jornal (Ainda que nos precipitem) e da poesia (Os becos do homem, com prefácio de Antônio Houais). O liame político jamais foi rompido, pois o autor não pode e não quer fazê-lo. Está lá, em “Escrevo para me manter vivo”, no livro Caderno de exercícios – algumas reflexões sobre o ato de ler: “A escrita é minha prática subversiva, sempre a minha forma de ver o outro lado do mundo, de ver não oficialmente como me convidam a ver”. Conforme se vê, Jorge Araujo não se emenda: continua, depois de grande, a ser “elemento perigoso”.
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PATRIMÔNIO CULTURAL
A última proeza literária de Jorge Araújo, abstraindo-se uma premiadíssima biografia de Graciliano Ramos, é o ensaio Floração de imaginários (foto), editado pela Via Litterarum/Itabuna). Vão pensar que minto, mas me arrisco a dizer: são 77 romancistas com suas obras analisadas num espaço de 490 páginas – o que significa dizer uns 380 livros lidos, pesquisados, resenhados, virados pelo avesso, mas todos tratados com generosidade e respeito. Se você ouviu falar de um obscuro baiano que escreveu um romance há anos tantos (desde que no século XX), ele estará em Floração, o maior acervo de conhecimento da literatura baiana que já se publicou. O livro ganhou o prêmio Braskem de ensaios, mas isso não atesta sua verdadeira dimensão. Merece muito mais, pois é o manual, o inventário, o vade-mécum, o alfa e o ômega, o “quem-é-quem” do romance neste Estado.
Esta coluna não se atribui tamanho, peso, engenho e arte suficientes para se aventurar na avaliação intelectual de Jorge Araujo, tarefa para críticos, exegetas e doutores da literatura. Mas de uma coisa temos certeza: trata-se de indivíduo pleno de generosidade, distante de arrogâncias, limpo de soberbas, que jamais se utilizou de sua forte erudição para humilhar pessoas ou elevar-se pessoalmente. Nunca quis ser “superior” a ninguém. Nem precisa. Creio que se fôssemos uma terra dada a cultivar valores intelectuais (não sei se existe alguma assim), Jorge Araujo não poderia sair à rua sem segurança reforçada, como acontece com as grandes estrelas. No dia em que Itabuna e Ilhéus criarem juízo vão tombá-lo como patrimônio cultural da região. E eu estarei lá, batendo palmas.
TRAUMA DE JARARACA ENSABOADA
Jararaca Ensaboada leu um livro quando estava na escola elementar, por insistência da professora. A aventura causou-lhe tamanho trauma que ela foi aconselhada, em nome da saúde, a nunca, jamais, em tempo algum repetir esse tresloucado gesto. Há dias, numa súbita tentativa de ascender à erudição, procurou, com a ajuda de um psicanalista de hora regiamente paga, ler as orelhas de Dom Casmurro, e se deu mal: o esforço levou a nefanda criatura a tal estado de histeria que o psicanalista de hora regiamente paga lhe recomendou procurar o psiquiatra, com urgência urgentíssima.
O UNIVERSO DERRAPOU
Na semana passada, os leitores desta coluna foram muito bondosos, ao não reclamar de dois erros que berravam no texto: numa “intromissão” do word, saiu agüenta, quando o correto, segundo o polêmico Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, é aguenta; e, por injustificável descuido, escrevi “o Luiz Viana Filho…” – detestável forma de linguagem comum no Sudeste, mas alienígena entre nós. Nordestino que escreve “o Fulano”, em vez do simples “Fulano”, exercita um ridículo pernosticismo. Foi o que eu fiz, sem intenção (os erros foram rapidamente corrigidos, graças à diligência dos rapazes do Pimenta). Peço desculpas e agradeço a todos pela generosidade.
(O.C.)
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<h3 style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>E FRED JORGE CRIOU CELLY CAMPELLO!</span></h3>
<div style=”padding: 6px; background-color: #0099ff;”><span style=”color: #ffffff;”>No auge do sucesso, em 1965, a música teve uma versão no Brasil, gravada por Agnaldo Timóteo. Como costuma ocorrer com as